quarta-feira, 10 de janeiro de 2018
Património e obras de arte em Lafões
Um solar que nasce da afronta da passagem de uma estrada
- De Santa Cruz da Trapa para Serrazes
Aquilo que é visto pelas populações como uma boa aquisição para a sua mobilidade e o seu bem-estar, como seja a construção de uma estrada, pode também levar a profundos desgostos a duras contestações, provocando mesmo o desânimo em algumas pessoas. Assim aconteceu com o Solar dos Malafaias, ou da Gralheira, em Santa Cruz da Trapa, que foi construído na segunda metade do século XVIII, falando-se até na interferência, como projectista, de Nicolau Nasoni ( havendo muitas dúvidas sobre esse facto), que veio a ser abandonado pelo seu último proprietário, Joaquim Telles de Malafaia Freyre de Almeida Mascarenhas. Como razão para essa decisão, apontou a passagem da estrada de ligação entre S. Pedro do Sul e o Porto.
Destruído o seu sossego e devassada a sua privacidade (veja-se que ele se localiza algo distante do aglomerado populacional e da própria Igreja Paroquial), com as charrettes a fazerem barulho à sua porta, pegou nas malas e ofereceu ao concelho de S. Pedro do Sul uma outra obra notável, mais um Solar dos Malafaias, ou Casa das Quintãs, desta vez a beneficiar a localidade de Serrazes.
Estamos em crer, e damos isso praticamente como certo, que este último edifício, pelo menos na sua traça e envergadura senhoriais, nunca ali seria levantado. Ganhou-se num lado, perdeu-se no outro. A derrota foi para Santa Cruz da Trapa, a vitória ficou a pertencer a Serrazes, mas com uma mancha dolorosa, anos mais tarde, que nunca mais desapareceu, a do crime ali cometido em 22 de Julho de 1917, comemorando-se daqui a um ano o primeiro centenário desse trágico acontecimento.
Se deste aspecto falaremos mais abaixo, agora queremos centrar-nos naquilo que julgamos essencial nesta nossa ideia de trabalho para o jornal “Notícias de Lafões”: a perda lastimável de um património que se degrada de dia para dia. Pensando que aquele Solar não pertence ao domínio público, antes é propriedade de particulares, chegamos a ter suores frios quando ali passamos e nos confrontamos com tão grande abandono e com tamanho desperdício de um valor arquitectónico e histórico que, visto da estrada que o começou de “matar”, não pode deixar ninguém indiferente.
No painel de motivos que o “Experimenta S. Pedro do Sul” ostenta, este local bem pode – e deve – ser assinalado com um destacado ponto negro. Situado em local estratégico, em vila agradável e atractiva, Santa Cruz da Trapa, está a curta distância da sede do concelho e também das Termas. Quando agora (e muito bem, como há dias frisámos) se tem na mira a recuperação do antigo Balneário Romano, ter esta mancha a dois passos não é assim muito agradável, para além de constituir um prejuízo cultural incalculável.
Dir-nos-ão que as entidades oficiais pouco podem fazer. Talvez. Mas dar uns fortes empurrões, no sentido de ainda agarrar naquilo que pode ser salvo, também é verdade que temos de o aceitar e defender.
Continuarão a argumentar: quem está de fora, não racha lenha. Seja. Mas em Lafões o que cá temos é muito nosso e a dor de ver desaparecer mais uma de nossas jóias atormenta-nos.
Ao vivo, é esta sensação de perda que nos assalta quando por ali passamos. Olhando para o muito que se vai escrevendo e fotografando sobre esta matéria, temos os mesmos sentimentos, um pouco arrepiantes até. Foi isto que nos aconteceu quando pegámos no blogue “solaresebrasoes.blogspot.com” e descobrimos um álbum de fotografias que são um poderoso e monumental grito de alerta contra a apatia reinante. E um murro no estômago de todos nós. Ver as pedras, os símbolos, o brasão em situação de total derrocada não é flor que se cheire, mas é denúncia que deve merecer a nossa atenção.
Se aqui, em Santa Cruz da Trapa, é este o deplorável ponto da situação, em Serrazes, a imagem do crime que lá aconteceu há quase cem anos também dificilmente se apaga, apesar de, em aspecto exterior, o Solar dos Malafaias (II), Casa das Quintãs, nos parecer ainda com bom aspecto e com ares de querer durar e prolongar-se pelos tempos fora.
Pelo meio social em que se desenrolou, pelos contornos de que se revestiu, o acto cometido por José Bettencourt e Fernando Novais correu mundo e fez gastar muita tinta e verbo pelos Tribunais. Alegando que actuaram em abono e defesa da honra de Eugénia Malafaia, que diziam ter sido motivo de afronta por parte de seu primo, Dr. Augusto Malafaia, ali foram tirar-lhe a vida. Com quatro tiros, segundo as crónicas da época, deixaram-no cadáver e arrancaram para longe.
Apanhados e condenados, numa primeira versão, em degredo e prisão para toda a vida, viram ser-lhes comutada a pena para 20 anos, numa outra instância e época, acabando, alega-se para aí, por aqui refazerem suas vidas, cumpridos que foram os anos de privação da liberdade.
Com este tema a não ser bem conta do nosso rosário, remetemos os nossos leitores para o muito que então – e depois – se escreveu sobre este escaldante processo. Quanto a nós, ficamo-nos pelas vertentes patrimoniais, culturais e históricas de carácter mais geral, apesar de vermos neste episódio algo de muito grave, como facilmente se compreende. Uma morte é sempre uma morte e, quando a ela se chega pela violência, os nossos padrões filosóficos tremem por todo o lado. Por isso, nada mais dizemos por hoje.
Carlos Rodrigues, in “Notícias de Lafões”
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