sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Covid, Natal e Ano Novo...

Covid com Natal assim-assim E um fim de ano enclausurado pelo travão de mão Estamos quase a chegar ao triste Natal de 2020, muito provavelmente um dos mais pesados, em dor, da nossa história recente. Da alegria e boa disposição familiar de outros tempos, pouco fica, a não ser pelo uso das modernas tecnologias. As famílias, os amigos têm de o viver separadamente, sem o calor afectivo a que estamos habituados e que é uma forte e enraizada tradição da nossa civilização, ou mesmo de praticamente todas as que existem pelos quatro cantos do mundo. Este ano, por força de um vírus teimoso, ameaçador e destruidor, é a separação que comanda as nossas vidas. Sabemos que isto dói muito a quem por aqui vive. Mas é dilacerante para os emigrantes, para os familiares que estão longe, mesmo no nosso Portugal, e que tinham pelo Natal a oportunidade de darem todos os beijos e abraços que, em saudade, vão armazenando durante todo o ano. Com as restrições impostas, ainda que aligeiradas nesta quadra natalícia, mas sem a liberdade de sempre, com a possibilidade de circulação por estes dias, pede-se bom senso no número de pessoas que se reúnem em cada casa e família. Contrariamente ao que acontece noutros países, no nosso não se estabeleceu uma quota qualquer, mas sabemos que, por decisão própria assumida caso a caso, se vai tentar limitar ao máximo o número de contactos. A cautela e o medo ainda não desapareceram de todo e as precauções impõem-se. Se no Natal houve uma espécie de mão leve em sede governamental, não obstante se viver um novo estado de emergência, entre os dias 23 de Dezembro e 7 de Janeiro de 2021, quanto ao Ano Novo, o discurso e as regras são muito mais duros. No dia 31, as deslocações estão impedidas a partir das 23 horas, sendo ainda proibido circular nas vias públicas, em todo o território nacional depois das 13 horas de cada dia 1, 2 e 3, se não houver motivos oficiais para essas saídas. É ainda proibido andar de um concelho para o outro entre os dias 31 e 4 de Janeiro de 2021. Usou-se desta forma o travão de mão que tinha sido anunciado pelo Primeiro-Ministro, António Costa, agora, também ele, em quarentena pelos contactos estabelecidos em França, ao que se supõe. A zona de Lafões vive duas situações diferenciadas, com Oliveira de Frades em sistema moderado e Vouzela e S. Pedro do Sul no patamar acima (elevado), contrariamente ao que acontecia há uns tempos, mas as determinações atrás enumeradas aplicam-se em cada um destes casos. Por isso mesmo, Natal e Ano Novo, aqui, não passam por quaisquer diferenças. Entre estas duas datas essenciais na nossa cultura, neste ano de 2020, parece que vamos ter um Pai Natal de bom coração, que trará, a partir do dia 27, segundo as previsões oficiais, as desejadas e necessárias vacinas que façam espantar esta terrível Covid 19, que tantas tristezas e estragos tem trazido a todo o mundo. Numa ordem estabelecida em função das prioridades e das disponibilidades do respectivo material, será esta a marcha dos números que a Portugal vão caber: Dezembro – 9750 vacinas BioNTech/Pfizer; Janeiro -303225; Fevereiro – 42 900; Março – 487500. Ao todo, fala-se em 22 milhões de doses, para proporcionar duas tomas por pessoa, de uma forma gratuita e universal, mas com base na opção de cada um de nós. Com uma quadra festiva já meio estragada, se as famílias são as mais atingidas na sua essência, é devida uma palavra de ânimo e coragem para todo o sector económico, neste caso a restauração, a hotelaria, a cultura, que levam mais um rombo de todo o tamanho, a juntar a tantos outros desde Março até agora e não sabemos, infelizmente, por quanto tempo. Porque são complicados estes tempos, registe-se um Aviso PROCIV (que costuma ser usado em fase de tragédias ligadas a temporais ou incêndios), em que se pode ler o seguinte, recebido a 19/12/2020: “ Covid 19: use máscara, mantenha distância, areje espaços, não prolongue refeições. O Natal está à porta, não deixe o vírus entrar. Covid19estamoson.gov.pt/ANEPC”. Se o nosso desejo passa por podermos estar com todos os nossos familiares, que o sacrifício deste Natal e Ano Novo tenham a recompensa que nos pode vir a contentar em grande dose: se com o nosso comportamento evitarmos mais contágios, estará cumprida a nossa função solidária e cívica neste forte combate que nos deve mobilizar a todos. Boas festas, feliz Ano Novo, na medida do possível e apenas isso.. Carlos Rodrigues, in “Notícias de Lafões”, Dez 2020

Campanha de vacinação e alguns dados históricos

Prestes a começar uma monumental campanha de vacinação Na vida humana, dois séculos foram determinantes em várias doenças Há cerca de um ano, o mundo acordou com um perigo universal para a sua saúde. Vindo da China, o coronavírus, a Covid 19, para mais fácil entendimento, accionou todas as campainhas de alarme, em vagas sucessivas e palmo a palmo pelo mundo fora. De repente, veio ter com a Europa, caiu em nossas casas, saltou o Atlântico e o Pacífico, espalhou-se por toda a América, pela África, pela Oceania, sem deixar qualquer espaço sem a sua força destruidora. A saúde de milhões de pessoas foi afectada, a morte ceifou imensas vidas, de uma forma assustadora e cruel, sem a possibilidade, sequer, de se fazer qualquer luto. As relações humanas e sociais ficaram e estão altamente abaladas, as famílias separadas e o desânimo anda por aí à solta. Descontrolada está também a economia. Enfim, esta pandemia deixou-nos de rastos e continua a avançar por aí, em mutações sucessivas como esta que agora apareceu no Reino Unido, talvez, dizem, ainda mais perigosa. Sem medicamentos de cura, com os serviços de saúde a fazerem sacrifícios incríveis para salvarem vidas, a esperança, desde logo, veio a apontar no sentido da descoberta de uma vacina milagrosa, eficiente, credível, segura e sem efeitos secundários. A ciência mobilizou-se por todo o planeta. A comunidade sentiu, ela toda, que era por aí o caminho. Muita gente se atirou de corpo e alma para as experiências, para os laboratórios e a sua voz começou a ser ouvida, estimada e desejada, regra geral, salvo algumas excepções que nos horrorizaram a todos. Sem menosprezar ninguém, deixem que aqui se registe o nome de Henrique da Veiga Fernandes, um nosso conterrâneo de Viseu, que muito se tem destacado neste sector na Fundação Champalimaud. Finalmente, em tempo recorde, eis que, ao fundo do túnel, já vemos agora uma luz retemperadora, cremos nós. Com a BioNTech Pfizer, por um lado, a Moderna, também, e algumas outras hipóteses, as vacinas por todos ansiadas parecem estar no rasto da nossa salvação. Pelo meio, nada deste processo está isento de dúvidas, medos, incertezas e medos. Convém que se diga que todas as vacinações anteriores sofreram do mesmo mal. Se até ao século XIX, sobretudo com Pasteur e Koch, apenas as mezinhas populares e uns tantos assomos de medicamentos mais científicos eram os remédios encontrados, em campanhas de vacinas nem sequer se falava, propriamente dito. Diremos então que os séculos XIX e XX foram essenciais e determinantes em descobertas e suas aplicações, estas, muitas vezes, debaixo de críticas e mil intrigas. Para nos apercebermos de quão demorada foi a entrada em cena, com generalizada atenção e crédito, das primeiras campanhas de vacinação à escala mundial, é o ano de 1956 que faz toda a diferença, quando se tentou combater a varíola, que, na Europa, por exemplo, tinha um índice de mortalidade entre 8 a 20%. Aliás, logo nos princípios do século XIX esta doença motivara as primeiras tentativas a este propósito. Uma personalidade destacada, ainda no século XVIII, em 1768, Catarina, a Grande, na Rússia optou por ser vacinada, ela que vira o sofrimento do marido, entretanto assassinado. Retomando as referências a Pasteur, foi contra esta maleita que iniciou os seus estudos e testes em animaiais domésticos, as suas galinhas e ovelhas, mas é a anti-rábica, em 1885, que se torna a sua maior coroa de glória. Por sua vez, Koch, em 1882, isola e identifica a bactéria causador da tuberculose, um outro passo de grande importância para o mundo e mesmo assim ela continuou pelos tempos fora, como se viu no nosso Caramulo, até cerca de meados dos anos 1900. Com várias frentes nestes combates, a polimielite, de que sofria o Presidente dos EUA, F. D. Roosevelt, e mais tarde a Hepatite B (1981), o sarampo, a papeira e a rubéola, estas três doenças combatidas com uma só vacina (1987), foram outras degraus da escada que tem vindo a ser subida muito devagarinho e com todos os cuidados possíveis. O que se vem fazendo em Portugal Data do ano de 1965, o PNV – Plano Nacional de Vacinação – em Portugal, destinado a travar uma ampla frente em que se englobava a polimielite, a tosse convulsa, a difteria, o tétano e a varíola, estando, hoje, a lutar-se contra 12 agentes. Quanto ao sarampo que aparecia em surtos de dois em dois anos, lança-se a rotina da vacinação aos 15 meses de idade, a partir de 1974. Em 2006, face a um novo flagelo, passa a vacinar-se a doença do HPV, o cancro do colo do útero. Se o imperador chinês já fizera uma inoculação por volta de 1600, naquilo que ficou conhecido como a variolação, vamos agora entrar na fase da renhida batalha contra a Covid 19, dizem que a partir do próximo dia 27 deste mês, em acção coordenada em toda a União Europeia, passando, depois, no primeiro semestre de 2021, o nosso país a ter a batata quente da sua distribuição em massa, na altura em que preside ao Conselho Europeu. Como sempre tem acontecido, já se ouvem as vozes cépticas de muitos e variados movimentos anti-vacinação. Em contraposição, anuncia-se que estão a ser reforçados os mecanismos de segurança e controle, como muito bem têm vindo a alertar o novo Coordenador Nacional desse Plano, a Direcção-Geral de Saúde e todas as diversas entidades científicas e políticas que estão ligadas a estas questões. Diz-se que a resposta para a erradicação da Covid 19 está nas vacinas, mais do que nos remédios que ainda se não conhecem, sequer. Importa é que tudo aconteça com normalidade e com altos e bem definidos critérios a aplicar em cada tempo e em cada sector da sociedade, sabendo nós que há prioridades a seguir, como é lógico e humanamente aceitável. Que a sucesso nos acompanhe, que dele bem precisamos. Carlos Rodrigues, in “Noticias de Vouzela”, Dez 2020

Breve história do dinheiro em Lafões

O dinheiro e moedas em Lafões De Roma aos nossos dias Andam noventa por cento das pessoas altamente preocupadas com a falta de moeda, isto é, de meios ou dinheiro para saldar seus compromissos. As restantes, talvez, vivam na ansiedade de saber como guardar ou valorizarem a riqueza que têm. Tudo se prende com ser ou não possuidor de uma qualquer fonte de rendimentos. Sempre assim tem sido ao longo das vidas humanas, só que com graduações ou valorizações diferentes. Ter muito ou pouco, afinal, até pode ser relativo. Vamos hoje tentar perceber que dinheiro foi havendo no bolso dos nossos antepassados e nos nossos, na actualidade. Felizmente que a arqueologia nos tem dado respostas quanto a esse importante tema, por aqui, sobretudo desde o império romano. Mas a moeda, enquanto tal, já carrega muitos mais anos no seu historial e isso pode comprovar-se em várias partes do mundo, desde há milénios. Antes, porém, de existir o metal e a sua transformação em moeda propriamente dita, as trocas directas, o escambo, eram a regra geral. Dava-se isto em troca daquilo. Como se compreenderá, com a evolução dos tempos e a complexidade das transacções, esses métodos começaram a revelar-se impossíveis de pôr em prática. Enquanto se precisava de um pouco de farinha ou um naco da carne, tudo fácil. O pior foi quando se teve de adquirir um touro e na outra parte só se poderia avançar com galinhas e ovos. Quem diz isto, facilmente imaginará outros negócios.... Sendo fascinante a história do dinheiro e do seu valor, não precisamos de recuar muito tempo, talvez apenas umas décadas para ficarmos a saber, como acontecia nas nossas terras, que tudo se resumia a um bom par de notas e não eram sequer de mil escudos, mas de 100. Por um vitelo (e tinha de ser bom), 7 desses pequenos papéis já faziam uma grande festa. Por uma courela, igualmente. Hoje, aos preços actuais, com 3.5 euros, ou seja o equivalente aos tais 700$00, pouco mais se adquire que um mero jornal. Convém nunca se tirarem ilações directas. Nessa altura, os ordenados andavam na ordem dos poucos escudos por dia e, em 2020, é o que é. Só se compreende o valor do dinheiro, mais ou menos, se virmos o que com ele se pode adquirir e mesmo assim nunca se podem tirar lições muito certas ou até adequadas. Esta longa introdução tem a ver com o facto, por exemplo, de, numa obra de Jorge Adolfo M. Marques, “ Lafões – História e património, Edições Esgotadas, Viseu, 2014”, termos encontrado uma serie de moedas que se podem observar, nomeadamente, nos museus municipais de Oliveira de Frades e Vouzela. Antes de prosseguirmos com mais considerações, que as vamos fazer a propósito da evolução do dinheiro ao longo dos tempos, vamos ver as “riquezas” que então por aí se vêem: um denário de T. Carisius, 46 aC, oriunda do Castro da Coroa, Museu Municipal de Oliveira de Frades (MMOFR); um outro de Tibério (14-37), idem; um de Augusto (2aC-4aC), MMOFR; outro de Cláudio (41-45), Idem; um asse de Augusto (27-14aC), Museu Municipal de Vouzela (MMVZL); um de Tibério (14-37), Idem; um Antoniniano Galeno (266), Castro da Cárcoda; um follis de Constantino (320-324), MMVZL; um outro, série urbana (330-331), idem: dois follis do Constâncio (355-361), Castro da Coroa, MMOFR; uma moeda do Imperador Arcádio (388-392), idem. Refere-se, neste mesmo livro, que em Viseu foram cunhadas duas moedas visigóticas. Já agora, para não sairmos destas mesmas eloquentes páginas, abordemos uma curiosidade relacionada com o Foral de Lafões e com o pagamento das portagens: para uma carga maior, transportada no dorso de um cavalo ou mula era um preço, para uma menor, em burro, um valor inferior e ainda menor se fosse carga costal. Vinagre, sal, carneiros e outros animais, toucinho ou marrão, pescado ou marisco, castanhas, laranjas e outras frutas, azeite, escravos, panos, cera, mel, couros, peles, aço e metais, telhas, louças, moinhos e mós, etc, tudo era taxado. Entretanto, ficavam isentos os seguintes produtos: pão cozido, queijadas, biscoitos, farelos, ovos, leites, farinha para moer, canas, vides, carqueja, tojo, palha, vassouras, pedra, barro, lenha, erva, carne e certos panos. Importa dizer-se que tudo se pesava em quintais, arrobas e arráteis e suas respectivas porções e tudo se media em almudes (líquidos) e alqueires (cereais) com as suas divisões. Uma breve viagem pela marcha das trocas e do dinheiro Aqui chegados, vamos ter de recuar cerca de 10000 anos para nos depararmos com o gado como moeda de troca. Houve, entretanto, as conchas, os grãos, o sal (que já se usava para esses fins no império romano e os portugueses seguiram tal exemplo muito depois), a servirem também como meio credível de pagamento. Na vanguarda das inovações, a China apareceu com as suas primeiras moedas em bronze 1000 anos antes de Cristo, enquanto que, na zona da actual Turquia, surgiram em 610aC as de prata e ouro. O papel em cédulas nasceu também na citada China (618) e o primeiro banco europeu na Suécia em 1657-1661. Com a moeda a só ter interesse se tiver aceitação generalizada, ela é vista como meio de troca, de unidade de conta e reserva de valor. Nos nossos dias, já tivemos o escudo e agora o euro. Antes da república, o real e, antes deste, os morabitinos... Ontem foi de metal. Deu o salto para o papel, agora para os cartões e já se caminha para o seu desaparecimento físico, palpável, sabendo-se que há valor mas apenas quase na nossa imaginação. Pouco falta para o dinheiro ter de passar, praticamente, para um acto de fé. Ou se acredita que o há, ou não... Carlos Rodrigues, in “Notícias de Lafões”, Dez 2020

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Conterrâneo de S. Pedro do Sul com longo sofrimento na 2 GG

Sampedrense em duro sofrimento na Segunda Grande Guerra No conflito que agitou praticamente todo o mundo entre 1939 e 1945, a II Grande Guerra, não teve oficialmente Portugal presente nos teatros das operações, pelo menos em território europeu, que no então Ultramar há a registar vários confrontos, como aqueles que aconteceram em Timor, por exemplo. Com uma aparente e confessada neutralidade, a política do Estado Novo foi a de ficar de fora, mas a dar sinais às partes em confronto, aliados, por um lado, e as forças do eixo, por outro, que ora estava num ponto do campo, ora noutro, ainda que se tenha notado uma maior aproximação aos exércitos alemães, como se pode ver com a exploração mineira, sobretudo, do volfrâmio, pelo menos até 1943, ano em que acabámos por ceder a Base das Lajes aos americanos e ingleses. Uma outra área em que veio a intervir directamente foi a da permissão da estadia de espiões que se passeavam por Lisboa e Cascais às mil maravilhas. No entanto, em termos militares, o nosso país pôs-se ao lado, aliás, um pouco até como consequência do Pacto Ibérico (1939) para uma não agressão entre Portugal e a Espanha. Mas houve momentos em que a tal neutralidade esteve por um fio. Não é, porém, da história geral deste período negro que queremos hoje falar, muito embora os números e os horrores vividos sejam de, ainda hoje, nos parecerem uma coisa de outro mundo, tal a selvajaria que os caracteriza. Com base na revista “Visão História”, nº44, de Novembro 2017, onde colhemos as informações que aqui estamos a tratar, contam-se, tragicamente, 80 millhões de mortos, cerca de 20 milhões de vítimas do holocausto, milhões de prisioneiros em mais de 40 mil campos de concentração, 1 milhão e 600 mil em trabalhos forçados, dos quais 450 mil mortos. É neste último capítulo, o dos trabalhos forçados, que vamos buscar um sampedrense que viveu esses trágicos tempos. Foi essa referência, muito pessoal, que nos captou a atenção. Nessas ondas de atroz sofrimento eram rostos de pessoas que ali estavam, ainda que, à mão dos alemães, assim não fossem considerados. Num excelente trabalho de pesquisa, ainda em curso, a Universidade Nova de Lisboa já encontrou alguma dessa nossa gente que teve essa triste sorte. Entre os casos já tratados, aparece Paulo da Silva, de Valadares, S. Pedro do Sul, cortador de pedra de lava em Volvic (França), país onde trabalhava. Assim, em Março de 1944, foi preso e levado, depois, em Abril, pela GESTAPO para a Alemanha. Antes, tinha sido sido ferido numa perna. Crê-se que pertencia ao grupo dos resistentes, porque, no momento da sua prisão, vivia num Hotel da família Martinon, onde se acolhiam aqueles que lutavam pela liberdade francesa. Embarcou num comboio que tinha como destino o campo de concentração de Neuengamme, onde ficou, no bloco 11, até 25 de Maio de 1944. Passou depois por Wobellin, de onde foi libertado pelas tropas inglesas em 2 de Maio de 1945. Regressou, de novo, a Volvic. Narra-se, no destaque que a Visão dá a Paulo da Silva, que, aquando da sua prisão, o vice- Cônsul de em Vichy fizera diligências no sentido de denunciar esta situação, mas não evitou que tivesse seguido tão duro caminho na sua vida. Vivendo como que enterrados vivos, muitos foram aqueles que não resistiram à exigência dos trabalhos que tinham de executar em condições miseráveis, de fome, e de extrema agressividade, para além dos efeitos de um clima altamente adverso. Felizmente, Paulo da Silva logrou regressar ao seu ponto de partida, a França, mas não sabemos se alguma vez voltou à sua terra, Valadares. “Condenado” aos duríssimos trabalhos forçados, ou teve muita sorte, ou a sua resistência fez com que não tivesse perecido, o ponto final tantos de seus companheiros de desgraça. Se alguns desses trabalhadores estrangeiros na Alemanha aí chegavam por força de alguns engajadores, vimos já que com o nosso conterrâneo assim não aconteceu. Apanhado nas malhas da luta pela resistência, sinal da sua já notória consciência política e inserção na sociedade francesa e na comunidade onde vivia, estava naquele local na hora errada. E daí partiu para o terror dos campos alemães. Comprova-se, com este exemplo e muitos mais, que alguns portugueses, de certa forma e nalguma medida, não ficaram imunes a esta tragédia mundial, de 1939 a 1945. Com os testemunhos recolhidos nesta investigação, vê-se bem o que de trágico eles viveram. Paulo da Silva foi um desses heróis, ido de Valadares para tão negro destino. Recordar esta passagem da sua vida é relembrar um dos períodos mais dolorosos e dramáticos de toda a história (des) humana. Para memória futura, aqui deixamos esta curta descrição e a nossa humilde homenagem. Carlos Rodrigues, in “Notícias de Lafões”

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

João Ramalho, de Vouzela, marcou a história de S. Paulo, Brasil

Um lafonense nos primeiros tempos da construção do Brasil Indo de Vouzela, João Ramalho, veio a ser fundador da poderosa cidade de S. Paulo Carlos Rodrigues Numa certa altura, ninguém sabe quais as razões que levaram à sua debandada, João Ramalho arrancou de Vouzela, sua terra natal, e veio a cair no Brasil. Atracou ali para os lados de S. Vicente, perto da futura cidade e metrópole de S. Paulo de que foi um dos fundadores. Por essas terras fez vida e daquela que se escreve com um V grande, mesmo que com muitas peripécias e controvérsias pelo meio. Até hoje, a história ainda não encontrou respostas para essa sua viagem e destino, nem para a data em que tal aconteceu. Mas o certo é que os livros se encarregaram de registar o seu contributo para a construção desse imenso Brasil. Sabe-se ainda que nas primeiras décadas de 1500, logo após a chegada de Pedro Álvares Cabral, ele por ali andava e em grande azáfama, entre os índios, a estabelecer pontes, a derrubar uns muros e a construir outros. Tanto assim foi que, em 1531, quando Martim Afonso de Sousa, em Fevereiro, ali veio a iniciar funções, parando na Ilha de Cananeia, perto de S. Vicente, uma das primeiras pessoas com quem estabeleceu contactos foi com o nosso João Ramalho. Reiniciou-se então uma sua grande caminhada. Mas quem era João Ramalho? Quase sem sombra de dúvidas, nasceu em Vouzela, tendo como nome completo João Ramalho Maldonado, filho de João Maldonado e Catarina Valbode ou Valgode. Foi casado com Catarina Fernandes (das Vacas). Diz-se que dela chegou a ter um filho. Aliás, o facto de nunca dela se ter separado veio a criar-lhe altos problemas com a Igreja local e, sobretudo, com os Jesuítas que também ali se foram instalar... Atirado para um mundo diferente, com outras vivências e outros valores, cedo, porém, se adaptou e se entranhou nessa cultura local. Fruto da sua expansiva maneira de ser, tratou logo de encontrar uma família como porto de abrigo e veio a descobri-la no índio Tibiriçá, que acabou por lhe dar a sua filha Bartira (muito mais tarde, Isabel Dias), com quem passou a viver maritalmente, mas sem abandonar outras “conquistas”, tal foi a prole que deixou. A propósito deste nosso conterrâneo, Synesio Sampaio Goes Filho Martins Fontes, em “Navegantes, bandeirantes, diplomatas, S. Paulo, 1999” escreveu que “... Nos primeiros tempos da fixação dos brancos no planalto de Piratininga, estes se aproveitaram das guerras intertribais para fazer escravos. Os tupiniquins de João Ramalho, para dar o exemplo inicial, tinham frequentemente os portugueses como aliados no apresamento de índios de outras tribos. Pouco a pouco, os portugueses foram assumindo o comando das acções e estendendo suas actividades cada vez mais longe da sede... “ (p. 97). Por estas deduções, chegou a haver quem, algo impropriamente, o colocasse como um dos primeiros bandeirantes, mas esta figura histórica é um tanto mais tardia. Veio depois, mais concretamente, com a febre do ouro. Mas, em certa medida, por tudo quanto foi desbravando naquelas paragens dos arredores de S. Paulo não lhe fica mal que assim o considerem. Um notável acção política Numa longa, real e literalmente, caminhada, João Ramalho conseguiu impôr a sua força e a sua influência, nas vertentes das lutas, da diplomacia e da política. Os documentos, se são omissos quanto às suas origens e motivações na hora da partida, que pode ter sido por ambição, por acaso, ou até por questões de justiça, como o degredo, não o são, de maneira nenhuma, quanto aos seus feitos. Vivendo para os lados de S. Vicente, foi estendendo o seu domínio pelo planalto de Piratininga além, ora fundando novas terras, ora pegando noutras e nelas gravando o seu selo, como bem notou C.J. Moreira de Figueiredo, na separata da revista Beira Alta, de 1954, deixando registadas estas palavras: “ ... Bastaria a conservação do nome do povoado que fundou (Santo André da Borda do Campo) e cujo paço municipal e cujas despesas custeou de seu bolso quando foi elevada a vila, em 8 de Abril de 1553, para lhe perpetuar o nome, mas é verdade que a sua vida tem mais amplo e profundo significado. É que a personalidade de João Ramalho é como que inseparável da idiossincrasia paulista e, porventura, também da própria fundação de S. Paulo... “ Foi de tal maneira impressivo o seu trabalho, que nas comemorações do quarto centenário da “descoberta” do Brasil (1900), esta cidade, como forma de passar a ter um seu herói que, à sua maneira, fizesse esquecer a supremacia da figura de Pedro Àlvares Cabral e do Rio de Janeiro, alvitrou que essa categoria recaísse sobre os ombros do nosso ilustre lafonense que consideram a alma grande do paulismo. Para esse fim, José Luís Alves “... propôs aos membros do Instituto a realização de pesquisas em arquivos portugueses e paulistas no sentido de encontrar o testamento original de João Ramalho (... ) para mostrar a primazia de JR no episódio do respectivo “descobrimento”. Se isto pode ter algo de fantasia, não deixa, porém, de ser marcado pela importância que em S. Paulo se lhe tributa, que não se apaga com o passar dos séculos... Com o açucar como grande produto desses tempos, os engenhos iam avançando passo a passo, como o de S. Vicente em 1533. A par da economia, as suas preocupações, além da defesa, viraram-se para outras áreas, muito em especialmente a da administração, tendo sido vereador inclusivamente em algumas das terras que criou ou ajudou a erguer. Foi, assim, notável, a sua obra a todos os títulos. No mar de rosas em que por ali se foi navegando, os espinhos cravaram-se também bem fundo na vida deste nosso herói. Como estava preso pela matrimónio à sua esposa vouzelense, foi muito dificil para os Jesuítas aceitarem a mancebia, como consideravam, com Bartira. Por esse facto, fizeram-lhe a vida negra e obrigaram-no a passar por maus bocados e momentos difíceis, como o da excomunhão. É curioso mais este facto: um dos fundadores da Companhia de Jesus, com Santo Inácio de Loyola, tinha sido o Padre Simão Rodrigues de Azevedo, outro vouzelense, que chegou a ser superior na Península Ibérica e em Portugal, a quem os padres no Brasil se dirigiam com as mais variadas queixas a seu respeito. Entretanto, mais tarde, vem a cair nas graças do Padre Manuel da Nóbrega e isso reabriu-lhe muitas portas, incluindo a do casamento com Bartira( Isabel, como vimos, depois desse acto religioso). Dando algumas notas sobre o seu percurso de vida, no livro “1500 – achamento do Brasil”, referem-se vários pormenores de seu testamento que parece ser considerado bastante credível. Eis alguns tópicos: “ ... Ramalho é minha alcunha por causa da minha barba, que foi sempre ramalhuda. Maldonado é apelido de meu pai... Em Vouzela, onde nasci, despeço-me de Catarina, a minha esposa e parto para Lisboa... Abalo de Vouzela de coração apertadinho... Suponho e bem que nunca mais tornarei a ver a Catarina, pois o meu destino é o Brasil tão distante... “ Num breve resumo cronológico por nós elaborado num trabalho académico intitulado “ João Ramalho – um contributo para a mestiçagem e colonização do Brasil”, eis alguns tópicos: 1511/1513 (?) – chegada ao Brasil; 1532 – Colaboração com Martim Afonso de Sousa na fundação de S. Vicente; 1553 – Cooperação com o Padre Manuel da Nóbrega, jesuíta, na construção da povoação de S. Paulo de Piratininga; 1554 – Nomeação, após votação, para Capitão-Mor de Piratininga; 1557/1558 – Eleição para vereador da Câmara de Santo André; 1564 – Eleição e recusa do cargo de vereador em S. Paulo; 1580/1582 (?) – Possível morte. Numa vida muito recheada e muito preenchida, a figura de João Ramalho ainda hoje atrai a atenção dos historiadores e investigadores, portugueses, brasileiros e mesmo de outras nacionalidades, porque se reconhece que por onde passou se fez notado pelas mais variadas razões. Algumas delas aqui se registaram como forma de abrir o apetite pelo conhecimento mais profundo deste nosso conterrâneo, nascido em Vouzela, para terminar os seus dias lá bem longe em terras do Brasil... Carlos Rodrigues, in “Ecos da Gravia”, Dez 2020

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

A afirmação de Moçambique como nação em processo complicado

Tema: Moçambique: a difícil afirmação duma nova nação Orientador: Professor Doutor Luís Manuel Manana de Sousa Mestrando: Carlos Tavares Rodrigues Curso: Mestrado em espaço lusófono: lusofonia e relações internacionais Ano: 2006/2007 Local: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias - Lisboa Índice Índice 1 Introdução 2 1.Enquadramento Geopolítico e Social 8 O Espaço Físico 8 África com História 10 Um passado africano a anteceder Moçambique 14 2.Perspectiva conceptual e metodológica 23 Conceitos a abordar e respectiva metodologia 23 3.Portugal e Moçambique – dos primeiros contactos à colonização efectiva 32 Séculos XV e XVI como ponto de partida 32 O decisivo século XIX 51 As marcas mais penetrantes 65 Crescente petite colonizador 73 Três quartos de século e um colonialismo atribulado 80 4.As Grandes Mudanças 87 Um Estado Novo a criar anticorpos 87 Dos anos quarenta em diante: novos protagonistas 96 As guerras mundiais e seus efeitos 98 5.ONU e novas realidades mundiais 104 A luta do terceiro mundo 112 ONU enfrenta colonialismo 116 Decisões internacionais e respostas portuguesas 120 Consciencialização e contestação em Moçambique 123 Sementes do nacionalismo 126 A guerra colonial, a economia e a sociedade 132 A independência de Moçambique 142 Estado e nação em construção 154 Do dia a dia à identidade nacional 160 Os tempos de amanhã 172 Referências Bibliográficas 177 Introdução Moçambique ainda não é uma nação. Caminha nesse sentido, um pouco por força dos seus responsáveis governamentais, a que se podem juntar mecanismos anteriores, mas está longe de o conseguir. É, no entanto, um estado com um território definido, um corpo legislativo, uma certa vontade de se afirmar como comunidade, mas falta-lhe a coesão que caracteriza uma nação. Com fronteiras naturais e convencionais, vê-se, assim, marcado em espaço, pelas grandes potências coloniais europeias, na parte final do século XIX. É esta uma das heranças passada aos moçambicanos. Com todo um historial repleto de vicissitudes, a construção desta jovem nação, em escalada sucessiva e até contraditória de acontecimentos e contextos, faz-se num penoso dia a dia. O campo da historicidade tem aqui um papel fundamental, porque se assume, de uma vez por todas, que África foi palco de permanentes vivências, ainda que com hiatos regionais e sobressaltos vários, hoje plenamente reconhecidas. Entronca nestas constatações o nosso problema: como está a ser construída a moçambicanidade nacional, no âmbito de uma sociedade nova, de modo a conseguir-se um estado-nação, de direito e de facto? É a respectiva resposta que vamos tentar encontrar no decurso deste trabalho. Quando nos debruçámos sobre o tema a tratar, no âmbito deste curso de Mestrado, em que a Lusofonia aparece em primeiro plano e as Relações Internacionais em complemento, logo decidimos escolher Moçambique. Fizemo-lo porque, em primeiro lugar, ali passámos mais de dois anos da nossa juventude, numa altura em que se aprofundam os cimentos do carácter e, numa outra escala, por ser a História a nossa base de formação. Com base nestes pressupostos, entendemos que o nosso modesto contributo pode vir ajudar a melhor compreender todas estas questões, sendo essa a nossa ideia fundamental. Tudo isto não passaria de uma certa aspiração, se outras condições não tivessem sido criadas. Mas estas acabaram por surgir, no momento em que mergulhámos na percepção desta mesma realidade, no passado ano lectivo de 2005/2006. Ao recordarmos aquelas terras, fundamentamo-nos nas suas próprias paisagens, quanto à abordagem que vamos efectuar: a horizontalidade será, no dialogo com os povos locais, a ponte metodológica e histórica que nos irá conduzir. Longe de uma África com um passado em branco, agarraremos todos os seus contornos, porque ali, em Moçambique, há recuadas e actuais vozes que têm o direito de ver assinalado e destacado o seu estatuto, sendo a raiz da sociedade que agora se vai construindo. Mas antes de enveredarmos pelas vias que nos levam à descoberta daquilo que foi feito e se está, no presente, a erguer, temos de perceber que “(…) só mesmo os conceitos podem ajudar-nos a ver mais claro as sinuosidades e labirintos que tecem historicamente uma dada sociedade” . Para esse efeito, partiremos para esta temática numa perspectiva sistémica, distinguindo e integrando, na medida do possível, nação, nacionalismo, estado, país, pátria e ainda as formas compostas de estado- -nação e nação-estado. Por sua vez, referiremos também o que se deve entender por etnias, clãs e sua ligação com o objectivo que nos propomos analisar. De acordo com José Carlos Venâncio (2000), temos em conta o princípio de que o nacionalismo deve ser visto como o “o esforço de construção da nação” o que se adequa perfeitamente à nossa linha de pensamento. Apoiados em teóricos diversos, seguiremos de perto os apologistas e defensores de uma história e, também, de uma sociologia global de África e consequentes factos sociais, aliando, nesta metodologia, aquelas ciências e ainda o património antropológico, políticas de desenvolvimento, entre muitas outras fontes. Como é óbvio, não deixaremos de lado as culturas locais, as literaturas, as artes e formas sociais de governação neste espaço africano. Numa espécie de visão global da realidade, que não pode ficar pelos pormenores, adoptamos como linha de rumo um fio condutor que atende a esta dimensão: “(….) Os fenómenos sociais, com o homem por medida e por protagonista, acabam por estar inexoravelmente ligados uns aos outros” . Nesta conformidade, cada nação, esta também, suporta-se numa construção que faz apelo a todas as componentes, muitas vezes com fortes laços estabelecidos entre si, o que conduz à referida apreciação global na sua análise. Em Weber, todos os factos têm uma existência que comporta um contexto e um sentido, componente aqui também aplicável, relacionando-se a sociologia da acção e as ciências humanas, designadamente a história. Ao mesclarmos o conhecimento, a sua explicação e compreensão, caminhamos com um ser social que se afirma, individual e colectivamente, no seio de uma vivência activa, sendo portador de valores e, por isso, capaz de “moldar o tipo de sociedade e humanidade“ . Queremos, desta forma, juntar a nossa voz a todos aqueles que defendem a ideia de que “(...) A história, em geral, não fez justiça a África nem tratou bem os africanos, por ignorância, por conveniência, ou por ambas as coisas. No melhor dos casos, apresenta-nos quase sempre uma África pitoresca e exótica” . É outra a África que conhecemos. É uma panorâmica diferente, nada eurocêntrica, que escolhemos para construirmos esta nossa tese, com apoio numa “(…) história que se edifica, sem exclusão, com tudo o que o engenho do homem pode inventar e combinar para suprir o silêncio dos textos, os estragos do esquecimento“ . Anima-nos um esforço mobilizador, que tem de passar pela busca constante, seguindo as pisadas de Marc Bloch, de tudo quanto ao homem moçambicano estiver ligado, na sua oralidade, na sua escrita, na tradição e na modernidade. Para não deixarmos que passe ao lado da própria história mundial. Buscamos a sua “vida, essa procura contínua” nas páginas que aparecerão no corpo deste trabalho. Quanto aos limites temporais, definimos como ponto de partida inicial o fim da Segunda Guerra Mundial e, muito em particular, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), que veio fissurar, de uma forma decisiva e galopante, todos os velhos e novos sistemas coloniais. A Conferência de S. Francisco, com todos os seus antecedentes, tudo veio alterar a esse respeito, nomeadamente, através de relatórios, reuniões de grupos, tomadas de posições oficiais e paralelas. Com o aparecimento da ONU, que constitui uma espécie de denominador comum das decisões mundiais – mas, mesmo assim, com inegável influência – adivinha-se, a prazo, a derrocada do Estado Novo e de sua política colonial. A Carta e as recomendações que vieram a surgir em catadupa, sobretudo, a partir de 1960, deram o golpe fatal, quanto às aspirações portuguesas em matéria dos seus domínios, que ainda subsistiam, teimosamente, fora do espaço europeu. Paralelamente a René Pélissier em entrevista ao jornal Diário de Notícias, de 2 de Abril de 2007, também nós defendemos que o colonialismo só se materializou aí por volta do século XIX, quase a descair para o século XX, quando os soldados começaram a ser parte importante das diversas estratégias então prosseguidas. Alicerçados numa nova onda mundial, os movimentos nacionalistas agigantam-se, fervilhando por toda a África e parte da Ásia. A ONU marcou, por isso, um tempo novo nas relações entre os povos, mormente quando coloca toda a ênfase na reafirmação do princípio da autodeterminação e, como consequência, das próprias independências. Numa leitura da conjuntura internacional daquela época, que se situa a meio de um século, com uma primeira fase absolutamente devastadora, a velocidade dos acontecimentos e os alinhamentos diversos seguem esse mesmo ritmo. A ONU aparece então como um telhado protector e capa de uma nova realidade, onde “(…) as aspirações dos povos afro-asiáticos à independência vão encontrar (…) um suporte jurídico e um grande apoio político” . A citada Carta expressa, de uma forma decisiva, a “igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos”, passando a constituir a base fundamental desse novo enquadramento mundial. Não conseguiu, porém, desfazer algumas dúvidas, bem aproveitadas pelos seus contestatários, em que se inclui, evidentemente, Portugal, que vê naquelas uma eventual via para os recursos que, amiudadamente, se apressa a apresentar. Aliás, a própria constituição da então Organização de Unidade Africana (OUA e, hoje, apenas UA) não teria sido possível sem a prévia existência da sua congénere à escala mundial. Em conjunto, estas instituições vieram a gerar a emancipação de uma série enorme de territórios e nações que, naquelas décadas, ainda se encontravam sob a pressão e força coloniais e dependência de um curto e reduzido número de potências estranhas. Podemos, a esse respeito, falar da Bélgica, Espanha, Estados Unidos da América, França, Holanda, Inglaterra, Itália, Japão e Portugal, que espalhavam o seu poder por cerca de centena e meia de povos Parte destas comunidades aproveitaram a oportunidade que, coroando os seus esforços e diligências, lhe aparecia, em princípio, bastante favorável. Ao mesmo tempo, solidifica-se a ideia de que as sociedades africanas não foram nunca comunidades sem história, apesar de ágrafas; de que a superioridade europeia tinha sido um mito criado ao serviço do interesse das várias potências europeias e mundiais, de que o eurocentrismo concluíra o seu período de vida . Emergem, com toda a sua força e nas diversas latitudes, os nacionalismos africanos. Ao contrário de uma Europa que avança, a leste, para a hibernação desses sentimentos nacionais, em África eles despontam cada vez mais, impulsionados, entre várias alavancas, pela nova organização nascente. Mas toda esta erupção de novas reivindicações identitárias, e esforçadamente nacionalistas, não aconteceu de forma mágica, via ONU, por mais fortes que sejam os seus argumentos. Há muitos antecedentes a considerar e alguns deles serão aqui abordados, porque todo o “(…) futuro há- -de ser sempre condicionado pelo pretérito” . Para chegar ao ponto de encontro, que passa pela descoberta do actual estado da nação moçambicana, enquanto construção histórica e sociológica, são plurais e diversas as fontes que vamos usar. Testemunhos orais e escritos, manifestações políticas e seus relatos, literatura, arte, línguas, documentos reais e obras publicadas constituem os suportes desta dissertação. A tudo isto, adiciona-se o juízo crítico do próprio autor, assim demonstrando a sua opção e visão dos acontecimentos retratados. Ao termos como meta uma “(…) tentativa da globalidade da realidade histórica“ , o nosso esforço ancora-se no sentimento de que “(…) As chamas do nacionalismo, há tanto tempo inactivas, crepitam agora…” , numa referência aos anos da administração Kennedy em que se proclama que “(...) A força mais poderosa (…) é a eterna aspiração do homem a ser livre e independente” . Sendo o ano de 1945 um dos grandes marcos históricos, com o papel da ONU e o recrudescimento de um sistema bipolar, como nos diz José Palmeira (2006), que entronca as suas traves-mestras na perspectiva sistémica, tal como nós, adoptamos essa data como um corte temporal essencial. Como vamos falar de África e de Moçambique, em particular, é aí que procuramos as alavancas, que necessitamos, para saber como se estão a dar os passos que levem à afirmação de uma nova nação. Ainda jovem, quase na primeira infância, a sua construção depende, essencialmente, do contributo de todos e de cada um dos moçambicanos. É isso que vamos ver, citando agora Fernando Pessoa: “ As nações todas são mistérios Cada uma é todo o mundo a sós” 1. Enquadramento Geopolítico e Social O Espaço Físico Num mundo que, até sensivelmente finais do século XV, estava para lá dos horizontes atingíveis, Moçambique chegou ao conhecimento dos portugueses e europeus, em geral, por uma via indirecta: só a viagem de Vasco da Gama, com um outro destino, a Índia, veio permitir esses e outros posteriores contactos. Situado na Costa Oriental Africana e banhado pelo Oceano Índico, esta terra aparece-nos na zona sul daquele imenso continente, posição que suscita logo duas evidências: por um lado, estava muito distante das influências directas do velho mundo; por outro, colocava-se à mão de semear das culturas orientais, árabes e asiáticas, que marcaram, no último milénio, grandemente a sua história e vivências sociais, económicas e políticas. Assim, “(…) Quando os portugueses entraram em 1497 no Oceano Índico defrontaram-se com os árabes muçulmanos que se infiltravam para sul, a partir do Mar Vermelho ou da Pérsia, apoiando-se na costa oriental de África“ . Marcado pelas latitudes e longitudes extremas, desde os 10º e 27´ S a 26º e 51´ S, da foz do Rio Rovuma ao Monte Ouro e dos 40º e 52´ E. Gr. A 30º e 13´ E. Gr. , a ir da Ponta Janga ao Rio Aruanga Grande, Moçambique estende-se por 1965 Km de comprimento e 1030 Km na sua maior largura, sendo esta dimensão extremamente variável, quase pontiaguda a sul e muito dilatada noutros pontos . Com 2795 Km de costa marítima, este é o seu grande flanco de abertura ao exterior, não obstante a existência de uma fronteira terrestre a ascender aos 3784 Km, perfazendo uma superfície territorial actual de 771125 Km2. Se a leste é o Oceano Índico que se impõe, no pólo oposto, sensivelmente a oeste, encontramos a Suazilândia, o Transval, o Zimbabwe (…), sendo este território ainda limitado, a norte, pelo Rio Rovuma e terras da Tanzânia e, a sul, pela cadeia dos Libombos , pelos Rios Pongolo e Maputo e também pela África do Sul. Como é facilmente aceitável, este contexto geográfico e suas implicações humanas seriam determinantes para a análise que se possa fazer a respeito destas regiões. Numa busca constante, através de diferentes ferramentas de pesquisa social, é enfático concluir, embora o façamos, que “Para o historiador, tal como para o etnólogo, o objectivo é fazer funcionar um conjunto cultural, fazer aparecer as suas leis, ouvir-lhe os silêncios, estruturar uma paisagem, que não poderia ser apenas um simples reflexo sob pena de não ser nada“ . Descobertos, em linhas gerais, os contornos físicos de Moçambique, é altura de tentar ir ao encontro das gentes que por ali passaram, que África não era, por mais que se diga, um continente em branco, antes da chegada dos povos asiáticos, árabes e europeus. Mais do que uma terra de recepção de outras culturas, África foi, ao invés dessas teorias redutoras, um ponto de partida da humanidade e um local de construção de comunidades autóctones, cultural e socialmente sustentadas. Para que aceitemos esta postura, temos de ser capazes de colocar de lado toda a visão de uma África fechada, conferindo-lhe, pelo contrário, um estatuto próprio e uma dignidade inatacável. Desta forma, se “Até há poucos anos o passado de África era considerado sem interesse e a arqueologia africana tida como inexistente [porque] (…) Segundo um preconceito arreigado, os africanos não teriam tido qualquer participação na obra geral da civilização…” , devemos afirmar, categoricamente, que hoje tudo isto, em matéria de conhecimento e de convicções, se inverteu. Esta é uma fase em que África se revela de outra forma, por se ter descoberto e interiorizado a ideia profunda de que aqueles povos conseguiram “(…) criar as soluções civilizacionais que lhes permitiram organizar as sociedades, assegurando a sua transformação” . Nesta medida, “A História só está em condições de intervir a partir do momento em que os africanos recuperam o seu estatuto de homens normais“ . Quando se atingiu esse patamar, o que não deixou de ser um fenómeno tardio, mas a radicar em razões de um excessivo eurocentrismo, outro olhar se voltou para África em geral e, no nosso caso particular, para Moçambique. África com História Desvendada esta nova e importante faceta, outras vias se começaram a rasgar, passando pela emergência clara da igualdade e do reconhecimento da diferença, como refere Boaventura Sousa Santos (2005), para desembocar na aceitação de que o “passado, porém, não deixou, por isso, de ser parte activa nas sociedades africanas actuais“ . Nos tempos presentes, torna-se clara a certeza que, no continente africano, floresceram variadíssimas comunidades, sociedades, reinos, estados e nações, sobretudo a partir do III milénio antes de Cristo, mesmo que o Vale do Nilo constitua aqui uma excepção, por aí se localizarem estes tipos de organizações em tempos mais recuados, de acordo com Christiane Ziegler . Com esta mudança de paradigma do conhecimento, vem ao de cima uma nova realidade, ou seja, adquire-se como verdadeira, mas ainda não totalmente revelada, a constatação seguinte: África tem uma vida e uma História para contar, assentes em si mesma, não sendo, por isso, devedora a ninguém quanto àquilo que soube e quis erguer no seu seio, com as suas próprias condições materiais, humanas e, consequentemente, sociais. Nesta possível área geográfica de Mussa-bin-Mbiki, filho do sultão da ilha a que os portugueses de Vasco da Gama aportaram há mais de quinhentos anos, que ficou para a história com o nome de Moçambique, designação que se veio a estender por toda aquela região, está, nestes inícios do terceiro milénio depois de Cristo, a continuar a escrever-se, em ritmo lento e com sobressaltos, o dia a dia de uma nova nação, que ainda não é aquilo que, um dia, poderá e deverá vir a ser. Convém notar-se que estes contactos europeus foram mais uma camada populacional a sobrepor-se a tantas outras, onde se podem encontrar ecos e vivências de duas culturas étnicas e antropológicas bem diferenciadas, com o Rio Zambeze a servir de linha separadora: a norte, povos matrilineares, desde os Macuas aos Lomués e Maraves; a sul, sociedades patrilineares, em que sobressaem os Tongas e os Chonas. Mas estas clivagens não são as únicas, nem esgotam todas as fissuras existentes, não obstante variadíssimos pontos de convergência, quanto mais não seja de origens linguísticas recuadas. Como uma língua é sinónimo de vivências e culturas, torna-se natural que, por entre tantos cortes, se vislumbrem elos de união e pontes diversas. Voltando a um dos nossos pontos de partida e isto com intenção de colocar mais em evidência a importância de África, queremos deixar de pensar que esta zona do globo “tem sido lamentavelmente incompreendida e maltratada pelo resto da mundo. A humanidade simplesmente não reconhece as suas dívidas e obrigações para com África.” . Para melhor entendermos o mundo de que estamos a falar, talvez seja bom e lícito recordarmos que “os antepassados de toda a humanidade evoluíram a partir de África” , porque, citando a mesma fonte, 100.000 anos nos separam da sua diáspora para as diferentes partes do mundo. Com essas migrações, mostram assim uma grande capacidade de progressão e até de adaptação, tão diferentes foram, por certo, as realidades encontradas. Sem pretendermos ser exaustivos, porque são inúmeros os vestígios detectados a atestarem esse remotíssimo passado, não resistimos à tentativa de mostrar que as terras hoje de Moçambique e de toda a África Austral foram polvilhadas de culturas e de povos, de corpo inteiro. Queremos, desta forma, demonstrar que há um fervilhar subsariano a servir de suporte à actualidade. Não há ali páginas brancas, lisas, mas antes livros recheados de conteúdo humano que antecede, em muito, outros aparecimentos sociais, uns mais antigos e alguns mesmo bem mais recentes. Em história, todo o tempo é longo e, em África, essa verdade sai reforçada e amplamente comprovada. Neste enquadramento sócio-geográfico, cabem as referências que vamos fazer, para melhor cimentarmos as posições que temos vindo a assumir: isto é, tentarmos encetar uma espécie de devolução de África aos africanos, para uma aprendizagem e um conhecimento cada vez mais enriquecedores. Seguindo este raciocínio, aparece-nos, em Laetoli, na Tanzânia, um trilho fossilizado com pegadas de hominídeos datadas de há 3,7 milhões de anos, notando-se a evolução que vai do homo erectus, por exemplo, ao homo sapiens sapiens por estas paragens. Muito mais recentemente, na Namíbia, destacou-se uma laje com gravuras de há 26.000 anos, em que se nota a ligação evidente entre o uso do fogo e a faceta artística do ser humano (Reader, 2002), assim como se demonstra a domesticação de bovídeos, cabras, carneiros e outros animais, nessa mesma África Austral, dessa altura ou a surgirem posteriormente, o que releva marcas assinadas pelo homem há milhões e milhares de anos. Associadas a estas manifestações humanas e sociais, temos ainda provas de agricultura, urbanização, metalurgia, cerâmica, tecelagem e várias outras manifestações da sua acção criadora. Para provar esta tese, é notório que subsistem formas de organização social, que precedem quaisquer colonizações, com acontece “Entre os Senas, que vivem ao longo da margem sul do Rio Zambeze, em Moçambique [em que] o aluguer da terra e a capacidade para mobilizar os recursos humanos tem sido o factor principal que distingue uma aldeia de outra” . Numa evolução vagarosa, mas constante, de degrau em degrau, as sociedades foram-se estratificando e complexando, como se pode constatar em Mapumbugué, no Vale do Limpopo, que, em 1175 d.C., era capital de um estado, a exercer a sua soberania por vários centros distritais. Surgem-nos posteriormente os estados Xona, em meados do século XIII e os reinos de Monomotapa e do Grande Zimbabwé, que perduram até aos séculos XVI e XVII. Se localmente nasceram e se desenvolveram comunidades e sociedades organizadas, as migrações internas africanas também não podem ser desconsideradas. Contrariamente a isso, adquiriram mesmo uma significativa importância, em termos de aculturação, difusão ou domínio. Em qualquer dos casos, acarretam inevitáveis transformações e fazem despertar novos usos e oportunidades. Ao estarmos perante “mosaicos de povos irregularmente distribuídos (…) são evidentes as incursões e movimentos dos povos bantos” , que hoje habitam praticamente todo o sul de África a partir do Equador, na ordem de mais de 60 milhões de habitantes. Citando Etienne Gilson, tudo isto se pode afirmar, porque “Não estudamos a história para nos desembaraçarmos dela, mas para salvar do nada todo o passado, o qual, sem história, se desvaneceria no vazio. Estudamos a história para que aquilo, que sem ela, nem sequer passado seria, possa renascer para a vida neste momento único para além do qual nada existe.” Mas como tudo muda e nada é fixo, a “História do desenvolvimento da humanidade é um trabalho ao qual se tem de voltar vezes sem conta” . Com estas premissas, perfilhamos alguns pontos de vista defendidos por Leo Salvador (2000), quando nos diz que são características dos povos africanos, entre outras, o contacto com a natureza, a supremacia do bem comum, a oralidade e o sentido do sagrado. Se nos afastarmos destas realidades, nas abordagens feitas, desvirtuamos, de imediato, muito da sua própria essência e, dessa forma, destruímos a verdade que perseguimos, afincadamente. Ressalta desta leitura uma conclusão óbvia: a perspectiva eurocêntrica entrará, se aplicada tal como é, em violento confronto e choque com essas matrizes culturais. Com noções francamente diferenciadas nas suas bases, é preciso que se saibam compreender, para que não pereçam nenhuma delas, na busca de um cada vez mais aprofundado conhecimento e respeito mútuos. Se assim acontecer, estaremos todos melhor apetrechados para ir ao encontro dos suailis, na costa nordeste, dos angunes, extremo sul, dos angónis, Niassa, Tete e Zambézia, dos chopes, Inhambane, dos ajauas, Niassa, dos macondes, Cabo Delgado, isto sem tomarmos em linha de conta as outras muitas subdivisões, que ainda se podem estabelecer. É este contexto social com que temos de saber lidar, assim como com uma infinidade de marcas linguísticas da família banto. Sem purezas, neste campo das línguas, descobrem-se facilmente as infiltrações oriundas das referidas migrações e do aparecimento dos árabes, indianos, chineses, europeus, asiáticos em geral e tantos outros povos. A concluir, assinalemos que “(…) Para se compreender Moçambique, é necessário, pois e antes de mais nada, conhecer Manica e Sofala, fazer desse gigantesco território o ponto de partida de todos os acontecimentos” . Num território tão vasto, muito haverá, com certeza, a dizer e é isso que vamos fazer, seguidamente. Um passado africano a anteceder Moçambique Moçambique, tal como a grande maioria dos territórios de África subsariana, apresenta um passado humano e social, que só muito a custo está a ser desvendado. Para esse efeito, tem sido necessário pôr a falar os silêncios e desenterrar, um a um, para posteriormente os interligar e integrar, os mais variados testemunhos. Numa sociedade que se serve essencialmente da oralidade, das tradições, dos mitos, das feitiçarias e demais oráculos, que se apoia numa organização tantas vezes gerontocrática, é preciso deitar mão às mais variadas fontes e ciências. Qualquer pista isolada só conduzirá ao inevitável fracasso, quanto às investigações que se venham a tentar. Como dissemos, defendemos com convicção a ideia de que “A África negra como berço da humanidade é um facto histórico adquirido e estudado (…), é uma história de longa duração (…), uma história em construção” . Terra de contrastes orográficos destacáveis, espalha-se ora por vastas planícies, ora por longos planaltos, subindo às grandes elevações para, de uma forma abrupta e escarpada, descer, de rompante aos profundos vales. Com o mar como seu elemento determinante, tem no Índico o nos rios que a ele afluem uma outra componente essencial, fortemente associada ao seu próprio destino e caminhada, porque a água e o homem cruzam-se quase umbilicalmente. Aliás, muitos dos povoados e terrenos de cultivo têm como factor primordial, para a sua correcta e pensada localização, a distância às diversas fontes aquíferas. Em Moçambique, esta é também uma regra essencial. Com um passado bastante remoto em matéria de presença humana e povoamento, aparecem-nos, por esta terra além, uma imensidade de povos e etnias que a Conferência de Berlim – num tempo afastado, por um lado e recente, por outro – não tomou em linha de conta, aquando da definição de fronteiras. Num jogo que esteve apenas entregue aos europeus e seus interesses, os africanos acabaram por ficar de fora do seu próprio caminho. Se até esse ano (1885) foi nota dominante tal postura, que se vai prolongar pelos anos sessenta e setenta do século XX, tempos houve em que os parâmetros se começaram a alterar. África foi então vista e analisada como uma personalidade com força e vida próprias, pelo que também Moçambique veio a beneficiar dessa nova e moderna visão. Para trazer à tona de água as linhas de força de suas gentes – porque essas é que são os genuínos protagonistas da história, em diálogo com a natureza e seus recursos – vamos então deitar mão a uma continuada e esforçada tarefa, que não deixa de ser sempre limitada. Ou seja: “Quando o homem se põe a falar, fá-lo porque crê que vai dizer o que pensa. Mas isso é ilusório. A linguagem não dá para tanto” . Sabemos, no entanto, que estamos muito longe de chegar ao fundo da questão, isto é, à verdadeira história do povo moçambicano, porque “A história do nosso mundo é uma história que ainda é muito mal conhecida” . Se a esta área do saber ainda faltam muitas respostas, na razão directa, entre outros factores, da escassez de fontes e sua correcta e consequente análise, a África subsariana viu-se a braços com uma estranha dificuldade: o interesse quase exótico que suscitou, a sobrepor-se à procura da sua autêntica vida humana e social. Apesar da reduzida dimensão do que “se conhece das comunidades primitivas que habitavam o que é hoje Moçambique” , é possível definir alguns dos seus contornos gerais, desde que, para isso, se faça o necessário e desprendido esforço. Numa breve abordagem da sua pré-história, chegamos à conclusão de que as vivências e técnicas usadas nessas épocas, noutras latitudes do globo, não deixaram de ali ser sentidas, sincrónica ou diacronicamente. Ao recuarmos no tempo e sempre que falamos neste território moçambicano, temos de encarar os fenómenos sociais e a construção humana numa perspectiva sistémica e regionalizada. Com este raciocínio, a noção de África Austral encaixa perfeitamente nesta realidade, podendo ainda acrescentar-se algo do que acontece na costa do Índico, pelas implicações que acarreta. Sem querermos adoptar o conceito de pré-história apenas com a carga semântica europeia, ao aplicá-lo a esta zona ampliamos a sua extensão e generalizamos as suas características, com as devidas adaptações e correcções. Como quer que seja, passaremos a usá-la e, assim, registaremos algumas das manifestações humanas, que se sucederam desde esses tempos imemoriais. Já no século XVIII, o bispo de Moçambique referia o aparecimento de desenhos em rochas, chegando a falar-se de vestígios de pebble culture, a mostrarem-se paralelas a manifestações idênticas, surgidas noutros locais destas regiões. Tete, Niassa, as margens dos Rios Búzi e Zambeze põem em evidência um arte rupestre, que assinala a relação entre a criação artística humana e a realidade ou imaginação locais. Partindo do princípio que “Só o homem depende, para a sua sobrevivência, de elaborados sistemas de cultura e de interacção social [e de que] só o cérebro humano poderia organizar tão complexos sistemas“ , constata-se que em Moçambique e nas redondezas esta condição estava criada, enraizada e em franca aplicação. Entre outras inovações, há cerca de 70.000 anos, nesta África Austral constroem-se lâminas que vêm a ser usadas como armas de arremesso, pelo que as suas populações denotam uma apetência especial pela caça, pela recolecção e até uma capacidade para produzir plantas, muito tempo antes de a agricultura ter dado os primeiros passos no Crescente Fértil, nas margens asiáticas dos Rios Tigre e Eufrates. As margens do Rio Klasis, na África do Sul, atestam esta precocidade na manipulação botânica, tornada factor de prosperidade para as respectivas comunidades humanas e sua conveniente e adequada organização social. Mais paradoxal podem parecer estas conclusões, se atendermos ao facto de que os avanços tecnológicos têm sempre algo de componente tardia em terras africanas. Tendo em conta que uma história apenas baseada em documentos é uma “fórmula perigosa” , torna-se evidente que só os contributos da arqueologia, da antropologia e outras ciências sociais podem fazer-nos chegar a este estado de conhecimentos. Há ainda quem diga que os estudos linguísticos comparados também se revelam, a este propósito, de uma grande importância, sobretudo quanto a conteúdos lexicais, como alguém descobriu relativamente ao conceito de bovídeos e outros. Mesmo que a um ritmo lento, em África não se estagnou em tempo algum. Houve sempre avanços, entremeados com recuos, admitindo-se, também aqui, que “O progresso técnico é definido, de modo geral, como um acréscimo do conhecimento que os homens têm das leis da natureza aplicadas à produção. Consiste, pois, na invenção de produtos e sistemas novos” . Muito embora saibamos que esta afirmação se reporta a outros tempos e latitudes, com a devida cautela não a deixamos de fazer recuar e encaixar nestas áreas, numa perspectiva histórica e geográfica. Desejamos, por esta via, contribuir para um melhor conhecimento da memória colectiva da humanidade e mostrar que a África Austral respira vida humana e criatividade, muitos anos antes dos relatos aparecidos e ou forjados, sobretudo a partir de 1500 d.C., sensivelmente. Com base em “novos métodos críticos adaptados à utilização de fontes orais e contribuições da arqueologia” , é possível falar na planta de estruturas do Paleolítico Médio na África do Sul, na cultura sobre seixos, em sítios arqueológicos do norte de Moçambique, em treze estações do Paleolítico Médio, na referida África do Sul, em enterramentos, comportamentos utilitários e simbólicos. A verdade destas fontes mostra-nos que “Desde o Centro da Tanzânia até ao Cabo, a arte rupestre naturalista, que chegou até aos nossos dias, revela-nos muito do comportamento dos povos que a criaram. Apesar dos motivos subjacentes a esta arte radicarem nas crenças míticas e religiosas e nos rituais dos grupos a que pertenciam, ela reflecte o seu dia a dia.” Conhecedora da cerâmica, da domesticação de carneiros, esta gente do Paleolítico Superior mostra, pela arte e pelos demais vestígios, a sua ligação à caça, à vida campestre, às lutas e danças, às actividades mágicas e rituais, assim afirmando a sua apetência pelas organizações comunitárias e sociais. Dando sequência à sua própria evolução, no período que vai do terceiro milénio ao século VII a.C., de acordo com a obra História da Humanidade, no seu segundo volume, anota-se a presença de uma outra pintura rupestre, na África do Sul, em que se detectam pessoas em transe. Por sua vez, no Zimbabwe, na Zâmbia e no Malawi, vislumbra-se, por entre uma tecnologia microlítica, a continuação de uma economia recolectora. Por aí e mais a sul, as pinturas e as esculturas colocam ao nosso alcance animais, figuras humanas, vestuário, armas e artefactos, prosseguindo com a demonstração de cenas rituais e mesmo de culto. Tudo isto demonstra que, no meio das preocupações pela subsistência diária, ainda sobrava tempo para as manifestações artísticas, ou, então, para deixar legados para a posteridade. Ao mesmo tempo deixavam-se invadir pelas sempre enigmáticas questões de um além, sobejamente desconhecido e misterioso. Prossegue-se continuamente com sistemas de ocupação e de povoamento. Sempre que se dão passos no tempo, assiste-se à complexidade das respectivas organizações, com saída nas formas embrionárias até se chegar aos reinos e impérios. Se, como vimos, “A pré-história descobre em África jazidas que testemunham presença muito antiga do homem nestas regiões” , parece dar-se como certo que, no espaço compreendido entre Angola e Moçambique, incluindo estes dois territórios, se conheceu “outrora uma mesma civilização” . Por estas bandas, foram muitos e diversos os reinos, desde os Mossis ao Luango, ao Congo e aos Anzicos. Relativamente ao espaço que nos serve de base de trabalho, podem ainda citar-se Barotsé, Lunda, Catanga, Urua, Balundas, Maniemas, Uniamnezi, Urundi, Ruanda, Uganda, Unioro, Bosquímanos e Hotentotes. Mais concretamente, em Moçambique, temos o Marave, o Monomotapa, Manica, Gaza, Boroto, Fumo, Sena, Bonga, Tsonga, Shona, Vátua, para apenas enumerarmos alguns deles. Com base nos dados disponíveis, chega-se à conclusão que povos e culturas organizados foram crescendo, de forma autóctone, para se virem a desenvolver, persistindo, até aos diversos domínios coloniais. Por vezes, a sua consistência levou-os a perdurar, afirmando-se, como entidades com vida própria perante os novos poderes. Sem estabelecer uma certeza científica, porque este trabalho também se pode considerar uma tentativa de ensaio, esta continuidade quase se converteu no futuro alicerce da almejada identidade nacional, que ainda hoje se procura em Moçambique e em muitos outros estados, sobretudo de matriz africana. Foi este contexto que os portugueses vieram a encontrar, no século XVI, muito tempo depois de os árabes ali terem estabelecido as suas redes de contactos e os seus domínios de influência. Dá-se então o inevitável confronto, que estala sempre que o verniz se desfaz . Como pretexto para estas azedas relações, deparamos, por um lado, com razões comerciais e, por outro, com motivações de ordem religiosa e civilizacional, renovando-se velhos mitos e metas europeias e ocidentais. Em linhas gerais, associando organização social e sobrevivência económica, abordaremos, de seguida, algumas das comunidades que aqui mais se salientaram, em termos de antecedentes dos tempos e realidades actuais. Sem pôr em causa a pré-existência de outras organizações sociais, auto-sustentáveis ou em regimes económicos muito embrionários, inicia-se, por volta do século XII, um mais intenso contacto com os povos islâmicos, que se afastam das aludidas zonas costeiras para o interior, assim dinamizando as trocas de todos os níveis. Tomando como fonte privilegiada o Dicionário Temático de Lusofonia (2005), anotamos alguns factos mais relevantes, quanto a este nosso propósito: Ao chegarem ao actual território de Moçambique antes dos portugueses, os suailis – povos surgidos da miscigenação das gentes locais com essas novas migrações – procuram também no ouro razões para a sua fixação, sobretudo pelas bandas de Angoche, Ilha de Moçambique e Quelimane, no enfiamento do Monomotapa, a então catedral desse precioso metal. Conhecedores de técnicas, que talvez não estivessem ao alcance de outros, os monomotapas dominam, para além da mineração e comércio, a agricultura, a pastorícia, que se transmitem, necessariamente a quem deles se abeira. Não é de estranhar-se, portanto, a cobiça que estas populações despoletavam, a ponto de ser avidamente disputadas as suas riquezas e realizações. Ali chegam os portugueses em 1505 e, em 1541, passam a instalar-se paredes meias com os próprios súbditos desse rico reino. Como ali existia uma organização eficaz, baseada no poder de um senhor absoluto sobre os seus vassalos, estendendo-se ainda aos chefes regionais, eram frequentes os avanços em espaço e influência, ora por via pacífica e por alianças, ora pelo recurso à força e à guerra. Até finais do século XVI, tudo pareceu andar bastante bem e a seu favor. Acontece que, em 1590, faleceu Mutapa e a sua sucessão desencadeou uma série de conflitos, que levaram ao inevitável enfraquecimento daquele reino e até à sua destruição e desmembramento. Como desfecho para este novo quadro social, no século XVII, entram em acção, ou reforçam a sua importância, outros grupos sociais, designadamente: Maraves, a norte do Rio Zambeze, comunidades Yao, no Niassa, e os Macuas e Lomués, um pouco mais acima. Neste último caso, praticavam-se já formas aparentemente capitalistas, mormente no que concerne à comercialização de escravos, marfim, gomas e borracha, em troca de armas. Para classificar a prática dos mercados humanos, que é, em África, instituição antiga e, de certa forma, generalizada, Colin Clark fala nessa alternativa “mais repugnante: a escravatura” . Nesta cena comercial, aparecem também, aí pelo século XVII, os indianos, que chegam a obter uma espécie de monopólio em seu favor, concedido pelo vice-rei da Índia, que colocava na mão da Companhia dos Manzanes essas funções. Esta internacionalização comercial circulava em volta do eixo África Central e Oriental, a envolver contendas entre portugueses (apoiados pelos seus parceiros, mais ou menos aceites – os indianos) e árabes, apenas com o intuito de manterem o respectivo domínio monopolista. A este propósito, convém notar-se que a administração de Moçambique estava sob a tutela de Goa, desde 1505, situação que se manteve até 1752, altura em que o Marquês de Pombal deliberou fazer cessar essa dependência. Assim, Moçambique passa a usufruir de um Governador Geral e, em 1760, vê acrescentar-lhe um Secretário de Governo. No meio de tudo isto, criaram-se as capitanias e, mais tarde, os prazos, na zona do Zambeze, que caminharam no sentido de autênticos estados militares e secundários, a rivalizarem com a pretendida autoridade central, muito discutida e contestada, não obstante os esforços tendentes a evitarem a africanização desses mesmos sistemas de concessão de terras – por três gerações – e de organização social. O século XVIII viu ressurgirem os reinos do sul, ao mesmo tempo que entram em cena, de uma maneira mais acentuada, outros povos europeus, e doutras paragens, com a determinada intenção de desalojarem os portugueses daqueles negócios e paragens. Nesta caminhada, o século XIX é o tempo das grandes Companhias, que vieram a marcar a governação e a vida dos moçambicanos, em detrimento dos poderes centrais e das autoridades locais, que, umas vezes, são parte da solução e, noutras, do problema, conforme as situações e as conjunturas. Com tudo a girar “à volta do lucro fácil” , este século é dos mais agitados, a fazer “rebentar, pelas costuras, a fraca administração colonial portuguesa” . Aqui se joga um xadrez complicadíssimo e continuadamente agravado: a vontade de afirmação e imposição portuguesa, a rivalidade de outras potências, a proximidade da civilização inglesa – que cerca Moçambique praticamente por todos os lados – e as manifestações de desagrado e de resistência das comunidades locais. Estas situações, a escravatura, em concreto ou de uma forma disfarçada, o trabalho forçado (chibalo), as constantes tributações e produções “à força”, a assimilação, os diversos mecanismos de discriminação, as legislações diferenciadas, a desconsideração pelas sociedades locais e sua organização, eis, entre tantos outros, uma dose de ingredientes que de alguma forma estão na base da procura de uma identidade e, por essa via, de afirmação tendencialmente nacional. 2. Perspectiva conceptual e metodológica Conceitos a abordar e respectiva metodologia Com base num apelo forte à interdisciplinaridade, não deixamos de ter de apelar a alguns registos que se nos afiguram imprescindíveis, para lograrmos obter o objectivo a que nos propusemos. Entre eles, destacamos, como vimos já, os conceitos de etnia, nação, estado-nação, estado, nação-estado, o que implica a necessidade de se falar de nacionalismo, suas fundamentações e razão de ser. Sendo esta uma abordagem multifacetada e plural, em termos de objecto e problemáticas, situamo-la num tempo e num espaço, porque, ao debruçarmo-nos sobre uma sociedade, nunca se pode ser atópico, nem insensível às vozes do tempo, que, em África, têm uma outra sonoridade. Aqui, a linearidade da lógica ocidental perde-se bastante, nomeadamente no que diz respeito às actividades camponesas. Nesta conformidade, defende-se, nesta lógica, uma outra perspectiva para esta questão crucial que, com o espaço, serve de esteio à vida das próprias sociedades. Por outro lado, é um sinal de alerta e um aviso à navegação, apelando a outras leituras de temporalidade e sua ecologia, para se perceber esta África e este Moçambique como um todo, incluindo as suas vivências e modelos culturais. Há então que aceitar como um dado adquirido a “noção de tempo paciente e eterna dos negros” e com ela partir para esta caminhada. Ao partirmos do pressuposto que a história, no entendimento de Lucien Febvre, não é automática, mas problemática, por cada resposta encontrada depararemos com um novo desafio, uma vez que tudo muda, sobretudo no domínio social. Assim escrevia Marc Bloch, nos famosos Annales, nos princípios do século XX. Hoje, face à velocidade mais acelerada dos acontecimentos, esta noção adquire maior acuidade e pertinência. Mesmo que o tempo africano seja encarado à luz de outros prismas, como vimos, também aqui se notam as tendências para as alterações, ainda que mais lentas e menos perceptíveis. Mas os factos, sempre diferentes, lá estão para o provar. Colocados perante a necessidade de distinguir o curto e o longo prazo (Vd. Guelec & Ralle, 2001), temos de enveredar, também em Moçambique, por esse caminho, tendo em conta que cada época possui as suas características, a sua envolvência e consequente representação. Mesmo assim e talvez por isso, é importante assentarmos os nossos esquemas mentais numa postura cronopolítica, que associe o tempo e a velocidade, ainda que esta, às vezes, pareça quase não existir. Certo é que ela está ali presente como em todas as demais comunidades. Para sermos mais precisos, defrontamo-nos com velocidades diversas, de acordo com as diferentes áreas sociais. Não há, assim, uma e uma só velocidade, mas andamentos diferenciados e variáveis. Com percursos simultaneamente comuns e não condizentes, as mentalidades e as tecnologias circulam, nos ponteiros do tempo, em faixas quase opostas, o que chega a dificultar imenso o avanço para novos métodos, novas aplicações das inúmeras teorias e, afinal, para a construção da nova nação que, em Moçambique, se está a erguer, dia a dia. Sendo que “(…) Toda a cultura é transmitida pelas tradições reformuladas em função do contexto histórico” , estas conclusões tornam-se sempre pertinentes. Nesta medida, cada um dos conceitos que vamos tentar definir passa pelo crivo e pelo funil do tempo, do espaço e dos agentes que vivem e actuam em cada momento. Num contexto alargado, José Palmeira define nação como “(…) uma determinada população humana, que partilha um território histórico, mitos e memórias comuns, uma cultura pública de massas, uma economia comum e direitos e deveres legais comuns a todos os membros” . Ao adoptar esta perspectiva abrangente, com acento tónico no termo comum, pretende então realçar os fortes laços, que unem todos os parceiros e elementos actuantes de um espaço, seu passado e sua organização política e social. Assume, desta forma, a existência de mudanças e continuidades, o que se nos afigura como uma postura acertada, mas que nem todos perfilham, designadamente Max Weber, ao afirmar que “(…) A nação, tal como o estado, não possui carácter substantivo ou intemporal. Não corresponde (…) nem a uma realidade étnica fundada numa comunidade e raça, nem a uma comunidade linguística ou de confissão: a nação é, antes de mais, a expressão de um poder fundado sobre o prestígio” . Esta visão weberiana constrói-se, assim, sobre o prestígio, o que, a não existir, por absurdo, levaria a que não pudéssemos falar em nação enquanto tal. Mas não é isso que acontece, antes pelo contrário. Ora incidindo sobre o carácter sentimental, ora agregando outras componentes, a nação, que se opõe a pátria, por pertencer mais ao campo do ser (membro de uma comunidade) que do ter (uma terra, um espaço), passou, conceptualmente, por diferentes fases e matizes, o que faz entender, apesar de tudo, aquilo que Max Weber um dia pensou e escreveu. Com a distância, relativamente ao conceito de nação, sugerida por Eric Hobsbawn, que a vê quase como um mistério , mas ligada a prismas políticos, técnicos, administrativos, económicos e ainda outros, assim se fundem os Weberianos e outros pensadores. Se é no século XV que melhor se expressa esta noção, acreditamos, todavia, que tal realidade tem precedentes e, acima de tudo, vai encorpar-se progressivamente para dar vida, após a Revolução Francesa, a um tema que se lhe encontra amplamente associado e arreigado: o nacionalismo, com toda a carga de manifestações que acarreta. Quando se envereda pela definição, sabemos, reafirme-se, que temos dificuldades em ir ao fundo do cerne das questões. Aliás, aplica-se, neste caso, um pouco da filosofia cartesiana: por mais que se diga, fica muito mais por situar, por catalogar, sendo que também as interpretações podem ser divergentes e até haver diversas verdades. Mas a inacção é bem pior que a tentativa de descobrir aquilo que existe em cada palavra, em cada conceito e a sociologia e a história não deixam de ser “espaços de pesquisa”, dependentes de uma qualquer problemática, de acordo com Pierre Raymond (In A História e as Ciências, 1979, p. 18). Antes de prosseguirmos, convém aclarar uma situação que é esta: pode acontecer que, ao invés de optarmos por definições – que não deixaremos de lado – partamos para as oposições e os contrastes, do género pátria versus nação e assim por diante. Ou, ainda, pelos seus pontos de contacto e complementaridade. Desta forma, se não há nação sem povo, nem estado sem território e poder, é natural que entre nação e estado se estabeleçam laços de dependência e de interligação, como facilmente se depreende. Mas temos de afirmar que há nações sem estado e nacionalismo sem nações, como sucede, por exemplo, com os povos árabes. Por outro lado, ainda que queiramos fugir a quaisquer laivos de eurocentrismo, não podemos escamotear o facto de que muitas ideias, que aqui, neste capítulo, veiculamos, pertenceram a esse território de pensamento e acção. Apesar destas e outras reticências, começamos por procurar delimitar o que devemos entender por nação, ao mesmo tempo que afloramos, evidentemente, os demais campos semânticos. Mas por ser a base da nossa tese a busca de uma identidade nacional – uma nação – moçambicana, é normal que lhe consagremos uma maior atenção. Afinal “De que estamos a falar?“, questiona-se Jean Leca . Precisamente de uma palavra e de um contexto de nação que pertencem à “(…) esfera do individualismo político-filosófico“ , como o “(…) mais vasto dos grupos humanos caracterizado pelo mito dos antepassados comuns” , assim se citando Connor. Acrescenta que, numa teoria sociológica, “a nação é uma sobreposição de sistemas culturais, económicos e políticos” , o que alude a uma outra realidade, muito tempo apagada e arredada do pensamento europeu sobre África: a existência da sua historicidade, materializada e concretizada ao longo dos tempos. Daí que, como dissemos, se possa referir que estamos perante uma acumulação de sistemas, renovados, continuamente. Não partimos, então, de um qualquer tábua rasa, porque naqueles territórios também se faz e se vive o quotidiano de uma existência que deixa marcas, mais ou menos perceptíveis, melhor ou pior evidenciadas. Numa perspectiva histórica, este conteúdo sofreu bastantes modificações, podendo até extrapolar-se que há uma nação anterior à Revolução Francesa e uma outra posterior. Seguindo Jean Luc Chabot , “a nação foi, a partir dos séculos XII- XIII, a organização política da sociedade que permitiu progressiva e ulteriormente o reaparecimento da forma estatal de poder” , assim se caminhando para o estado, a concretizar-se num longo espaço temporal, que vai dos séculos XV e XVI em diante. Com a eclosão da citada Revolução Francesa, põe-se em causa a representação e a legitimidade até aí vigentes, para dar lugar, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no seu Artigo 3º, à nação como “(…) única entidade de quem emanam todos os poderes” . Qualquer que seja o sentido que atribuamos a estas noções, estão-lhe sempre implícitas outras dimensões, tais como a soberania, o território, as fronteiras e consequentes formas de organização e poder. Se há variações quanto à nação, elas são ainda patentes e evidentes no que diz respeito à soberania e até às fronteiras. Estas, no caso de Moçambique e da maior parte dos países africanos, foram traçadas, como veremos, de forma arbitrária, no interesse exclusivo e nos jogos de bastidores das potências coloniais europeias, como decorre da Conferência de Berlim (1884/1885). Presidiram a estas decisões critérios de valorização metropolitana, em detrimento da existência real de etnias, povos e culturas, assim divididos e separados pela lógica da força e não pela força da lógica. Sendo a nação uma comunidade de fala, de identidade, de grupo de destino a vir do passado, de cidadania conjunta, ainda que nem sempre coincidentes, o solo e o sangue falam aqui bem alto. Há ainda quem vá mais longe, defendendo que nela se encontra uma alma. Já Mohamed Harbi, no seu trabalho “O mito nacional árabe em questão” , se inclina para uma nação com base na língua e na história. Por sua vez, Sieyès, em pleno vigor da Revolução Francesa, proclama que “o terceiro estado é uma nação completa” . Numa espécie de pólos extremos, ora se alarga esse conceito, ora se restringe a um grupo social, uma ordem (o povo). Com o caminhar dos tempos, a nação desfaz-se, pouco a pouco, com o marxismo, o proudhonismo e, mais tarde, com o pós-modernismo, mas, pelo meio, ressurge, mais fechada que nunca, na Alemanha, na Itália, em Espanha, em Portugal, no Japão e muitos outros locais. Entretanto, Castelar, em 1870, dissera: “A pátria é a nossa nação” . Com esta afirmação, associa dois conteúdos num só. Deste modo, pátria e nação confundem-se em vez de se distinguirem. Acompanha assim Pierre Vilar, quando este aborda o estado, a nação e a pátria em Espanha e na França, 1870 a 1914, para dizer que a nação está ligada ao sentimento de pátria, com significação oitocentista, acrescenta . Ao vivermos a história que “é uma tarefa sempre em aberto, que continuamente nos solicita” , vamos encontrar outras definições, estendendo-as agora ao estado, estado-nação, nação-estado e etnias, dentro da metodologia que já indicámos, interligando-a com a hermenêutica, que muito nos interessa . Por razões que se prendem com os nossos objectivos mais concretos, incidiremos, mais em especial, sobre autores que tratam estas matérias numa perspectiva próxima de África em geral e de Moçambique, em particular. Queremos assim arredar de vez o estigma de uma África portuguesa que era “aos olhos do mundo, um reino silencioso” . Por isso, vamos dar esses passos em frente. É este um povo em movimento, criador de culturas, a unificar-se em nação, num “Espaço onde várias comunidades [raciais, étnicas, linguísticas, religiosas, económicas e políticas] buscam, como um todo estruturado, organizar-se em Nação-estado e realizam ou procuram realizar acções para o seu desenvolvimento” . Vê-se aqui uma concepção que alia conteúdo e acção, por ali haver pressa em atingir níveis de desenvolvimento, que se deseja, vivendo uma activa historicidade, factor de identidade cultural. Este mesmo autor percorre um caminho que o leva até à nação-estado, no momento em que os limites culturais sejam coincidentes com as fronteiras políticas e com a ordem social e organizativa. Uma condição se impõe para que se esteja perante uma nação: a consciencialização do sentimento de pertença e a sua valorização “como grande referente identitário e de reconstrução nacional” . No que se refere ao estado, dentro desta mesma linha de africanidade, este é a organização política de um povo, o controle soberano do território e a defesa do bem-estar social da colectividade e da justiça, tendo como seus elementos a população, o território e o aparelho de poder, assim se caracterizando por José Palmeira (Vd. 2006). Ao contrário, segundo o mesmo autor, a nação tem como base uma cultura, uma religião, uma língua e uma etnia, com um sinal de pertença a uma comunidade e uma unidade política. Para um enquadramento activo, “o envolvimento de um Estado, no sistema geopolítico mundial, é fruto de um conjunto de opções tomadas pelos titulares dos órgãos políticos legitimamente mandatados para o efeito, nos termos do respectivo direito constitucional” . Como base para o conceito de soberania, escolhemos Roberto de Mattei, muito embora dele discordemos em múltiplos aspectos, que não naqueles que vamos apresentar. Como tópicos de abordagem, ajudam-nos a contextualizar os pontos que estamos a dissecar. Ficam de fora, por isso, outras apreciações quanto ao conteúdo geral da sua obra. Abordando a soberania desde a sua versão clássica, greco-romana e ainda a cristã, começa por afirmar uma certa intemporalidade deste pilar político e de organização social, nestes termos: “… A soberania e o estado não são fenómenos históricos e convencionais, mas dados permanentes e necessários da sociedade humana.” . Prossegue então o seu raciocínio: “(…) A existência de uma sociedade política organizada sobre um princípio de autoridade suprema de governo é um facto testemunhado pela história de todas as civilizações e pela reflexão política de todos os tempos” .Num estilo directo, distingue, assim, em linhas gerais, vários dos conceitos aqui apresentados, da seguinte forma : a) – Nação – Comunidade dos homens que descendem dos mesmos antepassados, com uma origem latina (nasci), que aponta para as ideias de nascimento, filiação, descendência, a que associa um vínculo temporal entre gerações. b) – Pátria – Etimologicamente, terra dos pais, sendo um território habitado por um povo. c) – Estado – Unidade orgânica e organizativa e um povo. Em complemento, “(…) Geneticamente, a nação precede o estado, mas, do ponto de vista teórico, o estado é um grupo social mais perfeito que a nação, em razão da sua finalidade e dos métodos que aplica” . Por estarmos a debruçar-nos sobre Moçambique, nosso objecto essencial, entendemos logo que este último parágrafo não tem aqui lugar, por se viver um estado e ainda se não ter conseguido levantar uma nação e uma identidade moçambicanas. Mas esse esforço faz-se dia a dia. Se, com variações temporais e sociais, pátria, nação, estado ainda oferecem algumas dúvidas quanto ao seu alcance e significado, o mesmo se pode dizer também da soberania, que vagueia, mais acentuadamente, por uma maior volatilidade. Anda, assim, mais ao sabor dos tempos, dos pensamentos políticos e da ideologia dos sucessivos momentos. Com a soberania nas mãos dos monarcas, dos imperadores e até distribuída por outros órgãos, isto nos primórdios, nas épocas medieval, moderna e ainda no feudalismo, respectivamente, com Jean Bodin aparece relacionada com a supremacia da justiça e da lei, a cargo do rei. Mas, passados alguns tempos, a “(…) dissolução dos vínculos que sujeitavam a soberania à lei marca o início de uma concepção do poder político que surge na Europa quando a Idade Média começa a declinar” . Com o Tratado de Vestefália (1648), que constitui uma espécie de alicerce da Europa moderna, os estados libertam-se de tutelas imperiais, em muitos casos, e eclesiásticas, noutros, para se apresentarem como detentores da sua própria soberania e independência, numa igualdade jurídica, que implica o princípio do equilíbrio e a razão de estado como nova ordem internacional, a fazer fé na opinião de Roberto de Mattei. Hobbes, Rousseau, Locke e Montesquieu, antes de outros, vêm a terreiro opor formas diferentes ou complementares de soberania, ora apoiada num órgão, numa pessoa, ora colocada na mão directa do povo, como acontece com Rousseau. Como nos diz Jacques Delors, “Governar é ter em conta a cultura e valores“ , sem descurar a força dos antecedentes e, por isso, toda a soberania sofre os efeitos dos diversos movimentos sociais, que se vêm a repercutir nas visões e ideologias que marcam cada um dos nossos tempos históricos, em profunda ebulição, sobretudo desde os finais do século XIX até à actualidade. 3. Portugal e Moçambique – dos primeiros contactos à colonização efectiva Séculos XV e XVI como ponto de partida Os séculos XV e XVI tiveram, na Europa e em Portugal, um poderoso efeito transfronteiriço, sendo que o Oceano Atlântico se tornou a grande placa giratória e uma imensa rotunda. Uma arquitectura mundial e civilizacional, em acelerada ruptura e não menor vontade de sair das suas malhas, estava em marcha. Projectavam-se as grandes viagens, alimentavam-se sonhos e mitos, e o velho mundo mostrava toda a sua ânsia e combativa vontade civilizadora, entendida como vocação e missão, que lhe apareciam geneticamente coladas. Daí em diante, o futuro de Portugal passava também a escrever-se em cima da água e noutras paragens. Adivinhavam-se, nas palavras de Mia Couto, as “emboscadas da História”, que chegariam a Moçambique, primeiro a bater- -lhe à porta e, seguidamente, cerca de quatro séculos vividos assim a meias, a entranhar-se por África dentro, gerando as suas actuais fronteiras físicas e respectivo contorno geográfico. Integrando-se numa visão mais vasta, que tem por limites forças temporais e religiosas, este país continental europeu participa do amplo movimento que opera, além-mar, profundas transformações e, assim, “Entre os séculos XV e XIX, quase todo o continente (africano) foi empurrado para uma economia mundial dominada pela Europa” . Entretanto, deparamos, neste caso, com uma situação particular: em vez de estarmos perante um objectivo praticamente definido e previamente traçado, quanto a Moçambique em especial, vamos encontrar esta terra por uma fortuita ocasionalidade, porque a meta era outra, essa sim a suceder a um meticuloso plano: a oriental e longínqua Índia. Acontece que a confluência feroz entre os oceanos Atlântico e Índico fez Bartolomeu Dias aportar ao sul de África, para, alguns anos mais tarde, Vasco da Gama e seus homens virem a parar em Quelimane e na Ilha de Moçambique, situação não programada que está na origem de mais de cinco séculos de contactos luso-moçambicanos. Iniciado este diálogo, que nem sempre se ficou pelas palavras mansas, a atracagem, curiosamente numa Ilha a curta distância de um tão vasto continente, não possibilitou, durante séculos, que se vislumbrassem largos horizontes. Assim, “até finais do século XIX, a sua influência nunca foi para além dos seis quilómetros da fortaleza de Mossuril, o sertão da Ilha de Moçambique” . Partir-se-ia, daí em diante, de M'Biki para um Moçambique maisvasto e duradouro. Descontando algum provável excesso de linguagem, tem-se como certo que, nesse longo período temporal, os portugueses quedam-se quase exclusivamente pelas bandas do litoral, com uma dourada incursão, mais profunda, pelo Vale do Zambeze. Desta forma, a construção do espaço aqui falado teve avanços quase estranhos: se as gentes portuguesas entram na África Austral pelo sul, cuja marca simbólica é o padrão de Kwaaihoek, vêm a conhecer melhor Moçambique novamente a partir do mar e do Centro / Norte para Sul, contrariando a lógica natural da progressão territorial. É uma espécie de paradoxo, que talvez não deixe de ter as suas explicações. Pelo meio ficou um certo hiato territorial praticamente por tocar durante vários anos, porque raramente a atenção deste povo da ponta europeia se interessava por essa África distante. Na sua mente só cirandavam a Índia e as especiarias, desfeito que fora o mito do Preste João. Com essas caminhadas, não descuravam, no entanto, um aspecto que reputavam como essencial: a marcação dos espaços que queriam sob sua alçada e posse, para, mais tarde, figurar no seu pecúlio patrimonial. Para esse fim, recorriam a um método simples, que era o da colocação de padrões, que deteriam uma importante mensagem: “A presença material e simbólica dos padrões anunciava que determinado lugar fora descoberto pela autoridade de Deus e do rei. O deus era Cristão, o rei era português. O padrão constituía prova de precedência para efeitos de atribuição de títulos e possessões – o incipiente direito internacional da altura não exigia a ocupação efectiva. Era também um símbolo da cidadania e o sinal da cristandade. Para além disso, era uma marca de colonialismo” . Com esta longa citação, três considerações são abordadas: sinalização espacial, simbologia e vínculo de soberania. Naquela época, para Moçambique, enquanto terra instrumental e praça de passagem, era quanto bastava. Como meio de legitimar um eventual futuro amplo espaço a civilizar, por imperativos vários, desde o pensamento e prática política dessa actualidade portuguesa aos esforços de cristianização que a Igreja e o Papa determinavam, aquilo era então o que se mostrava como suficiente e necessário. Nesse século XVI, a talassocracia marítima que se desejara saía do Tejo e parava na Índia, não importando muito, senão por razões logísticas, todas as outras paragens e localidades intermédias. O domínio da tese que vigorava ficava-se mais pela carga simbólica da posse de um bem, que se não explora, do que pela sua real e eficaz utilização. Com uma visão mercantilista e marítima, em que os suportes locais apenas se reduzem a um papel quase secundário na política expansionista prosseguida, a criação de feitorias, para intermediar o comércio local, era o pano de fundo de todo esse tecido social, porque, nesses anos, “os portugueses nunca seguiram uma política de descoberta, conquista, colonização e fixação” . Numa rota de cabotagem moçambicana inicial, Quelimane, onde se processam as primeiras negociações com povos portadores de uma cultura afro-islamizada, logo em Janeiro de 1498, vai trocando posições com a Ilha de Moçambique (Março do mesmo ano), local privilegiado para o estabelecimento de um posto intermédio nesse apetecido Oceano Índico. Compreende-se melhor agora que o triângulo Ilha de Moçambique, Quelimane e Sofala tenha sido o pólo escolhido para as primeiras acções em solo moçambicano, que, desde cedo, passaram a incluir o interesse então pelo ouro do Momomotapa. Enquanto este centro era palco de acesas disputas, o sul permanecia no esquecimento ou mesmo no desconhecimento generalizado dos portugueses que, de olhos postos na Índia, se abeiravam da costa moçambicana. Não queremos, afirmar, no entanto, que ao sul não tinha sido dedicada qualquer atenção. Situado num patamar de segunda classe, em termos de interesses coloniais, mesmo assim ali chega Lourenço Marques (1544), o que faz baptizar aquela baía com o seu próprio nome. Dez anos depois, procede-se ao reconhecimento da costa, como uma primeira abordagem espacial desse espaço litoral e pouco mais do que isso. A “(...) pressão das potências da Europa do Norte (...) sobre a carreira da Índia e o porto da Ilha de Moçambique levou os responsáveis portugueses a procurarem, desde cerca de 1610, uma escala alternativa no arquipélago de Bazaruto” . Apoiadas nesta mesma fonte, sabe-se que a fragata S. Paulo percorreu a citada Baía no ano de 1675, então designada como Cabo das Correntes, mas sem deixar de ser o sítio da Delagoa. Não obstante estas esporádicas e sazonais incursões, era no centro moçambicano que residia o ponto fulcral dos objectivos portugueses. Na aplicação de um triplo conceito que engloba uma política de três “C”, que passa pelo comércio, cristianismo e civilização, tal como nos dizem Catherine Coquery e Vidrovitch Henri Moniot (2003), a satisfação de saber que Moçambique existe no balanço patrimonial português serve a contento as pretensões da coroa e seus navegantes. Neste contexto, é escassíssima a presença e continuidade de portugueses por aqueles sítios, pelo que, efectivamente, será quase descabido falar-se, a este propósito, em qualquer tipo de colonização, tal como a entendemos na actualidade, ou então a catalogá-la como o sistema que, partindo do termo colono (cultivador), visava povoar e explorar uma terra estranha. Mas a implatação deste esquema em cada local não se tornou tarefa fácil, porque “O governo de possessões distantes foi sempre problemático, pois os interesses dos colonos etravam em choque com os dos indígenas e com os da metrópole” . De início, era, pois, na costa que se levavam a cabo a maioria das operações neste ponto da África Oriental e Austral, apesar de se considerar que, no século XVI, a África estava atribuída aos portugueses, por força do Tratado de Tordesilhas. Afirmava ainda que o Império Português exercia uma verdadeira supremacia marítima, chave do seu triunfo circunstancial, por vezes, efectivo, noutras ocasiões. Com sua costela europeia, este rectângulo continental português comungava do seu capitalismo comercial e era seu agente privilegiado na escala da mundialização. Preenchia, por esta via, uma condição essencial para se aventurar pelos novos mundos africanos, onde levava, a par dessa outra dimensão, o seu cristianismo como marca bem vincada. Numa Europa Ocidental, com uma lógica de poder centralizado e estados modernos, os séculos XV e XVI foram o período escolhido, de uma forma certeira, para estas expedições, como bem assinala, na mesma obra, Angel Rodrigues Sánchez, no seu trabalho intitulado “A política e os estados” . Nesta perspectiva de intuitos comerciais, os portugueses “Asseguravam, por isso, o controlo de todo o comércio com os nativos” , mas, no seu entender, as fronteiras, excluindo o Zambeze, mantiveram-se quase inalteradas até aos séculos XVII / XVIII. De qualquer maneira, não foi incólume “a chegada dos portugueses [que] provocou o desvio parcial da rota do ouro para o Zambeze e Angoche, através de Tete e Sena” . Seguindo esta pista, aí se contactam, via Sofala, alguns reinós negros, turcos, árabes, indianos e, possivelmente, chineses, que ora permitem uma prática conciliatória, ora partem para o confronto. Combinam-se, nesta lógica de penetração pelo território de Moçambique, as duas inevitáveis faces da moeda da expansão: aceitação e paz, contrapondo-se à violência, para a qual, diga-se também, havia sempre uma espécie de resposta eficaz. Antecipando-se a todos estes acontecimentos, já em 1491 se conhecia em Lisboa o porto de Sofala (porto do ouro), pelo que, de permeio com a ideia do acaso em muitas abordagens a esta nova realidade moçambicana, se nota, neste aspecto particular, um intencional objectivo, em sintonia com as viagens à Índia, pois “Uma das missões da Armada, comandada por Pedro Álvares Cabral, em 1500, consiste em instalar-se na região para aí estabelecer o resgate do ouro” . Quanto a este caso que levou a um esforço previsional, talvez tenham contribuído os contactos e investigações levados a cabo por Pero da Covilhã e Afonso de Paiva, os primeiros grandes aventureiros do oriente.. Mas a ideia do conhecimento contingencial é, quanto a nós, a que melhor se enquadra neste contexto, tal como dissemos. Em consequência desta decisão, em 1502, aparece a feitoria da Ilha de Moçambique e, em 1505, a de Sofala. Com a atenção centrada na procura, a qualquer custo, desse metal precioso, uma importante fonte de lucro comercial – objectivo dos objectivos –, mercadores, soldados e demais interessados arriscam tudo na subida do Rio Cuama (Zambeze), de 1509 a 1519. Com esta acção, palmo a palmo as fronteiras vão esticando, dilatando-se assim no espaço e na afirmação civilizacional portuguesa, surgindo, como forma de provar direito e assegurar trocas mercantis, as novas feitorias de Sena e Tete, nos inícios dos anos trinta desse inicial século XVI. Dando lugar a um misto de presença e ausência, em 1560, o Padre Gonçalo da Silveira, vindo de Goa – que cada vez mais ganha ascendente e poder sobre Moçambique, facto que se verifica, se apoia e aprova até meados do século XVIII, quando o Marquês de Pombal põe o travão a essa instância de poder intermédio – converte o reino do Monomotapa. Foi sol de pouca dura, tendo morrido um ano depois, por ordem do próprio monarca. Consumava-se, em parte e por este meio, um dos pilares da expansão: a civilização cristã, um dos mitos que mais perdurou na prática e no imaginário colectivo e de poder da velha Europa ocidental. Cedo, porém, outros povos europeus passam a ler a mesma cartilha, o que provoca o confronto entre iguais, designadamente com os franceses, que cobiçam o ouro zambeziano. Era uma pedra mais a minar e desfazer a hábil engrenagem que os portugueses tinham montado. Em resposta a estes novos desafios, oposição interna dos povos locais e assédio europeu, resta uma outra alternativa: diversificar os espaços de ocupação territorial, pelo que se começam a operar, nesta altura, as deslocações para sul, na abertura de mais uma frente de contactos (tal como aflorámos), de trabalhos, preocupações e também de continuado esvaziamento das culturas e comunidades locais. Esta aventura dirige-se, em sentido contrário, também para Norte, para a zona de Cabo Delgado. Começa de esboçar-se o aspecto físico de Moçambique actual, quanto às linhas de demarcação, num triângulo que se alarga em três frentes: no centro, por Tete além; no norte, a caminho do Rovuma; no sul, no sentido da futura cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo. Mas a verdadeira incursão interior, neste período temporal, só tem alguma carga efectiva de concretização na área do Zambeze e do Monomotapa, terras onde imperava e brilhava o ouro, caminho dos primeiros aventureiros, degredados e alguns colonos mais afoitos e menos temerosos. Instrumentos decisivos em todo este processo, “Em traços gerais, argumentava-se que os colonos garantiriam a ocupação efectiva dos territórios, isto é, a soberania portuguesa e seriam um factor de civilização dos nativos e de progresso económico” . Passado o ascendente do Monomotapa, com a sua submissão e até captação das respectivas empatias, afastados dessa área os muçulmanos e conquistada a abertura para uma acção eficaz dos cristãos, era dessas três frentes de operação que os portugueses se ocupavam, mais na zona do minério enriquecedor que noutras das novas regiões. Quanto à parte restante, só a costa do Índico possuía motivos de interesse. Mas aqui a luta pelo controlo das operações tinha adversários de peso, nomeadamente os árabes, que, senhores das suas posições e defensores dos seus ritos, não queriam abdicar daquilo que tinham conseguido até então. Sendo que “África é o berço da humanidade” , muito pouco se soube, em concreto e com verdade, acerca deste continente, muito embora se deva reconhecer a sua evolução progressiva, à semelhança de todos os outros povos. Com a chegada da colonização e o conluio activo das gentes autóctones, operou-se uma grande transformação por estas bandas, pois “o tráfico de negros foi o ponto de partida de uma desaceleração, de um arrastamento, de uma paragem da história africana” . Quebrado o seu ritmo, as imposições externas logo tentaram aplicar um outro modelo, à sua maneira e a seu modo. Nesta nova fase, também em Moçambique esses tempos se passam a reger por novos padrões, que para além das marcas locais nos oferecem carimbos determinantes, alternativos, apostos num tecido que ora os aceita, ora os rejeita, velada ou categoricamente. Foi o que aconteceu a partir dos meados do anterior milénio, quando a presença de povos orientais e ocidentais correm pelo Índico em busca de fontes de poder e de enriquecimento económico. Iniciou-se então a colonização, de começo menos efectiva em termos ocupacionais, factor que, como veremos, só progredirá, mais afincadamente, quase no século XX, por estranho que pareça. Entre os anos de 1500/1800, as diversas operações concretizavam-se mais por acções esporádicas do que por meio de um activo povoamento. Como “recordar o passado é empenhar-se no futuro” , África merece que sobre ela nos debrucemos, para a compreendermos nas suas existência e essência próprias. Cabe-nos, enquanto co-construtores de um longo período da sua história, uma importante palavra a dizer, até porque, como primeira potência europeia a chegar e a última a abandonar, enquanto órgão de soberania, aqueles espaços, temos uma responsabilidade acrescida. Nesses encontros e desencontros, ressalta a consciência de que “Esta retrospectiva histórica ilustra que, no actual território de Moçambique, as relações diárias entre portugueses e indígenas nem sempre foram as melhores, sendo muitas vezes pautadas por lutas sangrentas, dado existir resistência, da parte de alguns povos rebeldes e sublevados, à afirmação da soberania portuguesa” . Entalado numa complexa rede comercial, que se remete pelo Oceano Índico, pela Europa e que conta como agentes interessados as populações autóctones, os árabes, os baneanes, os portugueses e outros europeus, Moçambique mostra assim um passado multifacetado, pelo que não se podem “Ignorar os alicerces construídos em séculos de história política e em milénios de história cultural” . Ao virarem a sua atenção para os produtos com maior dose de valor comercial, desde logo o marfim, o ouro e, um pouco mais tarde, os escravos, os portugueses entraram assim nessa intrincada teia, tentando puxar os melhores fios, ao mesmo tempo que tudo faziam para atingir a supremacia total, qualquer que fosse o preço a pagar. Não foi, no entanto, um caminho fácil, a avaliar pelos dados que nos vão chegando, esse contacto oriental. Ao tentarmos ir ao fundo das questões, para darmos uma imagem desse passado tão real quanto possível, incidimos o nosso esforço sobre aquelas que consideramos as melhores fontes. Mas “É por demais conhecida a insuficiência da historiografia portuguesa relativa ao domínio colonial em África” , o que relativiza sempre tudo aquilo que estamos a dar à estampa. Para suprir essa falha, continuamos a apresentar mais dados sobre a nossa presença por terras moçambicanas, de modo a chegarmos ao nosso objectivo principal: descobrir os elos que permitiram alcançar-se uma espécie de identidade comum e aqueles que serviram de base à sua própria negação. Partimos de um princípio claro: a penetração portuguesa, terras adentro, levou à futura afirmação das actuais fronteiras, enquanto a sua acção, umas vezes, semeou unidade, outras, destruiu-a. Mas nunca deixou de ser uma presença estranha, com evidentes dificuldades em afirmar-se, mesmo depois da aparente pacificação militar, já nas primeiras décadas – é bom que se saiba isto – do século passado (anos de novecentos). Vê-se, por este facto, que cinco séculos de contactos apenas tiveram algum sucesso seguro, sob o ponto de vista da potência colonial, durante cerca de cinquenta anos. Pouco mais do que isso. Como intermediários de um imperialismo que talvez não tivéssemos podido ou sabido edificar, porque nos contentámos, frequentemente, com funções de plataforma ou placa giratória, pouco valor acrescentado lográmos tirar dessas conturbadas épocas, pesando-nos o ónus da missão, quando é leve a fortuna conseguida. Pelo que dissemos, “A consolidação de uma verdadeira estrutura e presença administrativa portuguesa, por todo o território moçambicano, foi um processo gradual em muitos locais, apenas realizado activamente ao longo da primeira metade do século XX” , assim se demonstrando quão pouco tempo ali fomos soberanos, em plenitude. Entretanto, durante quatrocentos anos, não pode dizer-se que por ali se andou em vão. Mostrámos, já, alguns dos efeitos desses contactos e outros vão aparecer, seguidamente. Por volta do século XVI, gira-se então em torno de um curto eixo, que liga Moçambique (Ilha) a Tete e pouco mais. Mas é de ouro que muito se fala, como foi referido. Em inícios do século XVII, acentua-se o poder de Goa sobre esta terra, com a chegada, em 1609, do primeiro “Governador de Moçambique, Sofala, Rios de Cuama e Monomotapa”, que dali partira. É ainda por esta altura, a 12 de Março de 1618, que se institui, propriamente, o primeiro regime de povoamento, via aforamento ou prazos, um meio de domínio e governação que iria ter fortes repercussões regionais, funcionando mesmo como catalisador de muitos e variados descontentamentos. Mostrando que eram agrestes estas progressões, logo em 1624 há alusões à “guerra que Mussura, rei do Bororo, faz nos fortes de Sena e Tete, por querer afastar os portugueses daquelas paragens, para se apoderar do reino de Monomotapa” . Com o agudizar dos ânimos, chegam a proibir-se operações comerciais, como aconteceu em 1663, quando, baseados na mesma documentação, o capitão da fortaleza de Moçambique, Cristóvão de Brito de Vasconcelos, põe travão às diligências a estabelecer com os Maraves. Na vastidão de factos e acontecimentos ali descritos, referem-se as fortificações dos rios de Cuama, a necessidade do envio de novas tropas e ainda se lançam apelos, no sentido de aparecerem povoadores, tal como se passa a descrever: 1635  É enviada uma carta régia ao Corregedor de Pinhel para que sejam recrutados duzentos casais da comarca, entre lavradores e oficiais de especialidade mecânica, para se instalarem nas minas de Monomotapa e Rios de Cuama, de grande valor económico . Um ano depois, em sinal de que havia sido contactado com essa mesma intenção, o Corregedor de Guimarães, Félix Rebelo de Carvalho, lamenta que não apareçam candidatos. É-lhe sugerido que lance pregões e se dê dinheiro a quem se mostrar interessado . Por sua vez, em 1643, vêm a lume as queixas e insultos dirigidos pelos portugueses ao Rei de Ampassa , tal era o ambiente então vivido. Continuando a assinalar dados relevantes, extraídos da citada base, em 1676, reclama-se reforço, de modo a poder assegurar-se o comércio entre Macaranga e Manica, aparecendo, logo em 1677, a 5ª Companhia do Terço em acção nos Rios de Sofala. Paralelamente a esta situação militar e comercial, uma outra dimensão adquire relevo cada vez maior e à medida que os anos passam. Trata-se do empenhamento da Igreja Católica, que assim aparece com uma ampla missão: evangelização e instrumento de apoio colonial. Para esse efeito, no último quartel do século XVI (1577), chegam os dominicanos aos Rios de Cuama, sendo Sena a sua primeira sede. Religião, escrita e domínio cultural são a cartilha que sustenta a sua acção e actividade, em benefício da causa comum portuguesa e europeia, como se determina no paradigma civilizacional dessa época. Sem estarem perante um chão vazio, todas as componentes deste esforço colonizador tinham a noção que pisavam terra de instituições e organizações, ainda que não o quisessem reconhecer e transmitir. Ao imporem a ideia de um mundo de ninguém, mais facilmente levavam por diante os seus intentos. Mas já nesta altura – e muito antes – aquele não era um espaço desabitado, à mercê de quem primeiro chegasse e dele se apoderasse. Não. Antes pelo contrário, ali existiam “as bases da organização da sociedade africana [que] se dividia em clãs, tribos, grupos étnicos. Os povos eram identificados segundo a sua filiação étnica (...). Por todo o continente, as povoações organizavam-se em Estados, alguns dos quais chegavam a abarcar territórios mais vastos, como o Mali ou o Congo” . Numa costa oriental africana predominantemente banta, Moçambique espalhava-se, em sub-divisões, pelos suailis, yaos, shonas, e outros povos, alicerçando a sua fé religiosa tradicional no animismo, nas crenças ancestrais, no culto de divindades ligadas à natureza e aos antepassados, pelo que o islamismo e o cristianismo vêm questionar, conflitualmente, todas estas convicções. Combinando factores religiosos e culturais, com raízes profundas nessas comunidades, com o advento de novas civilizações, importadas e estranhas, monoteístas e portadores de sistemas de valores que chocavam com suas vivências e costumes, aos naturais resta-lhes, em última circunstância, a resolução de um pesado dilema: a submissão resignada ou a contestação aberta ou camuflada. Todas estas situações podem ser documentadas, através das descrições encontradas, em que se indicam as missões de Frei Gonçalo da Silveira, a colonização militar de Mocaranga, Quiteve, Butua, Manica e Chicoa, para se conseguir “a povoação, aumento e conservação da conquista” . Este mesmo militar fala-nos ainda da Companhia de Comércio da Índia Oriental (1629), da Junta de Comércio Livre de Moçambique e Rios de Cuama, com sede, curiosamente, em Goa e agências nesta região africana, sem esquecer o novo plano de colonização dos Rios de Cuama, apoiado numa forte expedição militar, isto no ano de 1677, período também da criação da Real Companhia do Comércio de Moçambique e da reorganização da Junta do Comércio. Antes de prosseguirmos esta nossa viagem pelo passado moçambicano, convém esclarecer que, muitas vezes, se fala de Moçambique no sentido restrito (Ilha), porque o seu conceito geral, geográfico e social só tem cabal significado bastante tempo depois de toda esta série de acontecimentos. Ponto de partida, esta região serviu de cadinho experimental, em muitos aspectos, para o incremento da expansão fronteiriça que veio coroar estes contactos iniciais, ainda que haja diferenças a considerar. Com Jacques Revel a ser um dos nossos esteios científicos, estamos convictos de que a história tem um lugar especial, porque se está longe do seu estilhaçar (Revel, 1990). Por essa razão, a cada narração que aqui trazemos tentamos atribuir a devida fundamentação. Só que não vemos esta área do saber como algo de rígido e inflexível, porque o contributo da arqueologia, da antropologia, da sociologia e demais fragmentos do conhecimento actual, não podem, em caso algum, ser desperdiçados. Interessa-nos a interdisciplinaridade e só assim se apreenderá o cerne daquilo que queremos saber e transmitir. Com base nesta abrangência documental, constata-se que “A África, a sul do Sara, testemunhou, entre os séculos VIII e XV, a ascensão de vários reinos e impérios florescentes” . Entre todos esses, o nosso destaque vai, como é lógico, para o Império Mwene Mutapa (Monomotapa), a ostentar sólidas redes de comércio, agricultura sustentada, actividades mineiras e metalúrgicas de longo alcance. Por estas razões, os portugueses, dele fizeram o seu escopo essencial. Paralelamente a estes contactos, um Tratado assinado com Mavura, em 1629, assegura aos portugueses liberdade comercial e de pregação, o que lhes abre as portas para a expulsão dos muçulmanos. Ao falar-se neste género de contratualização, via Tratados, reforça-se a convicção de que, naquela região moçambicana, já se passara das comunidades para as sociedades, por aparecerem dotadas de uma certa organização social e administrativa. Nesta ordem de raciocínio, adianta-se mesmo que, a sul de Moçambique, “os tratados de vassalagem entre Gaza e Portugal parece que eram interpretados pelos primeiros como tratados de amizade entre estados independentes e soberanos” . Mas não deixa também de ser verdade que “ao longo da maior parte da sua história evolutiva, a população africana tem vivido em grupos relativamente pequenos, demonstrando que as pessoas são perfeitamente capazes de viver pacificamente em pequenas aldeias sem estabelecerem cidades nem estados...” . Ao confrontarem-se com estes vários sistemas de organização local, coube aos colonos tomar a opção mais eficaz, frequentemente com pesadíssimos custos para as culturas locais: diálogo, intercâmbio ou a força de outros tipos de argumentação, passando a impor-se por uma evidente superioridade militar, posição mais assumida a partir do século XIX, mas a verificar-se também em épocas anteriores. Combinando a supremacia das tropas com a busca de mão-de-obra a todo o vapor, primeiro com a escravatura, depois com o “trabalho forçado”, avança-se assim para uma colonização mais decisiva e mais eficaz. A par das inovações introduzidas, deve-se a D. Sebastião uma espécie de estímulo à decisão de se avançar para o interior, assim se vendo nascer as feiras de Luanze, Bocuto e Massapa, outro meio de afirmação colonial portuguesa. Numa inventariação, ainda que sumária, dos nossos instrumentos de colonização, deparamos com as feitorias, os entrepostos comerciais, as fortificações, os prazos, as feiras e as sedes de missionação. Pelo meio de todas estas estruturas entraram as companhias, a subirem bem alto nos seus intentos e concretizações. Com aspectos a pesarem no sentido da criação de uma certa unidade e identidade, tais como as determinações administrativas e o uso da língua portuguesa, aos prazos e às companhias pode assacar-se, com grande carga de realismo, bastantes responsabilidades no que diz respeito a elementos dissolventes, tais os anticorpos gerados e os feudos erguidos. Oriundo de uma terra de construção da humanidade, como ponto de partida para outros continentes, ali se retorna, agora com ideias que têm por base uma visão unitária e parcelar do mundo. Estas viagens não são uma chegada à casa de iguais, mas um retorno destinado a mostrar aquilo que se entendia então como uma civilização superior. Esta constatação aparece-nos assim retratada: “Quando, no século XV, os europeus, descendentes desses primeiros emigrantes, desembarcaram pela primeira vez nas praias africanas, não havia qualquer sentimento de regresso ao lar. Nem foram bem-vindos” . Como aos portugueses se aponta o facto de ali terem aportado em primeira mão, estas críticas têm-nos também como destinatários. Europeus como os demais, vêem-se assim objecto destes documentários e constatações. Acontece que, com alguma frequência, pouco fizeram para as não merecer. Sob o ponto de vista da construção de uma identidade assumida, estes contactos podem ser apreciados e analisados de uma forma ambivalente: enquanto estruturas de harmonização, abrem caminho à partilha de ideais e projectos; como formas de pressão sobre as comunidades locais, arriscam-se a fazer emergir sentimentos de repulsa e de recusa, como se nota nas múltiplas contestações, sedições e movimentos de igual ou semelhante amplitude. Mas há um dado que não pode ser escamoteado: sempre que se alarga o território moçambicano, está a dar-se um passo importante para levar à Conferência de Berlim (1884/1885), o grande marco definidor das actuais fronteiras africanas, por mais que se conteste a metodologia utilizada. Como em todas as situações históricas, a razão não deve ser vista unilateralmente. Se a nódoa da escravatura se espalha pelos tecidos africanos e portugueses, no nosso caso, a conquista de espaço deveu-se bastante à persistência dos colonialistas, que, sem pensarem nos desfechos da década de setenta do século XX, tudo fizeram para alargar horizontes. É evidente que a maior parte dos sistemas sociais e políticos tradicionais se desintegram com o colonialismo (Reader, 2002). Como quer que seja, ainda na opinião de John Reader, também se não destruiu uma África feliz, qual paraíso terreno, porque essa suposição não passava de um mito, de um cenário exótico e nostálgico, que também chegou a povoar a mente ocidental. Por esses factos e deduções, do que se trata, afinal, é do confronto, isso sim, de dois mundos: um deles, o europeu, cheio de presunção e espírito de missão dita civilizadora; o outro, o africano, cioso da sua cultura e organização, que não quer, de maneira nenhuma, oferecer de mão beijada. Sem bandejas de prata, tudo se resume ao velho conflito humano: o predomínio da posse e meios de a conseguir contra o desejo de deixar viver o ser, que existe em cada um de nós. Ao lançarem-se no desafio de apropriação de bens de riqueza, árabes, indianos, portugueses, chineses e europeus fizeram desta África Oriental e de Moçambique o palco privilegiado para um caldo especial: culturas diversas em processo de fusão, ou de feroz oposição. A sair da sua bissectriz, apareceu sempre o meio termo, bem raro, aliás: a convivência cultural, em que cada um segue o seu caminho, mas na pista de um projecto comum. Quando assim aconteceu, tornou-se mais fácil alicerçar mecanismos de identidade e de pertença a uma mesma comunidade, na altura em que os seus membros mostraram ter consciência de que todos pertenciam uns aos outros (Reader, 2002). A tese de um pacifismo extremo jamais se pode dar como certa, porque aos portugueses se depararam povos que não estavam dispostos a abdicar dos seus direitos, até porque se tratava da “costa suaili, onde os nativos seguiam a religião islâmica e os mercadores eram tão abastados que usavam ricas vestimentas de linho e de algodão com franjas e sedas bordadas a ouro. Comparadas com eles, os portugueses faziam figura de mendigos” . Face a esta imagem, a noção de superioridade, ali, caiu por terra e, por isso, todas as conquistas seguem a velha máxima dos avanços palmo a palmo. Num incipiente direito internacional do século XVII, a conquista e, tantas vezes, a passagem e a respectiva publicitação - constituem-se em pilar essencial das várias políticas oficiais, a servir às mil maneiras as pretensões de Portugal. Se temos vindo a sustentar o primado da zona confinada à Ilha de Moçambique, ao Zambeze e ao Monomotapa, o que nos aparece como altamente defensável, não deixa de ser verdade, repetimo-lo, que, já no século XVI, se efectuavam operações comerciais na Baía de Delagoa (actual Maputo) entre os portugueses e as entidades locais. Aberta mais uma frente, Moçambique caminhava então para o sul, de onde vinham o marfim e o gado bovino, em troca de ferro e cobre. Também a sul se mostra serviço, a ponto de, no século XVIII, se contarem mais de uma dúzia de chefaturas, a incharem em tamanho e poder. Contactando-as e controlando-as, forjava-se, uma vez mais, a identidade pretendida, a escorregar, frequentemente, para a débil moçambicanidade. Com estas incursões, “o continente africano vê-se condenado à plena utilização dos recursos naturais disponíveis, em que ele se apresenta, aliás, particularmente rico” . Hoje, com uma nova consciência de todas estas questões, “os problemas dos países africanos, os nossos próprios problemas ... são os mesmos” . Mas seria distorcer a história, se transportássemos para o passado as nossas actuais linhas de raciocínio e de padrões comportamentais. Por esta bitola, também é injusto que se julguem as acções portuguesas e europeias à luz da postura do século XXI e de uma Europa moderna. Essa seria uma péssima conduta, que rejeitamos de alto a baixo, liminarmente, por não nos julgarmos no direito de assim proceder. Se, para nós, é demasiado optimista a opinião de Vítor Sá Machado (1990), em que se apresenta a abertura da África ao mundo moderno como obra portuguesa, também a visão contrastante não merece a nossa concordância e, muito menos, o nosso aplauso. Nesse mundo de intercâmbios, todos ganham e todos perdem. Portugal e Moçambique não escaparam a esta regra, como é evidente. Mas, dentro das especificidades regionais, “em África tudo é sempre outra coisa” . Na perspectiva ocidental europeia, impunha-se então que se procedesse ao processo de civilização, como missão salvadora. “Ali em pleno mato da colónia de Moçambique, os padres iam e vinham. A vila era um desamparadeiro, lugar de além do fim do mundo” . Para concretizar esse objectivo, cada colónia foi “subordinada económica ou politicamente a um estado de civilização superior” . Portugal, como pioneiro da colonização em África, participa neste assumido movimento da história de cinco séculos, mas não deixa, em muitas situações, de se apoiar nas gentes nativas, numa espécie de cooperação, de dupla feição: activa ou passiva, conforme o grau de adesão encontrada. Neste complicado processo, importa destacar um outro factor determinante, no que se refere à passagem do conhecimento destas comunidades autóctones: a divulgação da escrita. No primado da oralidade, árabes e portugueses aparecem com esse poderoso instrumento. Só que nem sempre serviu para afirmar a verdade, por ter havido uma constante manipulação, na perspectiva europeia, da respectiva historiografia. Tudo isto se deveu a um facto essencial, assim retratado: “A complexificação das instituições de organização social, a dinâmica mercantil e de permutas culturais, a necessidade de preservar o conhecimento no contexto específico de sociedades predominantemente ágrafas, como seria o caso de Moçambique, obrigaram, há muito, ao recurso a um suporte material: a escrita e/ou a iconografia” . África continua a ser vista como o espaço do exótico, do mirabolante, uma espécie de terra estranha, a exigir cuidados especiais, exógenos e provocadores de distorções que, muito dificilmente, vieram a ser debeladas e ultrapassadas. Mas este quadro, longe de desviar o apetite europeu por estas paragens, acicata-o, serve-lhe de íman e, por isso, o continente africano passará a ser coberto de estruturas políticas e sociais, que se não compaginam com as novas realidades vividas. Com os seus moldes, os oleiros idos de fora apressam-se: na sua mente, mais do que “Criar” um novo homem africano, pretende-se aproveitar as suas riquezas e debilidades, muito embora sejam diversas as motivações individuais e colectivas. Agem assim os portugueses, os franceses, os belgas, os ingleses, os holandeses (em 1650, assentam arraiais definitivos no Cabo), italianos e, mais tarde, os alemães. África, sobretudo a partir dos séculos XVIII e XIX em diante, torna-se a manta de retalhos de uma Europa que, para sustentar o seu capitalismo, não olha a meios para atingir os seus fins. Como vimos, e como havemos de melhor demonstrar, ao falarmos das sucessivas sedições e revoltas, também o sul de África mostra o seu descontentamento, tal como acontecera no centro moçambicano. Desta maneira, em 1659, os Coisans evidenciam a sua grande oposição aos novos ocupantes, que deixam assim de ser bem-vindos. Com a força de seu lado e um pouco de sorte – vinda, por vezes, das quezílias e divisões locais, que enfraqueciam, internamente, os seus agentes – aos europeus eram dados uma série de trunfos. Só assim se compreende a sua alargada penetração por todo o continente africano. Está-se então a caminho, indirectamente, da criação de novas identidades, ainda que os grupos étnicos venham a desaparecer, em grande parte e em larga medida. E essa é uma chaga que ainda hoje perdura e sangra, abertamente. Na história portuguesa dos seus encontros com África, ressalta que, sobretudo em Moçambique, mais ou menos até meados do século XIX, foi mais entroncada e duradoura a sua ausência que a presença real. Mas a Conferência de Berlim (1884/85) tudo veio sacudir, em matéria de ocupação territorial e de zelo pelas fronteiras conseguidas. Um outro poderoso abanão, em finais do século XIX, mais agitou as hostes portuguesas, levando-as a procurar todos os caminhos que a África fizessem chegar, até porque o Brasil já deixara de ser (1822) o que era. O Ultimatum inglês foi a sacudidela que faltava para o arranque em força – então, sim – da colonização que ainda não se fizera, altura em que “O império (...) vê-se depois investido de um carácter sagrado em nome da missão histórica e da vocação colonial do povo português” . O decisivo século XIX Com alguma carga de certeza, pode adiantar-se que o século XIX constitui, para África em geral, um tempo de profundas e decisivas alterações sociais, económicas e políticas. Moçambique viveu também esse quadro, num continuado e conturbado processo, a contar com três grupos de actores principais: os povos autóctones, os europeus e os asiáticos. Por esta altura, revelam-se forças, fraquezas e ulcerações que têm, nos períodos antecedentes, algumas das razões dessas mudanças, mas a que se juntam novas condições, sobretudo pela via da importação de doutrinas vindas do exterior. Com a Europa a fervilhar de novos movimentos, com Portugal a deixar o absolutismo e a entrar no liberalismo (1820), era natural que tudo isto se estendesse às terras africanas, americanas e até asiáticas. Quanto ao território que escolhemos para objecto deste trabalho, é neste século que se dão os maiores saltos, rumo à colonização, entendida no seu sentido lato, ou nas restrições que também contém. Numa primeira constatação e face à debilidade da presença e acção metropolitanas, “O século XIX irá fazer rebentar, pelas costuras, a fraca administração colonial portuguesa em Moçambique” . Vindas de trás, acentuam-se as mais variadas contestações que desembocam, já em finais de 1900 e princípios de 2000, em fortes e aguerridas campanhas militares. Sem um espaço arrumado e uma política consolidada, estes cerca de cem anos põem em evidência, em claros contrastes, as várias faces da nossa acção colonial. Fora da administração directa de Goa, a partir do recuado ano de 1752 e aprovada a 1ª Carta Orgânica em 1761, Moçambique vê-se, no entanto, a braços com sucessivas sublevações, que continuam o pendor anterior, pelo que os anos de 1749, 1804 e 1807, para só citar curtos exemplos, dão o tom para aquilo que se irá passar e que nem sempre condiz com as aspirações das gentes europeias. Entretanto, num determinante século XIX, carregado de situações novas, a marcação centra-se na escravatura, nos prazos, nas Companhias (como entidades com inusitada influência e poder), no indigenato, nos esquemas sociais e de trabalho e também nas diversas formas legislativas e colocação no terreno da respectiva administração. Num aumento crescente de curiosidade, uma outra faceta deste tempo, sucedem-se, lá para meados e finais do século em questão, as expedições de todo o género, como explorações geográficas, busca do exótico, da antropologia, da etnologia, sem pôr de lado o apetite comercial e de domínio colonial. Povo com evidente vocação marítima, Portugal começou por privilegiar os acessos e contactos costeiros, situação que se prolongou pelos séculos XVI, XVII, XVIII e parte dos anos de 1800, com acento tónico duplo quanto a esta costa oriental. No palco do Índico, fugir da beira-mar era deixar o seu controle aos árabes e aos indianos, cenário que desagradava, de todo em todo, aos dirigentes de então. Mesmo assim, aventurou-se pelo Zambeze acima, por meio dos prazos e pelo cheiro do ouro. Mas o tráfico de escravos estava na sua mira e, por isso, mais uma vez o oceano não podia ficar muito longe. Espalhando o sistema de prazos por cerca de 44.325 hectares (Bento, 2000), aí se localizavam senhorios ou forasteiros, colonos e escravos. Sendo um estado em miniatura dentro de um grande “Estado”, aos forasteiros eram concedidas regalias e fatias de poder, que faziam deles um género de vice-reis nos seus domínios. Com a cobrança de impostos, a gestão independente das áreas sob a sua alçada, a administração da justiça, a manutenção de estruturas políticas próprias, pulverizava-se, de mão beijada, um poder que se pretendia centrado e criador de uma identidade colonial moçambicana. Colocados os reinóis à frente deste processo, era-lhes dada uma carta branca, que vinham a utilizar mais em seu proveito que, propriamente, em favor de uma qualquer causa comum. Não admira, por isso, que, entre 1800 e 1817, tenham entrado em cena os Sakalavas, com os seus temidos saques e revoltas. Definida a amplitude desses mesmos prazos, aí pelos anos de 1670, assim como as respectivas fronteiras, é natural que, com o passar dos tempos, seja ampliada a tendência para os alargar, aumentando sucessivamente os abusos e atropelos às normas estabelecidas. Pretendendo agarrar Moçambique, esfumado que foi o sonho de uma nação ibero-americana, aquando da perda do Brasil (1822), Portugal arranca, com armas e bagagens, para estes horizontes, até aí esparsamente colonizados. Invertem-se a acção e as palavras num sentido diferente, procurando-se um outro “Discurso colonial português estruturado no século XIX, dada a necessidade de replicar as pretensões das demais potências europeias que pretendiam organizar impérios coloniais, única maneira de completar o seu percurso histórico” . Ao darmos conta desta nova realidade, constatamos que está na origem e na sequência de um colonialismo amputado de um dos seus mais fortes esteios – a economia, que, para Portugal de então, também passou um pouco ao lado – como claramente afirma Hammond. Comungamos, então, desta sua afirmação: “O colonialismo português representou uma forma de imperialismo não-económico” . Por esta razão, o nosso colonialismo adquiriu uma feição especial, teve uma marca própria, mas não deixou de assim ficar conhecido. Nele se entranharam outras componentes que o fazem comparar, talvez a uma escala mais adocicada, a todos os demais. Voltamos sempre ao mesmo: as especiarias fizeram escala em Lisboa a caminho da Europa, que as transformava e utilizava e, nestes séculos, o panorama parece um decalque desse passado. Com grande fama e menor proveito, o colonialismo inscreveu- -se nas páginas da nossa história e daí não sairá. Num processo em crescendo, a cultivar a memória de feitos anteriores e a habituar-se a admirar os seus heróis, a ideia de estender o poder e a influência a todo o mundo – com destaque para África -, reconhece-se que “O surto do imperialismo europeu, do final do século XIX, encontrou o apoio da opinião pública dos diversos países (...) Esta tinha-se mantido indiferente ou até refractária à questão colonial, mas desenvolveu-se então a consciência da importância política e económica dos territórios ultramarinos e estimulou-se o orgulho nacional pela dimensão de certos impérios” . Começava a cimentar-se a necessidade de sentir que a Europa tinha naqueles espaços o seu futuro e uma espécie de natural extensão dos próprios locais de origem. Para ampliar o seu solo inicial, corria-se, mundo além, a espalhar bandeiras, a afirmar soberanias, ainda que hoje consideradas fictícias e a desencadear mecanismos de sentimentos de posse, puxando os galões do nacionalismo e da emoção colectiva. Era uma alma a crescer, com bem maiores olhos que barriga, tais os gigantes de pés de barro que se foram criando e alimentando. Moçambique põe a nu muitos e sérios testemunhos. Analisando-os, encontramo-nos, necessariamente, num ponto em que temos de saber trazer à tona de água tudo aquilo que sirva para um conhecimento capaz do que ali aconteceu, passando para além deste desabafo: “Todas as sociedades têm o seu regime de verdade, ou seja, uma política geral que elege determinados tipos de discursos e os faz funcionar como verdadeiros”, sabendo que estamos perante “um passado que nos constitui como herdeiros de um destino colonial e de uma missão civilizadora” . Sem subscrever, na totalidade e na sua exaustão, os meandros da engenharia histórica, que foi capaz de pintar de cor diferente os prédios que viu e ajudou a construir, não queremos deixar de assinalar que, apesar de todos os contratempos, Portugal deve, hoje e amanhã, honrar as passadas que deu. Renegar cada uma das suas construções seria enterrar uma obra, boa ou má, sem a deixar apreciar, ainda que memória e esquecimento nos surjam quase sempre, lado a lado. Mas o nosso modo de ver bebe noutras fontes: não encobrir as falhas, agarrar nelas e descrevê-las, eis a razão desta dissertação. A figura da avestruz arrepia-nos e horroriza-nos. Passageiros de um barco, pegamos nas suas falhas e mazelas, tentamos remediá-las, mas não abdicamos de continuar a viagem. Como portugueses, esta é a nossa postura, na denúncia e na fuga aos julgamentos desastrados de uma vivência que, construída num tempo muito diferente do actual, não deve ser colocada na barra do tribunal social, com base nos códigos do século XXI. Contra qualquer anacronismo, erguemos a nossa bandeira. Mas, quando recuamos alguns tempos atrás, em matéria de política colonial, a sucessão de acontecimentos, deste século XIX, vem dizer-nos que estamos em face de uma época de profundas inovações, um pouco por todo o continente africano. Temos a consciência, no entanto, que muito há a fazer para reabilitar e colocar no plano que merece a consciência africana, em vez de a escondermos sistematicamente. Mas “infelizmente, a imagem de África já está construída e sedimentada por muito preconceito e muita ignorância” . Esta é uma outra luta que elegemos como prioritária, mesmo num continente destes, em que se “semeia mais ruínas que sementes” , ontem e hoje. Tomando como uma das massas do nosso cabouco este escritor Mia Couto, “O tempo trabalhou a nossa alma colectiva por via de três materiais: o passado, o presente e o futuro (…). O passado foi mal embalado e chega-nos deformado, carregado de mitos e preconceitos. O presente vem vestido de roupa emprestada. E o futuro foi encomendado por interesses que nos são alheios” . Linguagem literária é esta, mas concentra uma dose substancial de sociologia aplicada, tal a estatura do seu autor, que acrescenta mesmo um outro pormenor, recheado de substância: a escravatura e o colonialismo não se podem assacar apenas aos europeus, porque a sua aplicação em continente africano tem mãos “de dentro”, podendo apontar-se as suas elites como agentes activos e, mais do que isso, beneficiários dessas políticas e desses processos. Numa imagem felicíssima, fala inclusivamente numa casa recheada de mobília, que outros aparelharam e idealizaram. Só esta cumplicidade – que não dispensa, provavelmente, forças estranhas e algo suspeitas – pode permitir que os séculos XIX e XX tenham subido aos pódios que, para seu proveito próprio, os europeus vieram a erguer e a propagar. Portugal seguiu, no ritmo ocidental, a cartilha que lhe atribuíram. Ingénuo? Apático? Nada disto pode ser afirmado. Mas a unicidade de pontos de vista deve aqui ser encaixada e entendida, como base social e política. Com a Europa como modelo e a Grã-Bretanha como madrinha secular, a quem se deviam mesuras infindas, a este reino português pouco era deixado ao acaso. Mas as suas decisões, antes de serem convertidas em lei ou planos de acção, tinham de passar pelo crivo dos Pirinéus e pela água do Canal da Mancha. Sem aviões, demoravam imenso as respostas, mas estas impunham-se e, com tempo ou antes dele, África via-se a sofrer (ou a aceitar e a reclamar) os seus efeitos. Nesta adulação, a Inglaterra levava a palma. Assim falava um de nossos grandes escritores destes tempos de novecentos, de uma forma cáustica e incisiva: “Desde o princípio deste século que Portugal padece pelo teu país [Carta a Mr. Jolin Bull] uma espécie de cegueira afectuosa, que, até sábado passado, têm tido sempre nos espíritos um desenvolvimento progressivo” . Com sotaque francês, por estranho que pareça, já nessa altura a cópia da anglomania balizava os nossos comportamentos, alimentando-se uma espécie de amor platónico, pouco correspondido e uma espécie de fobia atávica que se vivia, mais ou menos, contra os tratados, do lado de lá. Mas o curto divórcio, a sério, só viria a aparecer aí pelos anos 80 e 90 desse século XIX. Mesmo assim, sem efeitos duradouros, diga-se em abono da verdade. Entretanto, numas relações com altos e baixos, a fidelidade lusíada perante os britânicos raramente foi equacionada, a ponto de, num novo Tratado de 1842, a Grã-Bretanha e Portugal terem “suprimido, por completo, todas as formas de tráfico de escravos nas possessões ultramarinas dos dois países” . Só que, uma vez mais, não se passou das intenções, porque a voz do contrabando falou sempre muito mais alto. Tal como o apelo do bolso. No meio de tudo isto, a história portuguesa é abanada por novos ventos, os do liberalismo. Mas, longe de fugir das idas para África, esta tónica veio a acentuar-se e a aprofundar-se, com cambiantes muito diversificados, mas sempre sob a mesma perspectiva: construir fora de portas a continuidade da nação, que, no continente europeu, parecia pequena, pelo que “As colónias começaram a ser consideradas parte do património e não podiam ser alienadas. Qualquer ameaça sobre esses territórios desencadeava reacções fortemente emotivas” . Só que, do lado de lá, qualquer manifestação de força (e esta aumentou, sucessivamente, durante este século e o próximo) despoletava, como consequência, uma resposta de igual significado, mas menos eficiente, claro está, devido à assimetria de meios que então se verificava. Entretanto, estilo água mole em pedra dura, a consciência africana e a entidade moçambicana, neste caso, não deixavam de, por paradoxal que pareça, vir ao de cima, abrindo os alicerces de desfechos posteriores. Mas desta forma, a “Revolução Liberal de 1820 teve efeitos no território moçambicano, chegando a fervilhar a ideia de uma Confederação Brasílica Independente, ligando Moçambique e Angola ao Brasil” . Podendo estranhar-se esta aventura, é preciso que liguemos os fios da meada: nessa época de pré-liberalismo, os destinos portugueses eram, em grande parte, escritos no Brasil, que a corte, para escapar às forças napoleónicas francesas, para ali fugira a sete pés, nos primeiros anos desse novo tempo colonial e metropolitano. Num e noutro lado dos oceanos, por linhas travessas se modificavam as respectivas vidas: a metrópole quase se convertia em colónia brasileira e Moçambique, até aí longe da vista e do coração, aproximava-se do pão da mesa ocidental, como sua hipotética fonte de sustento e como terra, agora de novo, de miragens, sonhos e destinos daqueles que se afastavam dos cânones legais: os degredados, que ali adquiriram o estatuto de povoadores e colonizadores talvez a antecederem a ida de muitos outros de seus compatriotas, com maior incidência a partir dos anos cinquenta do século vinte, mas estes com estatuto bem diferente, como facilmente se nota. Por esta via judiciária, ali chegam António José Pereira Guimarães, inicialmente condenado a oito meses de prisão na cadeia da Galé, sucedendo- -se um pedido de degredo , assim como acontecera a Maria da Conceição, que nem tempo teve “para dar destino a duas filhas menores” . Igual sorte recaiu sobre Francisco Moreira, tido como ladrão e salteador de estradas, que se viu degredado para Moçambique por um período de cinco anos (Id., p. 38). Refere-se a esta condenação o respectivo escrivão, António Severo Coelho, a 30 de Julho de 1825. Entretanto, foi neste século XIX que a política judicial do degredo veio a ser abolida em Moçambique, mas deixou aí as suas raízes. Se os exemplos podem servir para sustentar a evocação da regra, estes dois aspectos, aludidos no parágrafo anterior, trazem-nos a lume conclusões óbvias: um sistema de colonização muitas vezes apoiado na força coerciva e a sua institucionalização, de facto e de direito. Estamos longe, mas mesmo muito distante dos colonos de meados do século XX, que provinham, como dissemos atrás, de outro escol societário e para Moçambique iam como emigrantes, entendidos numa acepção mais moderna e geral: quando o continente não oferecia os meios necessários de subsistência e a prática política não deixava grandes margens, quanto a pendores oposicionistas, as terras africanas colocavam-se como opção, lado a lado, com os destinos europeus, com a França em evidente plano de evidência. Mas a ida, com carácter definitivo ou prolongado, ficava muito aquém das expectativas e das necessidades, sendo escassa a presença de europeus, na sua relação proporcional com os naturais. Por extrapolação, pode considerar-se o seguinte relato como meio de prova daquela carência populacional. Vejamos o que diz Paulo Miguel José de Brito ao Conde de Basto, em 28 de Setembro de 1829. Associando a quantidade de pessoas à prática religiosa, assim se expressou: “Havendo em Moçambique, portugueses, árabes, mouros, baneanes, gentios, cafres, etc., o número dos primeiros, católicos romanos, era muito inferior ao total dos que professavam outras crenças, seguindo-se que tudo o que é relativo à religião católica e ao seu culto externo aparece pouco e não tem aquela preponderância que podia e devia ter na moral pública” . Levanta-se aqui uma polémica pertinente, a das práticas religiosas, tema a que nos referiremos, mais em particular, lá mais para diante. Por agora, quisemos apenas enfatizar os pratos da balança quanto à vivência de portugueses em terras moçambicanas. Aliás, neste mesmo ano (1828), mas um pouco antes, em 6 de Agosto, tendo como base a mesma fonte, apela-se ao lançamento de um novo e geral sistema administrativo, na voz dos elementos do Conselho Ultramarino. Eram então portadores desta mensagem pessoas aparentemente qualificadas e não simples e modestos cidadãos. Pelo que parece, a nível de colonização, o edifício, nessa altura, mal saíra dos primeiros passos e estes nem sempre tinham a robustez exigida, tantas as falhas detectadas e nem sempre remediadas. Só que abundam as dificuldades no momento em que se procuram as causas maiores e mais profundas de toda esta realidade. Quando “A historiografia colonial privilegiou o discurso das intenções da classe política e da intervenção dos administradores coloniais” , resta-nos bisbilhotar outros armários, sendo bastante ricos, a esse nível e propósito, o Arquivo Histórico Ultramarino em si e nas compilações que originou e a Sociedade de Geografia de Lisboa, entre outras instituições. Porque estamos a debruçar-nos, agora, mais especificamente no século XIX, descobrimos, cada vez mais intensamente, que nele se gerou uma dinâmica nova, adensando-se a rede colonial na razão directa da passagem do tempo. Moçambique, Angola e África do Sul são um bom exemplo desse novo vigor europeísta, que para ali se caminha, antes que seja tarde demais. Numa história colonial densamente eivada de mitos, no entendimento de Luís Manana de Sousa, com uma ideologia marcada pela pretensa superioridade racial, pela oposição civilização-indigenato e pela sua missão civilizadora (Vd. Sousa, 1998), é possível descortinar janelas de verdade, que muito nos ajudam ao surgimento de um nova visão e de uma outra luz. Sendo que o “Sistema colonial apresenta-se-nos como o conjunto das relações entre as metrópoles e suas respectivas colónias, num dado período da (sua) história” , as linhas e as entrelinhas não podem ser dissociadas, sob pena de truncarmos a própria verdade. Com os prazos a serem uma manifestação relevante do que se deve ver como método colonizador, nestes anos de 1900, sucedem-se as peripécias à sua volta. Entretanto, com D. Diogo de Sousa investido num lugar ordinário de capa e espada no Conselho Ultramarino pelas suas funções de governador e capitão-general das capitanias de Moçambique e do Maranhão (assim se vendo a mobilidade existente), isto no ano de 1805, nota-se aqui uma organização mais cuidada. Se toda a colonização se constrói com acção, legislação e realizações concretas, queremos fazer sempre a história africana, pondo de lado a tendência para os relatos europeus. Quanto aos prazos, é evidente que esta será a nossa postura. Constituídos na base enfitêutica, por três vidas e sucessão feminina, ainda em 1830 se passavam cartas de aforamento, como o Prazo Luabo, cuja certidão tinha sido emitida em favor da Condessa de Sarzedas. Confirma-se ainda Nhacatondo para Luísa Tomásia dos Santos Rodrigues. Por sua vez, como escreveu Francisco Santana (1964), há quem queira outras mercês. Assim, José Francisco Alves Barbosa, foreiro em terceira vida do Prazo de Inhapande, vem requerer a renovação por outras três vidas, a começar no seu segundo filho, Guilherme Alves Barbosa. Quanto a Vicência Barbosa Cabral de Abreu, fala-se nas demarcações que deveriam ser feitas no prazo de dois anos e, posteriormente, de 25 em 25 anos. Já Xavier Botelho, conhecido pelo seu carácter arbitrário e teimoso, se via a braços com a falta de medições e confrontações, a mostrar o modo como se fugia à própria lei geral. Esta sintéctica abordagem dos prazos aparece aqui por uma razão bem simples: cabendo-lhes uma fatia importante do processo colonizador, neles vemos, pela teia e rede de suas complexas atribuições e extensos poderes, um veículo de fuga da identidade colonial que, como já dissemos, se procurava alcançar e que, assim, se escapava pelas frestas. Para lograr chegar a esse objectivo (que nunca foi atingido, aliás), foi tentada a convergência de muitos factores: a língua portuguesa, o figurino administrativo, a pressão militar, o aliciamento às chefias locais, a passagem da oralidade para a escrita, a aplicação da justiça com cânones ocidentais, tudo isso era utilizado com semelhante intenção. Só que, por entre o pensamento e a legislação, furavam as sucessivas falhas e os múltiplos atropelos. Vimos já o panorama religioso, bem deficitário. Militarmente, o quadro não aparecia melhor pintado. Anote-se que, em Abril de 1824, um pedido de fornecimento de mantas, destinadas às praças em partida para Moçambique, merece uma seca recusa, por se não considerar necessário, nem haver no Arsenal Real do Exército. Entretanto, o 1º Tenente Graduado Miguel António de Morais Cid recebe uma verba de 720 mil réis, para ser gasta em fardamento. Em 1829, desencadeiam-se as queixas, em vários tons e com múltiplos destinatários: falta de socorro militar, pela escassez da guarnição de Moçambique, quando até era preciso enviar tropas para a construção da estrada de Quitangonha à Ilha de Goa, na barra do posto; existência de fome em Quelimane, Sofala e Sena; por sua vez, o Padre José Agostinho Barreto, toca outra vez na ferida religiosa, desabafando que “os habitantes cristãos (que eram pouquíssimos), ignorando ou desprezando seus deveres, vivem em maior relaxação de costumes e inacção para o culto divino” . Acrescentando a tudo isto a influência dos árabes e a continuação dos conflitos vários, não era propriamente risonho aquele presente moçambicano. Neste contacto com a re-história de África, que Isabel Castro Henriques mostrou ser uma necessidade (Vd. Neves, 2002), temos de saber retirá-la do serviço directo prestado à consciência nacional, para a colocar no seu lugar: o conhecimento de África, tal como ela se apresentou no decurso das épocas e das circunstâncias. Entre estas, a escravatura, sem nos honrar, foi, apesar disso, um dado adquirido. Constituiu, a nosso ver, com a variante do trabalho e das culturas forçadas – um expediente para substituir o regime esclavagista, sem perder os benefícios desse género de mão-de-obra – o maior motor de arranque das consciências de uma identidade, primeiro africana e depois, seguidamente, moçambicana. A vastidão das problemáticas que o seu estudo implica dariam, elas e só elas, matéria para uma tese específica. Não é essa busca exaustiva que pretendemos atingir. Desejamos apenas mostrar, de alguma maneira, os contornos que gerou para a construção da identidade moçambicana, por convicção ou por oposição a um mundo que se não tinha desejado e se procurava exorcizar. Numa diversificada panóplia de dados sobre a escravatura, damos de caras com uma vastidão de leituras que, dificilmente, as poderemos abarcar. Para se ter um ideia, só no Volume I, Maços 1 a 10, da Documentação Avulsa Moçambicana do Arquivo Histórico Ultramarino, sumarização de Francisco Santana, podem ser analisadas mais de cem referências directas e muitas outras paralelas. Era tal o abuso que até os enfiteutas chegavam a vender colonos “como se fossem escravos seus” . Ainda antes do século XIX, em 1795, se deixava navegar para os postos da América portuguesa (Brasil) um navio de trezentas a quatrocentas toneladas “em que pretendem transportar escravatura para os ditos portos” . Por estes tempos, dedicavam-se, eventualmente, a tão arrepiante negócios as embarcações Afonso de Albuquerque, Astreia, La Caroline, 19 de Março, D. Estêvão de Ataíde, Elisa, L’ Espiègle, Fluminense, Império do Brasil, Indústria, Lévrier, Lourenço Marques, Maria Leonor, Mariana, Minerva, Novo Paquete, 7 de Julho, 30 de Março, 28 de Março, Vitória, Vulcano e Zéfiro. Podem ainda, entre tantos outros, enumerarem-se também Ana Feliz, Ásia Feliz, Inhambane, sendo que muitos dos demais barcos deixam no ar um sem número de dúvidas e questões por responder. Não se pense, porém, que a escravatura foi obra engendrada e aplicada apenas pelos portugueses, no seu continente e nas terras por onde se espalharam. As civilizações clássicas, de Grécia a Roma, tinham populações escravizadas e, na África Oriental, por exemplo, a exportação de escravos existe, pelo menos, desde o século IX depois de Cristo (Ilife, 1999). Tudo isto não invalida, de forma alguma, a culpa nacional em toda esta ignóbil e mercantil actividade, porque “Numa cristandade europeia em que a escravatura quase tinha desaparecido, a sociedade portuguesa fazia figura de excepção” . Mas é evidente que, como acentua Michel Morineau, “A escravidão não era desconhecida na Europa. Estava organizada em Espanha e Portugal” . Dois séculos depois, mantinham-se estas vivências, mas despontavam, por essa consciência europeia adentro, os gritos de repulsa de todas as formas perversas de escravidão e de tráfico de pessoas humanas. Morineau mostrava-se abertamente cáustico em relação às práticas seguidas por Portugal, apontando-lhe até facetas que, obviamente, lhe não podem ser assacadas. Eis as suas próprias palavras: “Os portugueses na origem torpe deste tráfico, que transportavam já mão-de-obra para um Brasil em plena expansão (…) ficaram com a parte de leão nos lucros” . No meio desta meada, aparecem também e em escala algo dilatada, as comunidades locais, que não podem esquivar-se às suas próprias responsabilidades, sem que esta afirmação deixe de considerar a gravidade desse período da história portuguesa. Ao chegarem a este continente: “Os portugueses encontraram em África, como noutras paragens, a escravatura como instituição enraizada” . Perante um tal contexto, dois caminhos podiam ser seguidos: abdicar desse mecanismo, ou pegar-lhe com toda a força. Foi esta última a opção portuguesa, não obstante ter deixado a ideia, nalgumas situações, que estava a cooperar com a sua irradicação. Aconteceu assim com a apreensão da barca Charles et Georges, onde seguiam cento e dez escravos (Id., p. 456), mas, em substância, não se assistiu, verdadeiramente, a uma condenação eficaz do esclavagismo. As marcas mais penetrantes Até se chegar ao ano de 1975, aquele que dita a sorte de mais dois países separados, mas com pontos históricos bem comuns, muitos acontecimentos se inscreveram nessas páginas. A sua profundidade para o tema em análise é, óbvia e claramente, diferenciada. Se uns podem ser considerados colaterais, outros tiveram uma carga e uma influência determinantes. Mas, cada um à sua maneira, todos eles devem ser apreciados e catalogados de acordo com as circunstâncias e os papéis desempenhados. Para a afirmação da nação moçambicana e da sua consequente identidade, vamos, no entanto, debruçarmo-nos, essencialmente, sobre os aspectos que consideramos fundamentais. Língua, educação, organização social, política e militar aparecem, à luz da nossa leitura, na primeira linha da abordagem que temos de fazer. Com estes instrumentos, a que se associam a religião e a missionação, alguns investimentos e os quadros jurídicos, pretendeu-se, enfim e em suma, criar ali, em Moçambique, um espírito português, uma ideia de pátria pluricontinental. Mas, quando o tiro sai pela culatra, os resultados encontrados nem sempre foram aqueles que se projectaram. Com uma mão pequena e um corpo exageradamente descomunal, seis mil europeus, por volta de 1910, eram manifestamente poucos obreiros para a grande seara moçambicana. Como ponto de partida para a sua análise, subscrevemos uma série de conceitos já anteriormente assumidos e ainda esta conclusão: “Em 1858, tal como a quase totalidade dos Estados que hoje conhecemos na África negra, Moçambique não existia. Nem politicamente, nem etnicamente, nem economicamente se lhe pode encontrar seja que consistência for a não ser nos acessos de optimismo e na ignorância de certos cartógrafos ulteriores” . Muito embora também se não possa dizer que se está perante um vazio total, na verdade, a entidade Moçambique, nessa época sem fronteiras definidas, sem coesão interna – que ainda hoje é difusa -, sem um corpo próprio, era uma espécie de miragem e uma bola de sabão em enchimento. Colónia longínqua, mera província, entalada entre o Reino de Angola e Benguela e o Estado da Índia, só da costa e do vale terminal do Zambeze se ouvia falar. Entretanto, “Sessenta anos depois, o Moçambique de 1918 (...) tinha já nascido” . Mas “E é preciso ainda que se saiba que, ao cabo desses sessenta anos de laborioso parto, Moçambique era um puzzle em que três diferentes administrações criavam sete troços diferentes” , para três administrações, três legislações e outros tantos boletins oficiais. Face a este panorama, três caminhos se poderiam ter seguido: deixar aquele espaço à sua sorte e esquecimento, prosseguir com determinação a sua colonização e unir as diversas peças que o constituíam. Optou-se pelas duas últimas vias, à semelhança dos outros parceiros europeus. Cópia de actos praticados sobretudo pela França e Inglaterra, mas também pela Bélgica e pela Holanda, para apenas citar os principais colonizadores, Portugal deixou-se embalar pelos ideais da civilização a todo o vapor e pelos mitos da superioridade do velho continente europeu. Conhecedor das margens do Índico ainda no século XV, mas sobretudo a partir da centúria de 1500, agarrou-se, empenhadamente, a Angola e a Moçambique, que a Índia parecia segura, quando o Brasil, o paraíso de todos os sonhos, lançou o seu grito de Ipiranga, em 1822. Chegara, a partir desse ano, a vez de África, que se acentua de uma forma cada vez mais incisiva. Ao aproveitar um abrandamento dos seus companheiros de missão, Portugal parte para o sul dessa África oriental, nas costas atlântica e índica, com quase todas as suas energias, pensando, para si mesmo, que ali estava sozinho, porque “... O escasso interesse manifestado até aí pelas outras potências em relação à África não faziam recear concorrência” . Enganava-se redondamente. À espreita, vigilante e ameaçadora, estava a Inglaterra, metida que fora no bolso a velha aliança, nessa altura pouco fraterna, subjugando-se a outros interesses. Com a hostilidade de muitas comunidades locais, o novo obstáculo juntava-se assim aos muitos contratempos encontrados, quando “Os ingleses procuravam, por todas as formas, remover-nos das posições em África” . Soada essa campainha, os sinos só tocariam a rebate, mais picadamente, nos anos 90, do século XIX, em resposta ao Ultimatum, um marco dos marcos nas relações luso-britânicas. Para se impor, a nível interno por esse Moçambique além, indo do Índico para o interior, um dos pilares foi o alargamento das fronteiras, como meio de afirmação territorial, como bandeira nacional e como manifestação de poder perante as demais nações europeias. Sem considerar interesses autóctones, sem pensar em culturas ou etnias existentes, a delimitação fronteiriça conseguiu-se por vias diferentes, mas convergentes: expedições, domínio e conquistas, iniciativas particulares e alguma acção da coroa. Com as fronteiras a serem resultado directo da colonização, da ocupação efectiva e até da marcação territorial, nessa altura tudo ou quase tudo era atribuído “não à coroa, mas aos feitos e ousadias dos colonos” . A par desta constatação, é do exterior, no entanto, que nascem as delimitações, feitas um pouco a olho distante, radicado algures na Europa, sem contemplações, como vimos, com quaisquer interesses locais. Ao querer-se África como uma espécie de prolongamento de cada nação europeia colonizadora, só esta postura ambiciosa bitolava os futuros destinos daquele imenso continente, em nome de uma apregoada função civilizadora e, muito mais do que isso, ao sabor da força do comércio unilateral, da apropriação de matérias-primas baratas e da criação de mercados para os produtos excedentários dos países ocupantes. Nesta “Parcela de um Continente que, apesar de tudo, ainda está por revelar, (...) a ele chegaram, antes da curiosidade dos exploradores dos sertões ser completamente saciada, as ambições de tantos que, sem sequer o terem pisado, em várias partes o querem e têm vindo a espoliar de tudo, sem nada lhe dar em troca” . Assim, pouco mais do que nula foi a intervenção dos africanos, os verdadeiros protagonistas da história, que outros quiseram escrever em seu nome. No topo desta pirâmide de decisões alheias, encontra-se a Conferência de Berlim, nos anos de 1884/85, a coroar muitas outras acções e a anteceder acordos futuros. Como quer que seja, à luz do direito internacional, Moçambique de hoje rege-se por esses parâmetros aí definidos, pelo que o seu espaço, mais do que uma evidência natural, é uma terra talhada a régua e esquadro por aquilo que os portugueses conseguiram obter no âmbito dessa cimeira colonial e que a então OUA veio consagrar como doutrina indiscutível e intocável. Nesta perspectiva, para se alcançar a identidade nacional, é preciso superar outros problemas e obstáculos, mas, quanto a fronteiras, o trabalho de casa foi então feito por terceiros, mas a converter-se na realidade actual. Como Portugal via no império a libertação da sua própria posição periférica, desejando tornar-se uma grande potência, no sentido de destacar o facto de que “não é um país pequeno” ei-lo a dizer à Europa que, em tamanho, chega a levar-lhe a palma, como se pode apreciar na Exposição Colonial do Porto, em 1934. Herdeiro desse passado, no Estado Novo este era empolado até à exaustão, mas aos antepassados se devem, com certeza, essas proezas, que nem a 1ª República, orgulhosa do seu pendor libertário, conseguiu desperdiçar. Contrariamente a tudo isso, absorveu-o plenamente como seu e dele fez o seu estandarte, porque do Ultimatum colhe parte da sua própria garra política, cujo programa “significa a concretização articulada de um projecto de sociedade” . Com a elasticidade fronteiriça do século XIX, assiste-se, entretanto, a 9 de Junho de 1891, ao aparecimento do Parecer nº 102, em que se esboçam as bases do Tratado entre Portugal e a Grã-Bretanha, quanto ao estabelecimento do mapa colonial africano português (Ferreira, 2006, p. 20). Se a grande parte dos conflitos em torno do território moçambicano andaram à volta dos velhos aliados europeus, já em 1886 se subscrevia uma Declaração Luso-Alemã relativa às mesmas delimitações e, em 1891, uma Convenção Luso-Belga trata da região de Lunda – Angola. Também os Países Baixos entram nesta esfera com uma Convenção, em 1893, sobre Solor e Timor, assim como a França, no que diz respeito à Guiné. Quanto a Moçambique, em concreto, há ainda o Tratado dos limites com o Traansval (1870), a sentença arbitral do Presidente francês a favor de Portugal, que tem por base o diferendo sobre Delagoa Bay (1875), reclamado pela Grã-Bretanha e uma outra decisão, esta italiana, em que se abordam as terras de Manica, também a implicar os ingleses (1897). Cerca de um ano depois (1898), o eixo dos interesses desloca-se para outras latitudes, pois uma Convenção Anglo-Alemã decide apropriar-se das colónias portuguesas, a pretexto de um eventual empréstimo a Portugal, sempre a acentuar a supremacia total europeia sobre as zonas que ficavam de fora deste continente. Em resposta, o governo português fala apenas do continente e das ilhas, jamais das alfândegas coloniais, numa clara demonstração que tudo se resume a meros registos contabilísticos e económicos, esquecendo-se quaisquer outros valores. Para atenuar estas derivações, a 14 de Outubro de 1899, em Windsor, um novo Tratado Luso-Britânico renova a garantia inglesa de que a integridade dos nossos territórios metropolitanos e ultramarinos não será posta em causa. Porém, em 1903, ainda se equacionavam os limites ocidentais do Reino de Barotse, precisamente com os mesmos protagonistas. Conseguida a definição espacial, ainda que por caminhos ínvios, dá-se corpo, em simultâneo ou em momentos diversos, à entrada da língua portuguesa e de mecanismos de educação e de evangelização, como suportes da tentativa de se vir a conseguir uma colonização/civilização, que se apresentasse como a alavanca perene da tal pátria pluricontinental. Só que, pelo meio, interpuseram-se as vozes locais, o que fez frustrar todas estas iniciativas. Na frieza das demonstrações, o processo encetado parecia infalível. Por isso, é dele que, agora, vamos tratar, ainda que sumariamente, com base nos dados que conseguimos apurar. É que “O historiador só tem acesso às expressões públicas da memória dos indivíduos, desde que estas tenham sido objecto de registo para a posteridade” . Nesta temática como noutras, as fontes, quaisquer que sejam, têm para nós idêntico valor, salvaguardando-se, assim, o carácter específico das culturas africanas, tendo em conta a credibilidade que lhes está intrínseca, como facilmente se depreende. Com a liberdade de imprensa – uma outra dimensão a considerar – a ser implantada em Portugal, no ano de 1834 e a estender-se ao Ultramar em 1856, sucedem-lhe as cadeiras de Ensino Público nas Províncias Ultramarinas (1835), a respectiva organização da instrução primária (1845/46), a Regulamentação da Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa (1864), o provimento das cadeiras de ensino primário (1901), a Escola Colonial e o ensino profissional nas colónias (1906), assim como a reorganização dos seus liceus – poucos, aliás. Bastante significativo é o decreto de 1904 a consagrar o estabelecimento, em Moçambique, Angola e Cabo Verde, de escolas práticas para o ensino da língua portuguesa, reconhecendo-se assim a sua crescente importância como elemento congregador do mesmo sentimento nacional. De mão dada com a educação ou a projectar-se mesmo na sua frente, a imposição religiosa, sobretudo por via da missionação, acompanhou, quase sempre, a diáspora portuguesa, adquirindo nos dois últimos séculos uma faceta especial, que desemboca na Concordata e no Acordo Missionário dos anos quarenta do passado século XX. Aparecem, pelo meio, outras instituições, de feição complementar até à 1ª República e de contornos de substituição, por razões laicas, nestes 16 anos (1910 a 1926). Logo, em 1836, desponta, no Porto, a Associação Civilizadora, para a difusão cultural, enquanto em 1862, vê a luz do dia a Associação Civilização Popular, tal como outros serviços de igual índole. Quanto ao fenómeno religioso, dando como adquiridas as iniciativas anteriores, citadas ou implícitas, deparamos, em 1856, por alturas da entrada em funcionamento do Seminário de Cernache do Bonjardim e respectivo Colégio das Missões Ultramarinas, com a ratificação da continuação do Real Padroado Português, no oriente (1859). Num esforço transnacional, em 1870, chegam a Angola padres católicos franceses, ratificando-se, em 1886, a Concordata com a Santa Sé, uma de tantas outras, assim legitimando, passe a expressão, aquela que mais marcou a colonização missionária portuguesa – a Concordata de 1940, que se vê acompanhada do Acordo Missionário respectivo. Neste panorama, à difusão da língua portuguesa confere-se, também, um estatuto especial, por se saber, já por essas épocas, qual a sua força de alavancagem na construção da terra e alma lusas. Sem grande alcance, porém, face aos números posteriormente vindos a lume. No entanto, não pode negar-se o esforço que nesse campo veio a ser concretizado. Como que a justificar essa fraca adesão, vejamos uma asserção que questiona a forma como esta tarefa foi implantada, para melhor confronto de ideias: “A fragilidade da presença da língua portuguesa em todos os países que se tornaram independentes deriva da falta de estratégia governamental” . Resulta, na opinião de Alfredo Margarido, um efeito contrário, que passa pela forma como os portugueses se tinham de adaptar aos localismos, naquilo que outros apelidaram de cafrealização, mesmo em matéria de uso da língua. Isto é: longe de transmitirem, cabalmente, o português, como veículo de comunicação e de cultura, restou-lhes a aproximação às realidades encontradas, o que mostra a importância e a resistência dessas comunidades e sociedades. Com alguma clarividência, em 15 de Julho de 1885, desabafava Luciano Cordeiro, na Câmara dos Deputados: “Não temos conseguido determinar e seguir uma verdadeira política, um verdadeiro plano colonial” . Plenipotenciário na Conferência de Berlim, Luciano Cordeiro, ao falar assim, mostrava saber aquilo que dizia. E isso basta para aquilatarmos a debilidade dos nossos meios e processos. Numa variedade palpável de culturas e sociedades que tinham como base a palavra e a oralidade, afirmar o peso de uma língua estranha e organizada, cientificamente e por escrito, não se nos afigura, importa referenciá-lo, tarefa fácil. Mesmo assim, essa foi uma das grandes apostas lançadas para o tabuleiro do xadrez colonial, cujo êxito parece ser bastante questionável. Deste modo, algo mais falhava, a ultrapassar o campo linguístico. Era o próprio edifício da civilização que se não construía, posto que “Uma língua é sempre expressão de uma cultura, de uma concepção do mundo e do homem” . Com a desunião desse pilar, todo o processo ameaçava entrar em derrocada, apesar dos esforços desenvolvidos. Perante as línguas dos outros, o português custou então a afirmar-se, mas, após a Independência, Samora Machel viu, na sua utilização, o instrumento que os seus iniciadores não souberam aplicar, convenientemente. É que “Graças ao mar, os europeus foram obrigados a dar-se conta da importância da alteridade, tornada o suporte das acções dos homens decididos a afirmar a força insuperável da complementaridade” . Assim é em todas as áreas, da língua à sociabilidade, passando por todos os outros domínios, sobretudo, das ciências sociais. Neste mundo complexo, “... não é a língua que me fala a mim, mas sou eu antes que a faço falar...” . Moçambique era (e é) então o lugar para a fazer desabrochar, o que, pelos vistos, não aconteceu como era o objectivo dos promotores da sua difusão. No conceito de Gregório Firmino (Vd. Carvalho & Cabral, 2004), podemos ter línguas de origem local e ex-coloniais, estas de “comunicação mais ampla” uma das razões que levou a que esta última tivesse sido escolhida para língua nacional moçambicana, após 1975. Assim, “...o português poderá ser actualmente um dos símbolos que é amplamente reconhecido pelos moçambicanos para marcar a unidade nacional...” . Ainda que se saiba que nem todas as medidas venham a resultar em pleno, tudo se complicará mais se uma visão sistémica não presidir às diversas atitudes governativas, de que podemos destacar a organização social, política e militar e os necessários quadros jurídicos, que, tremidamente, se foram tentando colocar em acção. Crescente petite colonizador Ao entrar-se no século vinte e numa altura em que o regime se alterara radicalmente, passando-se da monarquia para a república, pensar-se-ia que, nessas viragens, também o colonialismo pudesse ter sido afectado, designadamente em favor dos povos africanos e da afirmação de suas identidades e expressões sócio-culturais. Na realidade, assim não aconteceu. Diremos até que a força tentacular deste domínio veio a crescer, acentuada e aguerridamente. A Primeira Grande Guerra é disso um claro reflexo, por nela se reflectir muito do peso que as colónias tinham – e representavam – para as várias potências europeias. Mas, anos antes, sobretudo com a Conferência de Berlim (1884/85), era já visível este quadro, com a corrida acelerada para África, palco de uma desproporcionada e atrevida força militar, que em Moçambique também não deixou de ter, como vimos, os seus efeitos. Uma sequência de acontecimentos, que chegou a despoletar interesses não-portugueses, antecedeu mesmo essa Conferência, logo a partir de 1877, com a Carta de Lei a nomear uma expedição científica para explorar os territórios entre Angola e Moçambique, com a criação da Associação Internacional Africana no âmbito da Sociedade de Geografia de Lisboa – um poderoso mecanismo colonial de per si. Mas são, essencialmente, as explorações africanas lavadas a cabo por Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens que constituem grande granada ofensiva. Ao chegar a Moçambique, em Setembro de 1884, Serpa Pinto transporta consigo um outro presente: o convite dos governos francês e alemão para Portugal participar na citada Conferência de Berlim, endereçado a 12 de Outubro desse mesmo ano. Iniciada em 15 de Novembro de 1884, Portugal assina o seu Acto Geral em 26 de Fevereiro de 1885, associando-se, por este meio, às suas conclusões e implicações. Entretanto, neste mesmo ano, um Tratado luso-britânico viria a ser o elemento detonador da citada Conferência, convocada, aliás, por um país europeu que, até essa altura, havia ficado praticamente de fora de todas estas contendas africanas. Com esta nova fonte de direito internacional, “Todas as nações, até aí alheias a empreendimentos coloniais, apareceram a talhar domínios em África. O direito de propriedade secular deixou de constituir valor absoluto, passando a exigir-se a ocupação efectiva e a corresponderem ao direito de posse os deveres de utilização e colaboração activas” . Com a consequente acção conquistadora, levantam-se os protestos, as insubordinações nativas, que se manifestam sob um chapéu de variadíssimas formas e conteúdos. Colocados à margem destes acontecimentos determinantes, os africanos não se sentam a esta mesa, pois são vistos como objecto dos interesses europeus e nunca como seus sujeitos activos, faceta que não nos cansamos de referir. Não obstante esta hoje sentida ausência, os trabalhos lá se foram desenrolando, passando essa Conferência a ser considerada como “um desses eventos fundadores que, muitas vezes, são investidos a posteriori de uma importância, real ou simbólica, que não tinham no momento em que ocorreram” . Mito e realidade ali se confundem. Mas as fronteiras actuais de Moçambique nela foram traçadas em grande parte, sem dúvida. Sabendo-se que “O projecto de expansão marítima (se) tornara um projecto nacional que marcaria durante séculos a identidade portuguesa” , corre-se ao sabor dos ventos europeus, no crepúsculo do século XIX e na alvorada do século XX, mas com a tentativa de ocupar uma pista própria. Sem recear quaisquer desmentidos, em dois regimes e em três tempos - monarquia, primeira república e estado novo – apenas se tem em mente, ainda que com diferentes cambiantes, um mesmo objectivo: a crescente importância colonial e a sua alavancagem do brio e orgulho nacionais. A seu modo, sempre a metrópole, nessas épocas, entendeu viver como um todo tentacular, aquém e além-mar. Neste contexto, “Os oceanos constituíram para Portugal um campo fértil para a formação e consolidação da sua identidade como Nação e da sua individualidade como país soberano” . Desta forma, a terra europeia, sólida enquanto continente, projecta-se pela água fora, encadeando uma infinidade de pontas que vão, neste caso, do Atlântico ao Índico. Com a Europa a ditar as normas do direito internacional, assumindo-se como sua única fonte, todas as suas nações procuravam ampliar o respectivo bolo, por razões de extensão territorial, por afirmação própria e argumento de peso, em termos de diplomacia internacional, por imperativos económicos, a coberto de uma pretensa missão civilizadora e salvítica. De olhos postos no umbigo, o eurocentrismo vigente tudo triturava. África e Ásia, nesta altura, pouco contavam. Começava, no entanto, a emergir uma nova realidade, vinda do ocidente longínquo e do outro lado do Atlântico – os Estados Unidos da América. Mas a sua voz só vários anos mais tarde se viria a ouvir e a seguir. Quanto aos portugueses, razão e emoção, realidade e fé entrelaçam-se. Europeus da ponta, com o mar aos pés, cria-se, então, que o ultramar era mais nosso que de quaisquer outros eventuais possuidores ou ocupantes. A estas convicções, junta-se um outro factor de peso, este que se descreve: “Com o privilégio que alcançamos de Roma, conhecido por Padroado, levávamos por nossa conta, a luz do Evangelho aos povos mais distantes” . Colonos, militares, comerciantes, missionários, agentes administrativos, é todo esse pessoal que busca saciar o seu apetite colonizador, quer pela via da instigação do poder central, quer até por esforço próprio, porque a recompensa – era esse também um mito – não deixaria de aparecer. Com base nestes mecanismos, “A nossa autoridade administrativa e militar foi-se instalando aos poucos” , por entre um sem número de peripécias, que vão das alianças às conquistas, a passarem pela elaboração de um sonhado território cor-de-rosa, em mapa elaborado e divulgado para esse efeito, por tratados e contra-tratados, ora com a Inglaterra, ora com a França e a Alemanha, ora com ambos, mas a penderem sempre para os velhos aliados, a Inglaterra, destilado que foi o sumo azedo do Ultimatum. Acrescem ainda as expedições, os feitos heróicos e a humilhação (somada àquela que resultou da pressão britânica) de ter de cumprir os ditames da Conferência de Berlim, ponto alto de uma partilha de África, que só teve, como já dissemos, olhos europeus e a frieza crua do seu raciocínio linear, de régua e esquadro, afogando linhas étnicas de divisões tradicionais, processo que seria sucessivamente implantado e prolongado. De acordo com o seu Acto Geral, “Impunha-se confirmar os direitos de soberania sobre as terras onde havia séculos o nosso país exercia efectivo (?) domínio, para proceder à sua valorização e dos povos que as habitavam” . Um expediente mental se aplicou: “Acordar a consciência nacional para o perigo que rondava as nossas possessões de Angola e Moçambique” . Mesmo que a presença portuguesa em África, nestes anos do século XIX – apesar de terem passado perto de quatro séculos de contactos – pouco ultrapassasse as linhas costeiras ou as margens de alguns importantes rios, como o Zambeze, davam-se por adquiridos, para registo predial nacional, todos aqueles pontos que um pé lusitano tivesse pisado. Antes de Berlim (1884/85) assim se pensava e se agia. Após este marco de delimitação fronteiriça, todo esse edifício, erguido em barro mole e em terreno pantanoso, veio a ruir. Em matéria legislativa, uma Lei de 20 de Julho de 1885, ao aprovar o Acto Geral da Conferência de Berlim e a Convenção Internacional do Congo, foi a pedra que iniciou uma casa pretensamente mais sólida e robusta, mas que não chegaria a durar, sequer, um século de vida útil e compensadora. No que diz respeito à colónia do Índico, “No início da sua formação, o Moçambique dos Portugueses existe então à beira da água, como a Guiné” . Quando fomos convocados para a citada Conferência, que se realiza numa cidade que só muito tardiamente, como vimos, despertara para estas questões coloniais, curiosamente, transporta-se, no entanto, no bolso um território imenso, que, em linhas gerais, assim veio a ser aceite. Deve dizer-se, a propósito, que este foi um enorme contributo prestado à causa da actual nação moçambicana, que se regeu, tal como os demais países africanos, pela inviolabilidade das fronteiras definidas em 1884/85, tal como a própria Organização da Unidade Africana (OUA, hoje, UA) defende, acarinha e apregoa. Mexer nesse figurino seria, para África, o desastre anunciado, a implosão temida. Ao dar-se como facto consumado a divisão territorial, não obstante se verificar, à vista desarmada, que Moçambique tem quilómetros e quilómetros de marcos fronteiriços sobejamente ditados de cima para baixo, havia que calçar as botas e pôr-se a caminho. Com as páginas recheadas de tinta europeia e despojadas da cor de quem mais iria sentir na pele os seus efeitos, à saída de Berlim nada iria ficar como dantes. Se até aí África era uma miragem a visitar para ostentar como troféu, daí em diante não podem ser dispensados os pontos nos “ii”. Cioso dos seus pergaminhos, Portugal não perde tempo, colocando-se no terreno de armas e bagagens: expedições e domínio militar são as peças a lançar no mar encapelado das tentativas de obter posse efectiva de cada palmo de espaço. No palco que temos vindo a apreciar, Moçambique, são sinuosas as vias a seguir. Jóia apetecida, aquela área continua a despertar interesses estranhos aos nossos objectivos nacionais, muito mais do que outrora. Numa sucessão de acordos e tratados, a englobar alguns protagonistas já citados, é sempre a Grã-Bretanha que se encontra, teimosa e arreliadoramente, à nossa frente, sobretudo no sul e centro da zona em disputa. Com uma aguerrida e diversificada resistência local, o campo diplomático aparece-nos como rio de águas turbulentas, sendo muito difícil passar de uma margem para outra. Fora de qualquer xadrez negocial, eis, permanentemente, as povoações autóctones, moçambicanas um dia qualquer, que ainda há-de vir. Sem olhar para a velhice dos anteriores apertos de mão, de além da Mancha chegam-nos sempre contratempos e sobressaltos de monta. Com fronteiras indefinidas durante séculos, “No xadrez moçambicano, os portugueses jogam uma partida simultânea com as apetências inglesas [103] e com a resistência dos povos locais” . Tocada e povoada a costa, a luta pela posse territorial tem sempre a ver com o interior, com as ligações continente-mar, com os acessos a pontos nevrálgicos de chegada e partida de homens e materiais. Por tudo isto, mais do que por motivações culturais ou de outra estirpe, Portugal e Inglaterra digladiam-se forte e feio. No meio de tudo isto, eis o Ultimatum de 1890 que veio trespassar sentimentos nacionais portugueses e ferir, quase de morte, todo um passado de relações frutuosas e recuos tácticos, de parte a parte, que ascendia aos tempos finais do longínquo século XIV. Com Portugal continental lá tão longe, em Moçambique punham-se de lado todas as contemplações. Quando, em 1887, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Barros Gomes, apresenta na Câmara dos Deputados o tão badalado mapa cor-de-rosa, logo os ingleses se enfurecem, recusando a sua aceitação. Simultaneamente, com o vigor e poderio dos seus meios, encetam, na imprensa, uma activa campanha contra Portugal, antes de, em 11 de Janeiro de 1890, o Lord Salisbury, chefe do governo conservador inglês, ter avançado com o seu cortante Ultimatum, “um golpe terrível no orgulho e no patriotismo português” . Com efeitos directos e indirectos, acicatam-se ânimos, minou-se o regime, deu-se alento à República, alimentando-lhe o ego e o programa, pôs- -se em marcha uma acesa diplomacia, fez-se virar agulhas nas alianças continuando, aliás, uma tendência anterior, numa altura em que, em 12 de Maio de 1886, o governo alemão reconhece a soberania portuguesa sobre os territórios entre Angola e Moçambique, acordando-se as fronteiras das respectivas possessões na África Meriodional. Chovem, como de costumes, os protestos ingleses que, dando o dito por não dito, algum tempo depois chegam a protocolar com a Alemanha a divisão das colónias portuguesas, tendo como base um aludido pedido de empréstimo internacional. Com o Ultimatum como uma espinha cravada na garganta, a Sociedade de Geografia de Lisboa mostra o seu veemente protesto, a estátua de Camões cobre-se de cruzes, cria-se no Teatro da Trindade uma Comissão de Defesa Nacional, inicia-se uma campanha de angariação de fundos para aquisição de material bélico, soa “A Portuguesa”, na sua versão original, discursa D. Carlos a reafirmar direitos de soberania, enchem-se de artigos os jornais. Entretanto, em Moçambique, também esta questão difícil e espinhosa fez abalar as consciências das elites, sobretudo em Lourenço Marques, acendendo ânimos e concitando opiniões contraditórias. Se, na metrópole, as sirenes tocaram alto e os canhões se puseram em movimento, em Moçambique as elites coloniais europeias, sobretudo na capital, abordam esta questão, mas sem o mesmo fervor. Por isto, “Parece-me deveras sugestivo tomar consciência de que o Ultimatum tenha provocado grandes questões diplomáticas na Europa, tenha galvanizado faixas extensas da população portuguesa, haja pretextado um levantamento sedicioso e alimentado grandes movimentos de opinião. Isto, por um lado. E que, por outro lado, jamais tenha suscitado uma curiosidade da mesma dimensão relativamente aos pontos de vista de Moçambique sobre esta questão” . Apesar deste aparente alheamento e de acordo com a mesma fonte, já em Dezembro de 1888 o jornal “O Distrito de Lourenço Marques” afirmara o propósito de pugnar, afincadamente, pelos direitos que diziam possuir. Mais adiante, num segundo número, há um ataque cerrado àquela imposição britânica, porque “... O pior de tudo é que estes acontecimentos se produzem independentemente da acção portuguesa, que parece ser esquecida ou menosprezada” . À imprensa se associam as próprias Câmaras Municipais de Lourenço Marques, de Quelimane e de Tete, provavelmente em função do maior dinamismo dos portugueses aí residentes, mas isso foi sol de pouca dura. Três quartos de século e um colonialismo atribulado Os tempos finais da Monarquia não trouxeram quase nada de novo nesta matéria. Portugal continuou a olhar para África com os mesmos intuitos. Virada essa página, poderíamos ser levados a pensar que a República, o apregoado tempo novo, deixaria de lado o sonho de além-mar. Actuou-se precisamente ao contrário. Espicaçados pelo Ultimatum, que se torna um dos pilares essenciais à emergência desse movimento político, os homens do Cinco de Outubro não desperdiçam a oportunidade de erguerem, bem alto, esse estandarte. Democratas à sua maneira, ao Ultramar não se estendiam, propriamente dito, as virtudes dessa postura. Quanto a Moçambique, a regra será aquela que preside ao pensamento europeu, estendendo-se de uma ponta a outra. Sabe-se então que, “O que é verdade para angolanos também o é para cabo-verdianos, santomenses, moçambicanos. A experiência colonial foi comum e as primeiras manifestações de consciência nacional também” . Se do ponto de vista local assim se pode pensar, no continente tudo é visto, mesmo pelos republicanos, da mesma forma. A bitola pouco muda: o império é um todo, ainda que entrelaçado com uma ou outra variante, mas pouco significativa em termos de edifício total e global. É nesta tecla que a República veio a incidir. Herdeira de um colonialismo conseguido, em grande medida, à custa das armas, as posições dos novos governantes afinam pelo mesmo diapasão. Assim, entre a República e a Monarquia, as distâncias não são nem abissais nem de conteúdo. A existirem, vêem-se apenas em graduação e, também aqui, pouco acentuadas. Com a vivacidade de uma consciência nacional, umas vezes adormecida, outras mais desperta – e na 1ª República assim acontece -, “A política de integração com o Ultramar, que a I República realizou no conceito pleno da unidade do Portugal europeu e ultramarino, fora já praticada nos finais da Monarquia com o mesmo entusiasmo e determinação” . Para não perder pitada desse outro mundo, faz-se consagrar na Constituição de 1911 que a província de Moçambique se encontrava sob alçada portuguesa e que, jamais, a Nação deixará perder esse e outros domínios, actuais ou vindouros. Arma de arremesso anti-monárquica, o Ultimatum fez dos obreiros do novo regime tão colonialistas quanto aos seus predecessores. Sendo que “Das três colónias, todavia, foi Moçambique, se não a mais difícil de subjugar, pelo menos aquela em que as operações militares alcançaram maior âmbito e onde os heróis coloniais exibiram os seus feitos mais ousados” , é certo que “Em Setembro de 1911, a República criou um novo ministério dentro do Governo, o das Colónias. A palavra em si não traduzia mais do que uma moda da época, uma influência francesa acima de tudo, sem significar doutrina nova na administração” . Curiosamente, assim sucederia depois com a passagem de colónias a províncias (1951) e destas a estados, nos anos 70, já nos tempos de Marcelo Caetano. Para esta gente, mais do que tudo havia a nação, que não se compadecia com qualquer fatiamento territorial, nem descolava do eurocentrismo vigente. África era, essencialmente, um instrumento de poder ao dispor dos europeus. E a República segue estas pisadas, apesar de algumas mudanças: a consagração da descentralização na Constituição de 1911, as novas Leis Orgânicas (1917), o reconhecimento do direito indígena, sem deixar ao seu destino, no entanto, os africanos, que se viam arredados, em regra, de quaisquer direitos políticos. Nesta conformidade, “Toda a legislação respeitante a indígenas defendia princípios tradicionais na história de Portugal” . Tendo em conta uma espécie de quadro geral, é de assinalar-se que em 1913 são proibidas a importação de trabalhadores, a norte do paralelo 22, em Moçambique, apenas por razões de saúde, ou seja, com medo de focos endémicos de tuberculose e pneumonia. De fora, ficavam então pressupostos filosóficos ou ideológicos, pois que, por exemplo, continua a defender-se a existência de trabalho compelido, sujeitos a Bilhete de Identidade especial, sendo portadores de uma chapa identificativa. Paralelamente, o Decreto n.º 951 de 4 de Outubro de 1914, aprova o Regulamento Geral de Trabalho dos Indígenas das Colónias, alterando-se assim legislação anterior, de 1911, relativa ao mesmo assunto. Ainda em fase embrionária, a República vê-se a braços com uma enorme dificuldade, mais uma vez vinda do exterior: a Primeira Grande Guerra, que espalhou os seus efeitos pelo continente e também por África. E estes foram tão profundos que “A Europa, após a experiência da Guerra Mundial, sai tão esgotada que cada país discursa sobre a sua própria decadência (...) A guerra mundial trouxe grandes mudanças e afectou o devir histórico de todos os países” . Participante activo desta trágica fase da vida do mundo, Portugal recebe também os seus estilhaços, mas, no campo oposto, não perfilha o novo sentimento que vem a surgir: com ponto de partida nos Estados Unidos da Europa, a nova grande potência mundial, e pela voz do seu Presidente Wilson, os povos colonizados passam a ter quem os defenda e os apoie. Ao proclamar a igualdade dos povos e das raças, o direito à liberdade e até à autonomia, é uma porta enorme que se abre, muito embora timidamente, aos seus anseios. Só que a República, apesar do seu arsenal comportar a algumas destas ideias, como a da liberdade, não avança para o passo seguinte. Desconfiando desses novos valores e do seu divulgador, é na Europa colonial que se refugia. Quando assim se procede, nem África, nem Moçambique podem respirar de alívio. Aliás, entre as duas guerras, que vinte escassos anos separam, recrudesce a voragem dos seus países em direcção a esse também devastado continente. Entretanto, a sul do Mediterrâneo aproveitam-se os tempos, de 1910 a 1926, para tentar pôr algumas contas em dia, no rescaldo do grande período das conquistas africanas, que decorreram, essencialmente, nas últimas décadas do século XIX e princípios do século XX. Com os ventos a soprar do oeste, transportando novas esperanças para os povos africanos e todos quanto viviam sob domínios coloniais, ali, na África Oriental, continuava a discordância, suportada por alguns movimentos sociais e ancorada, sobretudo, por focos de resistência intelectual. Aquém e além, coincidiam portugueses progressistas com as vozes locais. Ainda em plena 1.ª República, nos anos vinte, aparece o Grémio Africano, a congregar várias camadas sociais, com destaque para mestiços e outros africanos. Com preponderância no sul, mas a trepar por todo o território, ainda que difusamente, os ecos dos irmãos Albasini, que escreviam em português e songa, lançam alertas e despertam consciências. É sobejamente sabido que a literatura é uma peça importante em todo este género de processos e nela se “revelou e gerou a estrutura cultural de movimentos políticos que levaram à criação e consolidação do estado-nação” . Se este desfecho aconteceu muito mais tarde – e ainda não se encontra concretizado – o fermento tem de procurar-se nos antecedentes. Tal como em épocas anteriores e, muito especialmente, depois de 1926, também a República não descurou a construção de um edifício ultramarino, que não tivesse brechas. Desta forma, em 27 de Maio de 1911, cria o Conselho Colonial, dando, em princípio, sequência à Junta Consultiva do Ultramar, que vigorara de 1868 a 1911. Etimologicamente, acentua-se, nas primeiras décadas do século XX, com os novos homens ao leme dos destinos portugueses, o pendor colonialista, que o Decreto, com força de Lei, n.º 12110, de 13 de Agosto de 1926, já numa fase diferente (que abordaremos proximamente) vem reforçar com o Conselho Superior das Colónias. Constata-se que um elo condutor, com diversas e diferentes tónicas, perpassa a linha de rumo da política de então. Vindo da Monarquia, de uma maneira fortíssima nos seus tempos finais, salta para a República e aprofunda- -se no Estado Novo. Não obstante se ter verificado a existência de um não-abrandamento, a criação dos Altos-Comissários (Decreto de 29 de Março de 1911) parecia lançar os alicerces de uma certa autonomia controlada, não se perdendo, assim, os cordelinhos de todo este processo. Por razões operacionais mais do que por opções políticas, a própria Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias Ultramarinas, de 15 de Agosto de 1914, ao falar em descentralização administrativa, apenas vem servir de base a um desejado maior controle por parte da metrópole. Com as sucessivas regulamentações do trabalho do indígena (distinguindo-se este em culto e ignorante), permanecem severas restrições e limitações às liberdades daqueles cidadãos, a quem não se concedem quaisquer direitos políticos. Uma ambição presidia a todas as intenções: a solidariedade europeia em matéria de domínio sobre África, procurando ali o pé-de-meia económico, necessário em todo este espaço e assumidamente conquistado: “Desde o início do Império Colonial, Portugal como as outras potências (...) procurou impor o seu domínio político e promover empreendimentos economicamente proveitosos” . Com tal mote, todos os tempos eram poucos para o concretizar. Numa barricada diferente, por ter três lados, aos governantes portugueses começaram a aparecer nuvens logo em 1912, quando “Augusto de Vasconcelos, presidente do Ministério, nega na Câmara de Deputados a existência de qualquer tratado anglo-germânico contra possessões portuguesas” , tese desmentida pelos factos em 1913, sem quaisquer aplicabilidade, no entanto, por falta de assinatura. De uma só vez, são, assim, três os intervenientes no processo ultramarino: Portugal, africanos e outras potências coloniais, sempre prontas a quebrar a vontade comum, no momento em que sentirem qualquer ameaça ou vontade de apanhar mais que o vizinho. Estamos, então, perante uma solidariedade aos soluços e aos solavancos. Entretanto, em 1914, é a hora da partida para Angola e Moçambique dos primeiros corpos expedicionários, sinal de que a Guerra aí poderia chegar. Em resposta a estes sinais, a Conferência de Paz de Versalhes, de 1919, reafirma a soberania portuguesa do território de Quionga (Moçambique), uma prova de que os seus tentáculos tocaram também aqueles espaços à beira do Oceano Índico. Com Brito Camacho, como Alto-Comissário moçambicano, em 1921, com o II Congresso Colonial Nacional, em 1924, a República mostrara, antes e depois do Sidonismo, que o Ultramar sempre lhe interessara, como coisa própria e não como património a alienar. Depois de 61 governos monárquicos, apenas entre os anos de 1834 e 1910, a que se sucedem, em catadupa, a instabilidade social e a alternância no poder – que nada fica a dever à época passada -, esta República não teve a vida facilitada, nem abdicou da “herança colonial”, no dizer de René Pélissier, antes reforçou, seguindo o mesmo historiador, o combate à quase totalidade dos focos de contestação, assim sendo possível, em linhas gerais, “vencer as resistências de sociedades autóctones raramente dispostas a perder a sua independência de bom grado” . Alheios a realidades locais organizacionais, os agentes do colonialismo atiram-se, de alma e coração, àquelas zonas, quando “Sonhando com os tesouros do continente negro e desejosos de rendibilidade, as potências coloniais precipitaram-se numa exploração económica que, muitas vezes, assumiu a forma de uma pilhagem pura e simples e cujos efeitos nefastos foram ainda agravados pelas calamidades naturais” . Reforça-se, nesta altura, o capitalismo colonial, que se estende à requisição de soldados, aos trabalhos forçados, aos carregadores, às culturas obrigatórias, aos impostos, aos aldeamentos pensados de cima para baixo e a muitos outros instrumentos de domínio radical. É que “Na ressaca do Ultimato Inglês, a I República parece ter usado as colónias mais como elemento de mobilização política do que como elemento relevante do ponto de vista do desenvolvimento económico” . Sem cortes, o Estado Novo ultrapassou o papel que lhe cabia no bolo das heranças coloniais. Se noutros campos foi radical em desfazer-se deles, enterrando-os ou crucificando-os em lume brando, este das Colónias apegou- -se-lhe como uma lapa. Com uma poderosa mística imperial, que se pode ver, entre tantas outras manifestações, no Acto Colonial de 1930, na Constituição de 1933, na Conferência Imperial Colonial do mesmo ano, na Exposição Colonial Portuguesa, no Porto, em 1934, na Conferência Económica do Império Colonial, em 1936, na Exposição Histórica da Ocupação dos Domínios do Ultramar (1937) e na Exposição do Mundo Português, de 1940, este regime exponencia a força que se deve impor nessas paragens. Carregado de anseios de levar longe o seu papel civilizador, nada se lhe interpõe. Nem as inevitáveis consequências da 2.ª Grande Guerra, nem as posições dos Estados Unidos da América e da ONU, nos anos sessenta, nem o grito de revolta saído de Bangum (1955) são suficientes para abalar as convicções dos tempos que vão, sobretudo, de 1933 a 1968 e daqui até 1974. Adquirindo um impacto e uma dinâmica muito especiais, ei-los a integrar um novo capítulo, que se descreve a seguir. 4. As Grandes Mudanças Um Estado Novo a criar anticorpos Sem querermos pessoalizar muito esta descrição, é impossível fugir de algumas personagens. Entre todas elas, uma se destaca pelo seu discurso radical, continuado e intransigente, pelas suas firmes posições – a suscitarem ódios e afectos, quase nunca meios termos -, pelas férreas decisões, pelo sentimento nacional que cultivava acima de tudo, pelo papel instrumental que, na sua organização total, conferia às colónias, um local de onde, a seu ver, nunca se poderia sair. É evidente que uma postura tão rígida e tão inflexível acarretaria, da banda de lá, com raízes internas e externas, um espírito de revolta, ora explícito e também convicto, ora difuso, antes de se encaminhar, já na década de sessenta, para a luta armada. Jogando em três tabuleiros bem definidos, Salazar existia por si, desprezava conselhos ou deliberações internacionais, abominava quaisquer sinais de oposição aos seus ideais e desígnios. Com um caminho que vem já da Monarquia, a República foi para ele um doloroso interregno, depois de ter iniciado um jornalismo de combate, logo após o assassínio do Rei D. Carlos e do príncipe herdeiro D. Luís Filipe, em 1908. Católico nacionalista e conservador, estas são umas das cartilhas que nunca mais o largam. Daí a sua recusa em aceitar qualquer elemento seccionista, ou beliscador da sua nação pluricontinental. Nesta medida, não deixou de, em 23 de Novembro de 1914 (ainda que em desacordo com a Republica), apoiar a decisão do Congresso que autorizou unanimemente o Governo “a participar na Guerra do lado da Inglaterra, quando o julgar necessário. Em primeiro lugar, trata-se da defesa das possessões coloniais em África e da defesa da subserviente aliança luso-britânica” . Defensor acérrimo desses espaços, aproveita todas as oportunidades para os erguer como parte da causa nacional, pelo que erradica toda e qualquer sugestão, declarada ou velada, que os ponha em causa. Nesta ordem de pensamentos, lança acenos da simpatia à nova ordem surgida com o movimento do 28 de Maio de 1926, apoiando as suas medidas, com particular destaque para aquelas que se relacionam com o Ultramar. Entre estas, temos o Decreto 11737, de 19 de Junho desse ano, a nomear Gomes da Costa como ministro do Governo e interino das Colónias, o Decreto 11746, a aprovar as bases da reorganização do exército colonial, o Decreto 12110, a extinguir o Conselho Colonial e a criar o já citado Conselho Superior das Colónias, o Decreto 12412, com as novas bases orgânicas da administração ultramarina e, muito em particular, o Decreto 15241, a incidir sobre as Bases Orgânicas da Administração Colonial, este do ano de 1928. Especiais são ainda os Decretos 12499, 12499 – A, B, C, D, E, F, de 1927, com as diversas Cartas Orgânicas das Colónias e o Decreto 12533, com o Estatuto político, civil e criminal dos indígenas. A sair de fora para dentro, a 27 de Abril de 1928, António de Oliveira Salazar torna-se Ministro das Finanças do Governo de Vicente de Freitas, dando-se, assim, início a um consulado que tem dois momentos distintos e uma só visão: este período das Finanças e o de Presidente ditatorial do respectivo Conselho, a partir de 5 de Julho de 1932. Em complemento e a escaparem-se à dureza dos mecanismos de supervisão, os movimentos de libertação nacional e anticolonialista dão asas às suas próprias forças, sem esquecer que, para este governante, “as liberdades civis e sociais limitavam o poder do Estado” . De ora avante, são dois mundos opostos em acelerada e acesa disputa. Sozinho, Salazar enfrenta-os, um a um, perseguindo até ao limite da sua própria sombra o seu sonho imperial. Quanto ao território que estamos a abordar, o Estado Novo pode agradecer aos regimes que o precederam o facto de ter recebido uma região sem grandes conflitos internos: “Com o findar da segunda década do século XX, os portugueses encontram-se, finalmente, instalados em Moçambique e, coisa rara, em paz. São, verdadeiramente, os donos e senhores daquele território” . Por outro lado, é a vez de Salazar “fazer tábua rasa de todas as aspirações emancipalistas (…) contrariando teimosamente os ventos da História [quando os portugueses] marcam passo no marasmo colonial, jamais se preocupando em criarem os caboucos do futuro edifício moçambicano” . Parece-nos, no entanto, que tudo isso nem sequer tirava pitada de sono a Salazar e aos responsáveis pelo Ultramar. Sendo aquela uma parte de Nação, confere-se-lhe apenas uma atenção especial, porque, lá no fundo, quase no subconsciente, permanece uma réstia de medo de algo estranho que possa acontecer. Moçambique, entalado por pressões de origem britânica, designadamente as antigas África do Sul e Rodésia, que levaram a que o trânsito ali se faça pela esquerda, à semelhança da distante Grã-Bretanha, sempre a piscar o olho ao Oceano Índico, oferecia, apesar da aparente segurança, um grau de risco acrescido. Uns outros escudos ali se viam, no entender do Estado Novo: a assimilação, vinda de trás e o multiculturalismo, que Gilberto Freyre ajudara a construir. Com mais estes dois pilares (que, afinal, eram, também, de barro), a mentalidade imperial impunha as suas próprias balizas. Mas foi com os instrumentos jurídicos criados, refinadamente colonialistas, que melhor se alicerçou a convicção de que, quaisquer que fossem os ventos, internos ou externos, aquelas terras jamais sairiam da órbita nacional metropolitana. Com o Acto Colonial de 1930 a proclamar uma unidade política e moral de todos os espaços em que Portugal se encontrava repartido, a apregoar uma solidariedade económica e um direito aplicado a cada uma das colónias, tal como refere César Oliveira, era dado um claro novo sinal de uma partida diferente. Mais abrangente, a Constituição de 1933 consagrava esses e outros princípios essenciais ao regime. Enquadrado por este figurino, por si engendrado e criado, “Oliveira Salazar era, em matéria de política africana, a personificação, por excelência, da mais acabada intransigência e fixação: Portugal não podia viver, nem se cumpriria, como Nação independente, sem as suas províncias ultramarinas” . Falava-se então a uma só voz: a sua. Mas a realidade traía-o amiúde, sendo sucessivas as rasteiras e os tropeções, até dentro de portas. Um dos exemplos tem a ver com o Relatório Galvão, de 1947, em que se tecem duras críticas a estes postulados, devendo abordar-se ainda o Golpe abortado de Botelho Moniz, na década de sessenta, que será objecto de análise posterior. Assim, em casa também se mina todo o seu esquema, dando-se às organizações de estudantes do Império os meios para uma crescente contestação. Com tudo isto, o sono, recheado de pesadelos, não seria assim tão profundo e tão duradouro, aparecendo insónias constantes. O pior estaria ainda para vir: a geração Kennedy, nos Estados Unidos da América, protagonista do maior abalo infligido ao Estado Novo, que na ONU passa a ter uma poderosa e influente caixa de ressonância. Assim, “O messianismo de John Kennedy e o expansionismo de Nikita Khruschev trouxeram uma nova complexidade ao sistema internacional” , que chega, em força, a este canto da Europa, mormente a partir do ano de 1961, afirmando-se uma “Oposição aberta e clandestina dos Estados Unidos à política portuguesa em África” . Ao invés desta nova situação, em 1944/45, os mesmos EUA tinham estreitado laços com Portugal, patamar que só vem, de novo, a ser alcançado com Nixon por volta da década de setenta. Como que num ciclo de quatro fases, os EUA passam da indiferença ao apoio, do recuo à aceitação das posições portuguesas. Mas antes destes tempos cruciais, o Estado Novo, defensor acérrimo do Império, elege este como elemento essencial da sua estratégia nacional, pois “A sobrevivência do Estado e a integridade territorial são uma constante do conceito estratégico de Portugal” . Apoiando-se em imagens e símbolos, este sistema atribui grande peso aos grandes eventos, de que as citadas exposições e colóquios, dos anos 30 e 40, são uma das suas impressões mais explícitas e mais vincadas. Ao criar-se a Comissão Executiva dos Centenários, pelo Decreto-Lei n.º 29087, de 28 de Outubro de 1938, numa nota oficiosa da Presidência do Conselho, em Março, escreve-se: “(...) E numa das secções deste Congresso, onde se tratasse da política indígena e de colonização, poderiam ser versados com interesse internacional problemas da maior oportunidade” . No decorrer do respectivo Congresso Nacional, o Dr. Aires Kopke afirmava solenemente: “Todos os que estamos inscritos neste Congresso nos empenharemos em que ele tenha os mais profícuos resultados e que marque, uma vez mais, todo o cuidado e competência que Portugal tem para dever, com toda a justiça, ser considerado pela sua brilhante História, já de séculos, e pela sua actividade actual, como uma das grandes nações colonizadoras” . No mesmo tom, o General Teixeira Botelho referia-se a Salazar como possuidor de uma “Alta e patriótica concepção do senhor Presidente do Conselho” . Como que a dar a ideia de alguma transigência perante factos novos, em matéria de terminologia, o Estado Novo não se cansa de mostrar modificações efectuadas, de modo a “moldar a transição do Portugal colonial para o Portugal do império colonial e depois para as Províncias Ultramarinas em 1951” . Entre os muitos apoios de que o regime se serviu, o papel da Igreja Católica, em particular, revelou-se como um dos mais destacados esteios na prossecução dos objectivos estabelecidos. Agarrando-se à Concordata de 1940, que se insere numa década de grandes realizações e definições, a mira é colocada na defesa do Padroado Português no Oriente e na missionação católica. Com influências recíprocas, estes dois pilares servem o regime enquanto o salazarismo se apronta, com afinco, a aprofundar a missão civilizadora portuguesa e europeia em terras africanas. Nestes locais, entretanto, aparecem os consequentes contrapontos: as outras Igrejas cristãs e até confissões diversas, não devendo ser esquecida a força das tradições locais. Mas uma outra verdade, a das denúncias internas no seio das organizações católicas, surge como um elemento perturbador de toda a estratégia delineada em Lisboa, que tem ainda na Sacra Congregatio de Propaganda FIDE um outro fermento abalador da solidez pretendida. Ao desprezar-se uma nova onda, que aponta no sentido de se fazer estar presente o outro que, praticamente, se encontra ausente de todo este processo, não se apreciaram, na mesa dos dados em análise, todos os contornos que deveriam ser devidamente escalpelizados. Esse foi um pormenor de tal importância que, como se descobriu futuramente, veio minar todos os demais pressupostos. Sem saber reconhecer as alteridades e entendê-las, as autoridades portuguesas acabaram por escorregar na rigidez de seus preconceitos e mitos. Para dar corpo às ideias e as transmitir assertivamente, o Estado Novo foi fértil em cultivar as dimensões da heroicidade e da mitologia, povoando, com especial ênfase, as ciências sociais e religiosas com esses conceitos. Numa relação que, frequentemente, põe em confronto as figuras do colono e do colonizado, com excepções, nem sempre a história se escreve de acordo com os seus pensadores. Fugidios, há factos que lhe escapam, pelo que à entidade metropolitana ora restam as alternativas da força, ora da persuasão, ora da cooperação. Mas, no geral, um tema vital foi alienado: o respeito pelas culturas autóctones, uma das maiores forças centrífugas de todo este processo. Tudo isto apareceu à luz do dia, porque “A força do nosso etnocentrismo amputa o mundo que pretendemos ter mais do que descoberto, inventado” . Na tentativa de tudo moldar em seu favor, a expansão europeia ocidental, em que Portugal se pretende ter integrado, de corpo inteiro, não cuidou de permitir que germinassem e florescessem outros valores que não os seus. Senhora infalível de um mundo feito à sua imagem e semelhança, nem foi capaz de volver o olhar para o outro lado do Atlântico, os Estados Unidos da América, e para os vizinhos de leste que ofereceram a esta temática uma outra luz. Constata-se, afinal, que, entre as boas intenções, fervilham contrastes insanáveis, no âmbito de uma Guerra Fria, sendo que África, uma vez mais, entra neste tabuleiro como parceiro menor: peão ensombrado num jogo de reis e rainhas, que tudo disputam para a sua área de influência. Fechado em si, Salazar e o seu governo a tudo se opuseram. Com alguma margem de dúvida arriscamos dizer que, se outros passos alternativos tivessem sido dados, o mundo em análise teria sido bem melhor. Diferente seria, de certeza. Numa concepção maximalista do tudo ou nada, em aparência chegou-se a esse objectivo, mas, no fundo, foi mais aquilo que se perdeu do que o que se ganhou: ao atrofiarem-se os povos, a bolha rebentou, a garrafa partiu-se e todo o império se esfumou. Com os métodos seguidos, adivinhava-se que tal desfecho, um dia, acabaria por acontecer. Com a entrada em acção, muitos anos antes, do Wilsonismo, que exalta a importância da democracia, da liberdade, dos direitos humanos e da economia de mercado “Como meios para alcançar a justiça e a paz ordenadas pelo Direito Internacional” não ficava muita margem de manobra duradoura para quem se opusesse a estes novos desafios. Muito embora pensemos que o conceito de democracia tem de sofrer ajustamentos devendo ser perspectivado, um tanto, em função de realidades sociais diversas, na sua essência ele é válido em todas as latitudes. Escondida no bolso na Metrópole e espezinhada nas colónias, tal como aqui, não subsistiria eternamente nessa posição anti-social. Mais tarde ou mais cedo, faria espalhar os seus efeitos e foi isso que o Estado Novo não viu, não quis ver, não se deu por achado e tudo arriscou. Sem êxito definitivo, deve acrescentar-se, pois “Essas pátrias de formação recente puseram-se em guarda contra seus antepassados” , mais como posição de salvaguarda de uma nova ordem do que, cremos nós, por alienação desse património, que, curiosamente, tem nos territórios africanos, um lugar especial na cultura e formação dos povos, chegando mesmo a atingir a dimensão de um culto – o dos ancestrais, como fonte de saber e poder. É que “Tristes dos homens e, principalmente, dos povos que não amam, nem honram os seus antepassados” . Numa África sempre por descobrir (e a alma de um povo nunca é suficientemente conhecida), o salazarismo impôs-se, como dissemos, pelo mito, pelo simbólico, pela acção educativa, pela missionação, pela administração, pela força, pelo disfarce e pela espreitadela traiçoeira à vida dos homens e das sociedades. Em Moçambique, essa foi também uma regra aplicada e, talvez por isso, tornou-se mais dolorosa e mais mortífera. Entretanto, ontem como hoje, nem tudo foi e é perfeito. Compreende-se, assim, o desabafo de Nuno Bermudes, nascido, criado e com ambições de ali ficar eternamente, quando declara: “África? Sim. Mas uma África bem diferente daquela que os nossos pais conheceram e desbravaram” . Para conseguir esse desiderato de uma África diferente, para melhor, não bastou dotá-la de vias férreas, estradas, fábricas e até escolas, cinemas. Faltou-lhe aquele ar que se não deixou respirar e que, esse sim, faz nascer o homem novo. Mas, quem cartilhas velhas lê a longe não pode chegar. Com a imagem cravada na cabeça de uma terra exótica, fria (apesar do calor real) e distante, umas bengalas se pegaram: a construção de uma “verdade”, o desenvolvimento do mito, o ressuscitar constante dos heróis. Sabida esta lição, assim se aplicou, porque “Para se orientar a nação para o seu destino singular, é necessário que a verdade se mostre tão evidente e incontestável que se torne natural” . Conjugando, com algum ardil, os actos comemorativos, a tradição, a memória nacional, a vocação imperial, os heróis, a história feita com conta, peso e medida, a idealização de uma sociedade dita multirracial e multicultural, a evocação de símbolos e signos, o Estado Novo, ao pegar nessa massa, dava-lhe a forma modelar pretendida. Seguia-se-lhe uma técnica comunicacional a preceito, fazendo de tudo isto e ainda da iconografia, da cultura popular, da literatura e até dos órgãos de comunicação social a verdade das verdades, porque lhe “compete criar as condições propícias ao ressurgimento desse português que outrora mudou o mundo... [e quanto a]... Portugal assiste o direito de interpretar a história e os sistemas políticos” . Defendendo-se uma forjada unidade e lutando-se contra o tempo, nesta época, todos os suportes e artifícios servem para construir a casa única que se quer. É aqui que surge uma nebulosa espada, a da polícia política, que, de braço dado com os seus mentores, as forças armadas e as instituições administrativas, arrasa tudo o que obstar à grande missão do Estado. Numa confusão entre informações de conteúdo militar e questões de ordem política, social, religiosa e educativa – e, muito mais, associativa – faz da denúncia uma fonte e da acção punitiva o seu catecismo, porque, também no caso português, “O colonialismo foi um sistema que substituiu inteiramente o sistema africano” . Para aí chegar, valia tudo, ainda que fossem torpes os caminhos para se subir a tal montanha. E assim se destrói uma verdade, a verdade, que deveria ser universal: “Aquele bem comum que a sociedade serve no Estado só se realiza plenamente quando todos os cidadãos estão seguros dos seus direitos” , sendo “grave atentar contra a dignidade do homem, contra os seus direitos fundamentais, contra a sua liberdade de opinião política, contra a sua liberdade de opinião política, contra a sua inalienável liberdade de consciência, contra a sua liberdade de exprimir a fé, no respeito pelas outras convicções” Dos anos quarenta em diante: novos protagonistas Se a Guerra devastadora de 1914/1918 foi um marco (quando dela emergiram, por exemplo, os Estados Unidos da América, com todo o seu peso, vigor e influência e uma Sociedade das Nações, trôpega e inoperante), a partir da década de quarenta nada vai ficar como dantes. Com Wilson, nasceu uma nova forma de encarar o mundo, mas as contradições, passadas, presentes e futuras, desse novo continente e dessa nação americana aí se fizeram sentir e na Europa também. Entre Guerras, o colonialismo não esmoreceu, nem com essa lufada de ar fresco dos primeiros anos do século XX. Seguiu até um destino inverso: aumentou consideravelmente a sua força tentacular. Nestas perspectivas se enquadram, entre outras, as oscilações de Galvão, de Norton de Matos e, especialmente, de Botelho Moniz. Só sob este prisma se podem compreender as suas posições, com um poderoso eco nos inícios dos anos sessenta. Mas, antes, em meados de quarenta, passava da defesa intransigente do império “sendo importante continuar a lutar pelas terras africanas” à tímida adopção de um princípio até aí impensável de colocar na boca de um militar: “A autodeterminação constitui um direito de todos os povos, sem discriminação de raça, etnia, língua ou religião” . Vêem-se nessas então arriscadas ideias a análise internacional, mais aberta e rasgada, a que junta uma velada crítica interna, que só explode, anos depois, em 1961. No meio desses avanços e recuos, em 1953, por exemplo, parece desconfiado da sua anterior necessidade de abertura a esses povos, ao afirmar que “O princípio da autodeterminação dos territórios ultramarinos constitui um incentivo à desagregação dos impérios coloniais e gera uma perigosa instabilidade nas relações políticas intercontinentais” Seguro da sua filosofia e prática política, o Estado Novo, vacilando, teima em segurar-se e consegue-o, com mais ou menos estremeções, até 1974. Mas sente-se, um pouco aquém e além, que se renovam, após 1940, os paradigmas de abordagem, enquanto houve tempo para isso, já que, de 1939 a 1945, a sociedade andou submersa nas agruras da Guerra e, então, quase que não havia oportunidade para deixar voar o pensamento. Embora fora desse tabuleiro, como país neutral, Portugal também não o pôde esquecer, tantos foram os problemas surgidos, desde as acusações mútuas de ligação aos aliados, ou ao eixo, à questão dos Açores e sua importância vital para o teatro bélico em curso. Quando se pretende ver um homem em viagem, em constante mutação, o tão propalado dom e a obrigação de colonizar, por razões civilizacionais, são cada vez mais postos em causa. É preciso, sob esse ponto de vista, dar voz a quem dela foi privado durante 400 anos e, com maior incidência, nesse século XX. Com experiência na matéria, os Estados Unidos da América, independentes e soberanos desde finais do século XVIII, aprestam-se, de quando em quando, a desencadear ondas de choque. Como “O homem integral é aquele que desenvolve as faculdades de pensar, querer e sentir” , é, por estes dias de quarenta, chegada a hora de soltar a possibilidade de que essas condições aconteçam, a nível geral, estádio que o Estado Novo não entendeu, nem quis que tal acontecesse. Adivinhando-se catadupas de independências, com o africanismo e o asiatismo a marcarem as agendas, “Nesse quadro geral, com a maior parte da África emergindo em ainda frágeis independências e Portugal isolando-se, submerso na ditadura e na vã esperança de conservar as colónias” , extrai-se a conclusão de que essas são lições que, por aqui, não têm qualquer eco. Ou melhor dito: espicaçam mais a vontade de prosseguir a política traçada, como se deduz do Decreto-Lei n.º 33924, de 5 de Setembro de 1944, que consagra a instalação do sector têxtil em Moçambique. Com várias potências a encetarem processos de recuo, Portugal teima em continuar a sua marcha ultramarina, lutando com um potencial de argumentos, que vão desde a razão histórica ao respeito pela herança recebida, sem hipotecar outras soluções, como aquela que se relaciona, em 1951, com a passagem semântica de colónias a províncias, como que a antecipar as questões que a ONU iria colocar, mais acentuadamente, a partir de 1955, sobretudo a propósito do Art.º 73 da sua própria Carta. Dessa forma, fugia-se também do espírito Bandung (1955) e da força que o 3.º Mundo haveria de vir a conseguir, mormente no momento em que a ONU começa a legitimar um número crescente de novas nações. Com um peso significativo nas votações, desde logo vieram a eleger como alvo de suas críticas a colonização portuguesa. Sendo que “Uma das mais importantes dimensões das relações internacionais (se) prende com os modos dominantes segundo os quais os Estados conduzem o seu comportamento internacional e assumem as suas interacções” , Portugal vê-se confrontando com uma nova situação, de denúncia e contestação externas, sendo impotente para lhe dar respostas positivas. Resta-lhe aquilo que sempre fez: fechar-se sobre si mesmo, meter a cabeça debaixo da areia e avançar, quase às cegas, para aquilo que pensava ser a sua missão. Defensor de uma identidade nacional associada a um passado colonial, só assim queria caminhar, indiferente aos sinais vindos de fora e, nalguns casos, ampliados de dentro. Entre os mais poderosos factores que surgiram, a Grande Guerra de 1939/1945 e a constituição da ONU são essenciais. As guerras mundiais e seus efeitos Com efeitos nefastos e devastadores, a Guerra Mundial, a segunda, desencadeia, em jacto, pontos contraditórios: fez nascer o tempo de um conflito surdo, bipolar, por um lado e, por outro, levou à explosão de uma nova ordem e postura internacionais. África colheria, aqui, a razão de ser de toda a sua nova vida, tal como a Ásia. Entretanto, “a cada ocasião em que uma janela para a mudança se abria, Portugal, em vez de entrar em compromissos perante o inevitável, adoptava uma posição mais teimosa” , na certeza de que daí não podia afastar-se, por ser esse o seu desígnio determinado e decisivo, segundo os cânones políticos da época. Concretizado o acordo de paz e a partilha de influências, com estilhaços espalhados pela Europa, exangue, pela Ásia abalada e a África tocada, começa a arrumar-se a casa e a dar seguimento, em primeira linha, à Carta do Atlântico (1942) e à afirmação dos respectivos poderes. Tal como Wilson, nos anos iniciais do século, em 1940, a administração Roosevelt envereda por posições assumidamente anticolonialistas. Passando por cima desse pormenor que, mais tarde, lhe traria grandes dores de cabeça, Salazar, ao ver que a Alemanha e o Japão caminhavam para o abismo, vira-se então para os EUA e assim se mantém praticamente incólume até perto dos anos sessenta. Mas estava escrito e deliberado que o velho sistema geopolítico acabara os seus dias, já que “Em 1945, dá-se uma mudança efectiva no sistema geopolítico mundial. Começa a perder relevância a geopolítica clássica, dominada pela procura da hegemonia mundial, com recurso à conquista (anexação) do território por parte das principais potências e entra-se numa nova ordem, pautada pela busca do equilíbrio . Com dois pratos, os pesos americano e soviético procuram igualar-se. Recorrem os dois intervenientes maiores da cena política internacional a um enorme arsenal de fundamentos e posições de força, que motivam o conhecido telefone vermelho, o maior sinal de alarme que jamais se vira. Branco e preto, em termos figurados, são as duas únicas cores do momento, implicando alinhamentos, ajustamentos e alianças. Paralela e timidamente, o até aí esquecido e desprezado terceiro mundo dá sinais de que está prestes a despertar. Com uma cor então mais acinzentada, desbotada, os não-alinhados começam a querer ver a luz do dia, estrebuchando, de início, rebentando, finalmente: 1955. Neste contexto, após o desfecho trágico de 1939/45, “O fim da Segunda Guerra Mundial e a subsequente implantação do subsistema das Nações Unidas, a descolonização e o aparecimento de novos Estados, bem como a assunção do multilateralismo como forma de resposta aos novos desafios da sociedade, veio, definitivamente, institucionalizar as organizações internacionais, tornando-as protagonistas incontornáveis do sistema geopolítico mundial” . Com a criação da ONU (1945), com a clara afirmação dos dois intervenientes de vulto, EUA e URSS, sempre a olharem de lado um para o outro, com a quebra de influência dos países europeus, incluindo a velha aliada Inglaterra, o Estado Novo e as colónias têm, agora, papéis cada vez mais diferenciados. Portugal acentua o seu isolamento, enquanto os seus territórios, sobretudo os africanos, (re)começam a ganhar apoios. Numa política de avanços e recuos, de desvios e reentradas, com a influência acrescida dos EUA que, paradoxalmente, ora passou de fonte do nascimento de sentimentos anticoloniais a perigoso e arrasador império global, ali se volta sempre, nas relações internacionais portuguesas destes tempos. Nesta medida, as realidades passeiam-se com os fantasmas e, quando dali vêm ares novos que apontam para a emergência de novos estados e nações, o Estado Novo recua no tempo e na capacidade argumentativa. Desta vez, como se isso fosse doutrina eterna – que se provou não o ser – relata-se um acordo de 1943, a envolver Portugal e os Estados Unidos da América, em que se registaram velhos direitos ancestrais, pois se dizia que havia o compromisso de “respeitar a soberania portuguesa em todas as colónias” . Se Wilson, como demonstrámos, já dera um toque que soava a alarme neste capítulo, logo em 1958, a anteceder a explosão Kennedy, Eisenhower veio a constatar que, por mal serem governadas e bem exploradas, as colónias começam a esboçar fortes contestações, a abrir a porta às futuras independências. Com a oposição à espera da democracia, como de um outro milagre se tratasse, já a administração Roosevelt lhe dera um certo ânimo no que diz respeito à questão colonial, ao inculcar ideais anticolonialistas. Sendo que a contestação ao regime salazarista fazia, um pouco, deste tema também um motivo para integrar os seus conteúdos, é certo que estes novos sopros são um alento para os seus propósitos e um alimento para os africanos que, em Portugal, se preparavam para outros rumos, como teremos oportunidade de ver. Prática nas suas decisões, a inclinação que leva a política dos EUA a pender para estas emergências reaparece marcada pelo peso da sua própria história e também muito por força da nova geoestratégia mundial. É uma espécie de dar com uma mão para, amanhã, vir a tirar com outra. Acontecem estes cenários com estes protagonistas e, valha a verdade, com muitos outros. Encarando-se estas cenas com grande desconfiança cultural e política, qualquer cheiro a democracia, ou a afirmação de vontade própria dos povos submetidos ao domínio estranho causam notáveis transtornos aos objectivos de Salazar. Mas, a agravar tudo isto, John Kenneth Gallbraith declarava, por sua vez: “O Império português sobreviveu não por mérito especial, mas através de uma combinação de razões intimamente ligadas a atrasos, tenacidade e mero acaso” . Dava-se, assim, uma outra machadada naquilo que se considerava ser o brio nacional, beliscado, uma vez mais, com estas afirmações. Ao dissecarem-se os efeitos das Guerras Mundiais, com particular ênfase na Segunda, para além da ascensão vertiginosa de duas grandes potências – EUA e URSS –, é o tempo de entrarem em cena reforçadas instituições internacionais. Um pouco marginalizado, precisamente pelo tacticismo vindo por ocasião do grande conflito e pela teimosia colonial, Portugal consegue alguns lugares nessas embarcações. É que, pelo meio, os Açores eram território a não desprezar e todos os protagonistas mundiais tinham aprendido essa lição, sabiamente manuseada a nível interno. Por cruzamento deste e de outros factores, consegue fazer parte da OECE/OCDE, em 1948 e, muito especialmente, da OTAN, em 1949, sendo estas adesões contrariadas pela recusa em fazer parte da ONU, palco de vetos sucessivos da URSS, que só quebra a sua armadura em 1955. Tal como vimos, parte das razões para este ostracismo estava no “Estado Novo vigente em Portugal, plasmado na Constituição de 1933, assente num regime autoritário e concentrado na manutenção das colónias ultramarinas, [que] colocou o País à margem de outros processos políticos europeus” , não obstante pequenas vitórias entretanto conseguidas. Parceiro da nova caminhada Atlântica, vê chegar o convite para participar nessa aliança através de contactos americanos, porque a Europa continua desconfiada e expectante, aceitando, todavia, que Portugal se associe a esse projecto. Cremos que isso aconteceu, não por motivações intrínsecas, mas por imperativos, novamente, de ordem estratégica mundial que o Pacto de Varsóvia (1955) mostrava estar já na forja. Já referimos que os Açores, um ás na mão de quem os detém, muito têm servido a causa nacional, sobretudo como moeda de troca. Hábil na arte de usar estes trunfos, quando as colónias assim são manuseadas, o salazarismo nunca hesita em utilizá-los. Com a Guerra em plena marcha, em 1944 assiste-se a um acordo para a utilização da Base das Lages, renovado em 1946 e noutros anos subsequentes, desta feita num tabuleiro em que eram colocados Portugal, os Estados Unidos da América e o Reino Unido. Tema a ter em linha de conta, mas com incidência regional (Europa), é o Plano Marshall, que, na sua primeira versão, se não aceitou, precisamente para marcar uma posição de fortaleza: já que, nos EUA, se encarava a nação portuguesa com desconfiança, a resposta seria esta: a não aceitação das suas propostas, ainda que o país carecesse desses apoios como de pão para a boca. Não admira, por isso, que “Em meados da década de 50, a questão colonial era já o principal tema a inquinar as relações entre os dois países” , ainda que, curiosamente, no tempo doloroso do grande conflito se tivessem vivido, por entre as nuvens, tempos soalheiros, pois “A Segunda Guerra Mundial funcionou como um poderoso estímulo para a aproximação política e diplomática entre Portugal e os Estados Unidos” . Com a Índia atravessada na garganta, com renovações constantes nos apoios concedidos e a atribuir, as preocupações portuguesas viravam-se mais para o Ultramar do que para solo europeu. Só que não era esse o tom que presidia aos concertos então vigentes, a ocidente, a leste e a norte. Quanto ao sul, o pior estaria para vir. Mas, para ver como tudo se vai desenvolver, nada melhor do que saber a importância decisiva que a ONU veio a possuir, umas vezes por si mesma, outras em função dos mecanismos que engendrou, mormente o direito de veto. Um tal cenário, porém, passaria, de início, ao lado da participação portuguesa, mais um dos efeitos laterais que a Guerra veio a gerar. 5. ONU e novas realidades mundiais Estando nós em maré de constantes alterações, com uma velocidade estonteante a partir da revolução informática, todo o conhecimento segue, a par e passo, essas acelerações. Construindo-se e reconstruindo-se, sucessiva e permanentemente, até verdades de ontem podem ser desmentidas, amanhã. Mas, mesmo em campo de áreas sociais movediças, não se pode fugir de acontecimentos indesmentíveis: o aparecimento de novos organismos, com carácter supranacional, é um desses. Sem ter participado na Conferência que antecedeu o seu nascimento oficial, Portugal leva o primeiro murro no estômago, no momento em que pretende entrar nesse comboio internacional. Se os EUA continuam, nessa fase, a ser seus aliados preferenciais, destronando a própria Grã-Bretanha, manifestando o seu interesse pela integração na ONU, já o cheiro da Guerra Fria leva a URSS a opor-se com veemência, assim se andando até 1955. Com um Conselho de Segurança a ter como elementos permanentes a China, França, URSS, Reino Unido e Estados Unidos da América, bem se aquilata a implicação desta constituição geopolítica: Europa ocidental e de leste, Ásia e América colocam-se em assinalável vantagem. África, porém, vê-se longe dessa esfera decisiva, quando apenas o Egipto engloba o número de países não-permanentes, ao lado do Brasil, México, Polónia, Países Baixos e Austrália, conforme Jornal da Assembleia Geral, primeira sessão, n.º 4 . O desnível agrava-se muito mais, no momento em que se souber quem fica com o direito de veto, esse cutelo que jamais deixa de ficar sobre as demais cabeças. Por assim ser, é evidente que os EUA e a URSS o agarram com ambas as mãos e, mesmo, com o corpo inteiro. Temendo a perda de actuais e futuros controles, esse torniquete era-lhes fundamental. A propósito do seu pedido de adesão, dele bem se pode queixar Portugal. Apesar de se incentivar a participação na ONU de cada nova nação (e isso veio a acontecer em força a partir destes anos), a regra não era tão geral como se apregoava, porque outros interesses estavam na base das respectivas aceitações. Desta forma, a democracia pura não era, naquele seio, um elemento a funcionar per si. Contava, então, com muitas areias, pelo meio, algumas delas francamente ao dispor de fins menos confessáveis. Se bem que estes sejam contratempos de grande envergadura, não deixa de ser verdade que “Através das Nações Unidas (...) as aspirações nacionais de cada nação são legitimadas e desse modo dominadas” , o que torna cada vez mais premente o seu funcionamento. Organização Internacional a que preside um espírito aberto, quanto à entrada e participação de novos membros, tendo como base alguns princípios essenciais, verifica-se, no entanto, que “não obstante este carácter aberto da ONU, no período da guerra fria, os EUA e a Rússia, usando do poder de veto, de que dispõem no Conselho de Segurança, impediram durante muito tempo o ingresso de novos membros que, segundo o critério de um ou de outro dos dois super-grandes, podiam incorporar-se nas hostes de apoio do seu adversário. As candidaturas de Portugal e de Espanha, para não irmos mais longe, foram durante anos vítimas da obstrução soviética” . Sucedânea da SDN, a ONU, enquanto organização internacional, com a classificação de intergovernamental (OIG), dotada de poderes próprios, sem pôr em causa direitos de subsidariedade, vê-se investida de altas missões, como sejam as da manutenção da paz e segurança. A antecedê-la, torna-se necessário falar da Carta do Atlântico, assinada por Churchill e Roosevelt, em 14 de Agosto de 1941, mas com maior vigor a partir de 1942, que proclamava a segurança das fronteiras de cada país, o direito de optarem pela respectiva forma de governo, a igualdade de Estados, a colaboração entre as nações, a(s) liberdade(s) e o desarmamento. Numa perspectiva histórica geral, assinalam-se, sintéctica e genericamente, outros passos: 1 de Janeiro de 1942, assinatura da Declaração das Nações Unidas; a 1 de Novembro de 1943, a Declaração de Moscovo; em Agosto e Setembro de 1944, Conferência de Dumbarton Oaks; 3 a 11 de Fevereiro de 1945, debates de Ialta. Decisiva, foi, então, a Conferência de S. Francisco, realizada de 25 de Abril de 1945 a 26 de Junho desse mesmo ano, que institui a Carta das Nações Unidas, assim nascendo a conhecida ONU em 24 de Outubro de 1945. Tida como guardiã da paz, apoiada na teoria do direito internacional, defensora, em princípio, dos direitos humanos, desde a sua germinação motivou reacções de rejeição por parte das autoridades portuguesas, que, a propósito da citada Conferência de Oaks, de 1944, dizem apoiar a clareza do memorandum holandês, com um poderoso ponto de interrogação: receia-se o “futuro duma organização que, desde já, se revela incapaz de manter a paz entre as grandes potências, se estas não estiverem dispostas a mantê-la” . Depois de um conflito com a dimensão e as implicações devastadoras, como foi a 2ª Grande Guerra, a introspecção começou a ditar leis. Fruto dessa ponderada reflexão, nasceu, para dar corpo a uma verdadeira mão invisível que evitasse tais confrontos, a própria ONU, que, no campo do estudo que estamos a fazer, adquire um capital determinante, em termos de importância e de instância a ter em conta. Se outras razões não pudessem descortinar-se, os princípios em que assenta dizem tudo: começa pela Carta em si, desdobra-se na Quarta Comissão – a da Política Especial e de Descolonização -, continua nas Agências, nos Comités , nas demais Comissões e em muitas outras de suas valências. De imediato, o seu preâmbulo é um vasto painel de altos ideais, ao consagrar estes princípios: NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flageloda guerra, que, por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito pelas obrigações decorrentes dos tratados e das outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla, E PARA TAIS FINS praticar a tolerância e viver em paz, uns com outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso económico e social de todos os povos, RESOLVEMOS CONJUGAR OS NOSSO ESFORÇOS PARA A CONSECUÇÃO DESSES OBJECTIVOS. Em vista disso, os nossos respectivos Governos, por intermédio de representantes reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, concordaram com a presente carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas. CAPÍTULO I FINS E PRINCÍPIOS ARTIGO 1.º Os fins das Nações Unidas são: 1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para isso: tomar, colectivamente, medidas efectivas para evitar ameaças à paz e reprimir os actos de agressão, ou outra qualquer ruptura de paz e chegar, por meios pacíficos, e em conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de carácter económico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais para todos sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a acção das nações para a consecução desses objectivos comuns (...). Se todos os capítulos são portadores de real interesse e de um significado específico, que não podem ser menosprezados, elegemos, em especial, o capítulo XI e os seus artigos 73º e 74º, que, de igual modo, se passam a descrever, na íntegra, dada a sua relevância para a matéria que é objecto desta nossa tarefa: CAPÍTULO XI DECLARAÇÃO RELATIVA A TERRITÓRIOS SEM GOVERNO PRÓPRIO Artigo 73.º Os Membros das Nações Unidas, que assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios cujos povos não tenham atingido a plena capacidade de se governarem a si mesmos, reconhecem o princípio de que os interesses dos habitantes desses territórios são da mais alta importância, e aceitam, como missão sagrada, a obrigação de promover no mais alto grau, dentro do sistema de paz e segurança internacionais estabelecido na presente Carta, o bem-estar dos habitantes desses territórios, e, para tal fim: a) assegurar, como devido respeito à cultura dos povos interessados, o seu progresso político, económico, social e educacional, o seu tratamento equitativo e a sua protecção contra abusos; b) desenvolver a sua capacidade de governo próprio, tomar devida nota das aspirações políticas dos povos, e auxiliá-los no desenvolvimento progressivo das suas instituições políticas livres, de acordo com as circunstâncias peculiares a cada território e seus habitantes, e os diferentes graus do seu adiantamento; c) consolidar a paz e a segurança internacionais; d) promover medidas construtivas de desenvolvimento, estimular pesquisas, cooperar uns com os outros e, quando for necessário, com orgnizações internacionais especializadas, com vista à realização prática dos propósitos de ordem social, económica ou científica enumerados neste artigo; e e) transmitir regularmente ao Secretário-Geral, para fins de informação e atendendo às reservas impostas por considerações de segurança e de ordem constitucional, informações estatísticas ou de outro carácter técnico, relativas às condições económicas, sociais e educacionais dos territórios pelos quais são respectivamente responsáveis e que não estejam compreendidas entre aquelas a que se referem os Capítulos XII e XIII. Artigo 74.º Os Membros das Nações Unidas concordam também em que a sua política em relação aos territórios a que se aplica o presente capítulo deve ser baseada, do mesmo modo que a política seguida nos respectivos territórios metropolitanos, no princípio geral da boa vizinhança, tendo na devida conta os interesses e o bem-estar do resto do mundo no que se refere às questões sociais, económicas e comerciais. Determinantes em todo este processo são a constituição dos órgãos directivos, o número de países participantes e também os modos de decisão, com destaque para as resoluções, que tanta mossa fizeram a Portugal. Mas nada o podia impedir, pois “os Estados membros das Nações Unidas gozam essencialmente do direito de verem acatadas pelos outros Estados as obrigações que resultam da Carta” e, quanto aos diversos resultados, havia que acatar as decisões tomadas ou tentar contrariá-las no plano político. Com uma Assembleia Geral cada vez mais hostil, sobretudo no momento em que recebe a entrada, em doses significativas, de novos países, provenientes de vagas sucessivas de independências, ora de Ásia, ora de África, enquanto continente de descolonização mais tardia, a discussão passaria a ser a regra. Com sessões ordinárias e extraordinárias e ainda com o recurso a uma série de outros expedientes, após alterações ao regimento que de si emana, a Assembleia Geral funciona como o grande areópago internacional, logo passível de abarcar as grandes questões políticas e até as consequentes encenações, algumas em função dos grupos de pressão entretanto conseguidos. Outro aspecto com enorme relevância é o Conselho de Segurança, bem mais activo e directo, palco de inúmeras deliberações e outras tantas determinações. Este é o “principal órgão do dispositivo constitucional destinado a assegurar às grandes potências um direito de controlo sobre a evolução da organização, bem como a sua preponderância no domínio da paz e da segurança internacionais” . No seu mecanismo de funcionamento, eleva-se a ponto alto o direito de veto, uma espécie de bomba retardadora colocada em casa grande, que dela se serve, de acordo com as suas apetências e, mesmo, os caprichos de momento em questões cruciais. Se a Assembleia é, por excelência, a pantalha dos grandes eventos, mais inclinada para temas de cooperação e de encher olho, no Conselho de Segurança, afinal, jogam-se as questões da paz e da segurança colectiva, cabendo-lhe a capacidade de impor decisões. Despicienda não é, dependendo muitas vezes da sua intrínseca personalidade, a acção do Secretário-Geral, entidade que, por si só, é o rosto visível da própria ONU, com funções representativas, diplomáticas e operacionais. Uma entre dezenas, a nação portuguesa depara na Assembleia Geral, grosso modo e, crescentemente, a partir de 1960, com um ambiente pouco amistoso e nada colaborante, ao mesmo tempo que o Conselho de Segurança faz sair resoluções atrás de resoluções em que se condena, muitas vezes com veemência, a política colonial seguida. Com o poder efectivo fora da Europa ocidental depois de 1945, com a sua deslocação para as pontas, EUA e URSS, o Estado Novo encontra-se perante uma máquina trituradora. De um lado, soltam-se forças novas, nos últimos anos de cinquenta e inícios de sessenta; do outro, a URSS não esquece o carácter antipodal do regime de Lisboa e tudo faz para lhe tirar o tapete em tudo quanto respeita às colónias. Colocando-se na pretensa vanguarda dos movimentos de emancipação, antecipando-se à China, não perde a oportunidade de travar qualquer aspiração portuguesa. Tudo isto acontece num cenário emergente. É que “Em pouco tempo, a confiança entre os aliados desaparece (...) E a Europa não é o único terreno de confronto” . Eis que é chegada a hora de “os Estados Unidos entrarem em campo, liderando o mundo livre” , como enfatizava já o Presidente Truman em 1947, a 12 de Março. Enquanto assim se pensa, do outro lado do Atlântico, um entendimento algo diverso, relacionado com a manutenção do poder colonial com a velha ambição de ser o baluarte de defesa dos ancestrais valores da civilização ocidental, inunda a política de Salazar. Na sua mente, uma ideia base jamais era deixada ao abandono, pois “a grandeza de Portugal se fundava no seu Império, pensando a África como prolongamento natural da Europa, sem a qual o velho continente soçobraria ante os desígnios do comunismo internacional” . Aparece aqui uma outra motivação mobilizadora das energias do regime: a vontade de destruir o comunismo, personificado no figadal inimigo – a URSS. Juntam-se, nesta cruzada colonial, valores ascéticos e religiosos, jornadas de luta política mundial e razões civilizacionais. Vendo em cada esquina um potencial inimigo, dia a dia aprofunda-se o isolamento. Portugal é criticado pela defesa de um império condenado a torto e a direito. Com as sucessivas investidas a ocidente e a oriente, cada vez se coloca mais numa espécie de ostracismo quase completo, de que a ONU, como se irá dissecar, é um exemplo convincente. Com um único aliado, antigo de séculos, também em fuga, em muitas ocasiões, resta-lhe a Espanha, companheira de caminhada ditatorial, mas longe das disputas coloniais. Sempre que é este o tema que vem à baila, inicia-se o castigo maior: ficar a falar sozinho. Se os EUA vivem um movimento pendular, ora a favor da descolonização, ora complacentes com quem a impede, se a URSS é devotadamente uma aliada dos movimentos emancipalistas, se a China (por estar no terceiro mundo) tem o seu catecismo próprio e não foge de quem luta pela sua afirmação, se os três competem entre si, ao Estado Novo apenas lhe resta enfrentar, sozinho, este embate. Com o ano de 1945 a ver surgir a Casa dos Estudantes do Império – um alfobre de ideias e futuras práticas emancipalistas –, por esta altura nasce também o Movimento de Unidade Democrática (MUD), pelo que, internamente, o ambiente não é muito favorável, se, claro, falarmos em elites e movimentos intelectuais. Ventilados com o oxigénio libertador vindo da própria Guerra, que, por entre os destroços, faz despoletar ideias, projectos, objectivos e ideologias de ordem diferente, mais voltadas para a construção e cooperação e menos para a destruição, os agentes políticos começam de (re)erguer novas bandeiras. Com os africanos até aí colocados numa espécie de gueto e estratégias de exclusão, tudo quanto agora se fizer para os reabilitar é, genericamente, bem-vindo na opinião pública mundial. Por sua vez e por outro lado, por terem lutado lado a lado com os europeus, os homens de África desfizeram, de novo, nas suas cabeças, o mito da invencibilidade e da bondade dos seus então amigos de ocasião: soldados das mesmas causas, ganhadores e perdedores, todos, ao mesmo tempo e em circunstâncias iguais são parceiros da nova vida que se avizinha. Estava-se, mais tarde ou mais cedo, numa fase imparável, quando “Apesar de anteriores sinais de aviso, a onda de anticolonialismo que varreu a África, no início dos anos 60, apanhou o ocidente de surpresa. O grande espanto não foi que Portugal tenha sucumbido, mas que tenha conseguido adiar o inevitável durante tanto tempo. Por fim, Portugal foi surpreendido pela força do movimento anticolonial, que teve início nas colónias e acabou por levar à queda de uma ditadura e à libertação das colónias” . Mesclando estes pontos, com a entrada em cena da Guerra Fria, todas as paredes começam a desabar. Mas o maior desafio, esse, salta da própria África em geral e de Moçambique, em particular, a partir dos anos 60. Com antecedente de monta, o Movimento dos Não-Alinhados, com expressão mais viva a partir de 1955 (em Bandung), tem uma influência capital, pelo número de aderentes – uma outra forma de alinhamento – e pela convicção dos princípios que apregoam. A ONU marca o ritmo e o Terceiro Mundo faz-lhe chegar as motivações e as dicas, constituindo, no fim, uma força implacável, quer em forma de sugestão, quer como meio de viva persuasão. A luta do terceiro mundo Num contexto em que se acentuam agudas clivagens internacionais, com os EUA e a URSS em constante vigilância mútua, num estilo de política de parada e resposta, um outro espaço se organizava em torno das suas próprias debilidades: o terceiro mundo, uma expressão de A. Sauvy, dos anos cinquenta, que se tornou o seu estandarte. Entalados entre um norte mais pujante e um sul com algumas expectativas bem razoáveis, estes países mostraram-se precisamente pela afirmação das suas fraquezas, que pretendiam converter em pilares do seu desejado desenvolvimento. Apoiados no pacifismo de Nehru e nos seus princípios, conhecidos como de Pau Shila, apostavam em ideias novas, que passavam pela soberania dos estados, pela igualdade das nações, pela não-agressão e não-ingerência nos negócios internos de cada país e na coexistência pacífica. Se esta visão idílica pautou a Conferência de Bandung, em Abril de 1955, onde estiveram 23 estados asiáticos e uma leve representação africana com apenas seis elementos, logo em 1961, em Belgrado com a 1.ª Conferência dos Países Não-Alinhados, se adivinhavam já caminhos diversos e diferentes. Aliás, até a Índia da paz eterna se deixaria embalar pelos cantos das sereias americanas e soviéticas, em fases diferentes do seu quotidiano social, um sinal de que o não-alinhamento, como se verá, não será, afinal, o lema mais abraçado. Apesar de tudo, “A Conferência de Bandung em Abril de 1955, que reuniu na Indonésia os Estados recentemente independentes de Ásia e da África, deu o sinal de emancipação” . Só que, como alerta, tinha de contar, por outro lado, com um enorme fardo de mazelas comuns, que eram um travão a essa vocação de plena entrada em cena internacional. Fora dos dois círculos mais centrípetos, a correr isoladamente, ou no conjunto dos países com carências de toda a ordem e realidades estruturais muito preocupantes, a sua pista era, à partida, cravada de pregos. Pressionados pela oposição dos blocos liberais e comunistas, para um melhor entendimento e não como categorias definidas com precisão, era-lhes difícil encetar a sua própria marcha. Com o correr dos tempos, o grupo vai-se desmembrando contínua e progressivamente, porque “A luta contra a pobreza não foi só colectiva. Cada país do terceiro mundo experimentou desenvolver-se por si mesmo” , a ponto de ter originado os dragões asiáticos e uma boa série de novas economias emergentes. Quanto a África, no entanto, uma vez mais fica de fora desse movimento ascendente, continuando assim muito à margem, que já se viera a notar pela sua pequena participação (seis nações) no acto de Bandung. No que se refere a Moçambique, nem disso se pode falar, uma vez que, por essa altura, a sua voz, apagada e afirmada por interposto interlocutor, a metrópole, não chegava a lado nenhum. Sofre, por isso, de um duplo contratempo: ser africano e nada ter a ver com Bandung, com Belgrado e outras situações idênticas. Com uma designação, Terceiro Mundo, que não correspondia a um quadro homogéneo, mas antes a construções e objectivos bem diferenciados, cedo se percebeu que, mais cedo ou mais tarde, engendraria a sua própria desintegração e, na actualidade, “O chamado Terceiro Mundo está a passar por uma mudança radical. Enquanto alguns países se afundam cada vez mais na miséria, outros conseguem progredir. A situação não é surpreendente: o Terceiro Mundo sempre foi composto por países heterogéneos em termos estruturais, diferindo entre si sob o ponto de vista económico, político, cultural e étnico. O que lhes era comum era a inferioridade sob o ponto de vista tecnológico, científico, económico e militar em relação aos países altamente desenvolvidos em termos industriais” . Pintada com cores muito mais escuras, África aparece-nos sempre com um estigma ainda maior, esperando-se, contudo, que o exemplo de positividade activa da primeira fase do Terceiro Mundo possa, apesar de tudo, servir de estímulo e de força vivificadora que irregue o seu destino. A caminhada de Moçambique, com o recente exemplo da distinção internacional conferida a Joaquim Chissano, como governante exemplar, dentro das condições possíveis ali existentes, demonstra que é possível sacudir essas maleitas, umas reais, outras artificialmente definidas. Recuando bastante no tempo, é hora de se dizer que os governantes portugueses não viam com bons olhos nem Bandung, nem Belgrado, por todas as razões intrínsecas e por uma mais: a supremacia da Índia, nesse movimento, a atenção dada a Nehru pelo Papa Pio XII, o desagrado de Salazar com este gesto são factores que mais acicatam os ânimos nacionais e ocidentais. Quanto ao aparecimento dos Não-Alinhados, a posição de Salazar era clara: Modificou-se a estrutura dos continentes: a Europa cindiu-se, diminuiu-se, enfraqueceu-se; as Américas enriqueceram-se, fortaleceram-se, aumentaram de coesão; a Ásia insurgiu-se contra o primado civilizador do Ocidente e procura consolidar a independência alcançada, sob a direcção de alguns dos seus povos: o Japão? A China? A Índia? A própria Rússia? A África agita-se desde o Suez ao Atlas, desde o Mediterrâneo ao Cabo da Boa Esperança – ao norte, para liquidar, sem saber como, as situações herdadas do passado; por toda ela, sob os ventos revoltos que sopram com a ousada pretensão de acordá-la de um sono secular. Destas subversões, na maior parte catastróficas, resultou ruírem tronos, desaparecerem impérios, afundarem-se nacionalidades, surgirem novos Estados, alterarem-se as posições de força e sentir-se a necessidade de buscar novo equilíbrio em combinações diferentes . Com medo de perder o controle, com o receio de que este fermento alastrasse ao então “mundo português”, talvez essa fosse uma premonição, dado que, cerca de vinte anos depois, o quadro seria absolutamente alterado, sem que Salazar, entretanto, tenha assistido aos futuros desfechos, com que Marcelo Caetano também não soube, ou não pôde, lidar. Como a história nunca é linear, nem pré-determinada, o Terceiro Mundo e o Movimento dos Não-Alinhados acabariam por se repercutir no destino das ex-colónias portuguesas, que contam ainda com uma variedade e multiplicidade de factores, de que a ONU é o maior dos exemplos. Na sua escalada pela afirmação internacional, o Terceiro Mundo apressa a sua própria queda, porque “Após a Conferência de Belgrado (1961), o movimento dos países não-alinhados adornou-se pouco a pouco, mas perdeu a sua inspiração inicial. Ele nem conseguiu posicionar-se fora dos blocos, nem criar uma força autónoma de paz” . Com esta postura, eram quase inevitáveis as fissuras internas e até uma ruptura dos ideias de 1955. ONU enfrenta colonialismo Com o pano de fundo das alterações decorrentes da nova geopolítica internacional, após a 2ª Grande Guerra, a ONU, que é uma de suas principais filhas, tornou-se o principal motor da nova visão anticolonial. Enredada, pouco tempo depois, nas malhas da guerra fria, também este factor veio pesar, de forma acentuada, nas relações internacionais. Sendo a ONU o reflexo de todas essas implicações e o palco das posições vigentes, concretizadas, sobretudo, pelos principais protagonistas e seus apoiantes, ali desembocavam as linhas de força que, entretanto, se iam tecendo. Como Portugal não tinha entrado, directamente, no conflito mundial, como a URSS batia o pé, dia a dia, a qualquer tentativa de adesão, posição só quebrada, por negociações multilaterais, em 1955, quando, finalmente, entra em cena, não lhe era permitido saber de tudo quanto ali se passava e, mesmo do que se viria a tratar. Apoiando-se neste cenário de isolamento assumido e imposto, a ONU era para Salazar uma excrescência, um tumor maligno na vida mundial, apesar de nunca ter desistido de ser um de seus membros, mesmo que essa instituição não represente “de modo algum acto de fé na consistência da organização e na sua eficiência prática, nem esperança de interesse directo ou indirecto na admissão ... [porque] ... no meu modesto modo de ver, as nações (?) iniciadoras do Pacto cometeram um erro, talvez inevitável, mas previsível depois da experiência da Sociedade das Nações, de considerar as Nações Unidas o fulcro de toda a vida de relação mundial e órgão supremo da política internacional, sem poderem assegurar-lhe a necessária universalidade e meios práticos de acção” . Desconfiando, até à medula, do seu parlamentarismo, da palavra dada a cada país que ali tinha assento, do facto de nela se incluírem amigos e inimigos (?), como a URSS, que era vista como um agente destruidor da civilização ocidental, provavelmente não estaria na sua mente que as colónias podiam ali dar tantas dores de cabeça. Só que o Art.º 73.º da Carta das Nações Unidas trazia implícita essa questão e veio a servir de mote, no essencial, para todas as discussões que em torno dele se geraram. Por isso mesmo, de acordo com José Palmeira, de 1960 a 1973, foram aprovadas 173 resoluções contra a política ultramarina portuguesa, numa média anual de cerca de 12 condenações. Debaixo de um fogo tão cerrado, tudo teria sido mais fácil se os Estados Unidos da América tivessem seguido sempre a via do apoio directo a Portugal, ou se, no mínimo, se calassem, agindo por omissão. Mas essa miragem veio a desfazer-se, claramente, nos anos sessenta, de uma maneira decisiva e cortante, como vimos, com Kennedy que, logo em 1957, soltara o Grito de Ipiranga, a propósito das hesitações americanas em relação à Argélia. Alterada a política do lado de lá do Atlântico, a ONU, que já em 1956 questionara Salazar, novamente com base no Art.º 73.º, sobre a administração dos territórios não-autónomos, ganhava novo fôlego, tanto mais que a qualidade de membros das nações recentemente descolonizadas a isso conduzia. Com uma linha directa a unir a descolonização e as deliberações da própria ONU, sente-se que “As interacções entre o movimento de descolonização e as Nações Unidas são evidentes. A atitude da ONU, que promove sucessivos debates sobre a descolonização, tem obviamente muito peso na independência das colónias” , sendo mesmo o seu altifalante e o seu amplificador. Se para ali confluem inúmeras queixas, solicitações e interpelações, umas são, no entanto, mais importantes que outras, pelo que a União Indiana é sempre motivo de preocupações, desde 1947. Por isso, foi com apreensão que o Estado Novo ouviu a intervenção do seu Chefe de Delegação, Pandit Vijaha Kashi, quando, a certa altura, acabou por colocar o dedo na ferida: “Entre os países que pretendem a sua admissão nas Nações Unidas, existe um país e apenas um que, definitivamente, não está qualificado para ser membro das Nações Unidas: PORTUGAL. O facto desse país ter um grande passado não deve cegar-nos da (?) sua actual conduta. O governo português é, sob todos os aspectos, um governo totalitário. Tem m nítido travo fascista e a sua contribuição com o regime de Franco não contribue para melhorar o seu crédito. Além disso, a sua política colonial é nitidamente reaccionária...” Autêntico libelo acusatório, pega em aspectos mais caros à política portuguesa: toca no mítico passado, desvalorizando-o, ataca ferozmente o eixo ibérico, destrói o sistema governamental e, acima de tudo, estilhaça a conduta colonial. Assim, não é de estranhar-se que a Índia tenha proposto, em 1950, a integração de Goa, Damão e Diu no seu seio, em sede da Assembleia Geral da ONU, coroando a sua hostilidade a Portugal e servindo de bengala às aspirações anticoloniais. Apesar de um tom comum, nem sempre aquela Organização Internacional teve o mesmo comportamento, pelo menos em intensidade. A estas variações, podem associar-se as alterações havidas nos EUA, sendo que de 1957 a 1962, com o ano de 1961 a ser um marco enorme, se vive uma fase de clara condenação mundial ao colonialismo. Então, logo em de Dezembro de 1960, vem a surgir a “Declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais”, numa altura em que eram abespinhadas e muito problemáticas as relações políticas e mesmo pessoais entre Portugal e os Estados Unidos da América, quando da URSS nem é bom falar-se. Frontal quanto a esta matéria, nos primeiros tempos da sua acção presidencial ou em campanha, John Kennedy, definira com acutilante precisão o seu lugar na política anticolonial: “Defendo uma África onde os países sejam livres de escolherem o seu próprio rumo nacional [sublinhado nosso], sem imposições ou coacção do exterior” . Estava dado o recado essencial, a nível externo e agora a nação portuguesa poderia já ouvir todas essas intervenções no local certo, a Assembleia Geral da ONU, que o Conselho de Segurança sempre lhe escapara, apesar das tentativas. Dentro de portas, com o turbilhão Humberto Delgado e todos os estilhaços provenientes da sua campanha, com a clivagem entre a Igreja e o Estado, que o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, viera a detonar em 1958, começavam a fervilhar algumas contestações a sério, que Botelho Moniz acabaria por concluir, dando-lhe um enorme abanão. Pelo meio, intrometia-se a tímida oposição, designadamente, o PCP que, em 1957, advoga o derrube da ditadura como meio, entre outros confessados e secretos objectivos, de levar à independência os povos coloniais, que o movimento CDE acentua a partir de 1969. Tendo o Conselho Mundial das Igrejas, o Conselho Mundial da Paz e a OUA do outro lado da barricada, também Fidel Castro e Che Guevara se associam ao coro das críticas e das condenações. Criada por esta última entidade, a Brigada Internacional, a actuar desde meados dos anos sessenta, ramifica-se para Angola e Moçambique, postando-se como uma lança dos interesses cubanos e soviéticos, a disputarem um espaço em que intervém, ainda, de uma forma crescente, a China. A par destas intervenções, Castro e Guevara usam também a ONU como pilar das suas posições, aquando das deslocações que ali fazem. Com chuva de um lado e vento de outro, o tempo no céu português não era, por esses motivos, bom demais, mesmo que nunca descambasse para a borrasca. Com essas nuvens negras, chegava o nascer do sol às colónias e a Moçambique, em particular. Enquanto isto se passa, África afina agulhas, com os Grupos de Brazaville / Monróvia e Casablanca a dirimirem argumentos e a tentarem solidificar as respectivas posições no terreno. Argel torna-se, neste campo, uma fonte de permanente acção anticolonial, aí decorrendo, por exemplo, a Conferência Afro-Asiática, em 1965, que se junta à Conferência Tricontinental – Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento que, acrescente-se, não logrou atingir grandes efeitos práticos. Mas um outro dado ressalta de tudo isto: o crescente abandono do tema África da agenda internacional norte americana, que após a morte, por atentado, de Kennedy, em 1963, refreia os seus ânimos anticoloniais, até se desvanecerem, quase por completo, aquando da subida de Nixon ao poder, alguns anos mais tarde. Num mundo bipolar, com as infiltrações do Terceiro Mundo, a acção da CIA e do KGB adquirem, também na questão da política ultramarina e colonial, uma importância acrescida. Jogando em todos os tabuleiros, África não lhes passa ao lado. Como país investidor dominante, designadamente entre 1957 e 1973, os EUA conseguiam abarcar uma série de apoios, mas os idealismos da URSS e da China tinham também os seus seguidores, porque a avidez de ajudas impunha-se por todo o continente africano, despojado praticamente de tudo, sendo o colonialismo o grande culpado dessa situação, mas sem deter a exclusividade desse fenómeno. Decisões internacionais e respostas portuguesas Para sair de todas estas contendas e com tantas áreas de confrontos directos e indirectos, o governo português, por intermédio principalmente de António Oliveira Salazar, muniu-se de duas armas essenciais: o isolamento, por opção e a astúcia política, por necessidade. Dada a longevidade conseguida do império colonial, pode bem dizer-se que “manipulou com brilhantismo as forças em jogo” , sendo esta constatação da óbvia responsabilidade do autor em questão. Com este panorama, assiste-se à fuga dos novos aliados, desfaz-se em pedaços a proverbial e antiquíssima aliança inglesa, sobretudo depois da independência da Índia, pelo que, sozinho, era difícil enfrentar este combate, piorando tudo na altura em que a luta armada se desencadeou em Angola (1961). Nesse ano negro de 1961, o mundo desaba sobre Lisboa: o barco Santa Maria é desviado; a ONU arregaça as suas mangas contra Portugal; Botelho Moniz lança-se num golpe de Estado; Goa é ocupada pela União Indiana; o forte de São João Baptista de Ajudá sofreu igual destino. Ainda “em 1961, o início da Guerra do Ultramar veio alterar profundamente a situação. As despesas militares aumentam de modo muito acentuado; o que se agrava de ano para ano” . Se no plano económico muito há a dizer, é contudo, a política que, aqui, mais nos interessa. Curiosamente, pela leitura das comunicações apresentadas, o citado Congresso, quanto às questões coloniais, pecou por uma confrangedora escassez, tomando como linha de raciocínio o facto de se tratar de uma poderosa manifestação da oposição, que se alheia assim de um tema candente. Uma excepção ali se destacou: a participação de Blasco Hugo Fernandes / Manuel Augusto Araújo / Sérgio Ribeiro, que trouxe a lume tudo isto, pois “... Enquanto na Europa a evolução sócio-económica se processava apoiada na exploração de outros espaços económicos, em África o desenvolvimento era condicionado e entravado em benefício da Europa, quer dizer em conformidade com os interesses europeus que os controlavam depois de terem destruído as relações sócio-económicas de África e, ao ficarem detentores dos meios de produção, serviram-se do continente africano como factor do seu desenvolvimento” . Sem ser lido em Congresso, o trabalho de F. Ramos da Costa, com referências aos movimentos de descolonização e às nações jovens, merece também, a este respeito, uma atenção especial. Voltando à acção do Presidente do Conselho, nota-se que as antecipações tomam aqui o seu lugar, com particular ênfase para o Decreto-Lei n.º 38300, de 15 de Junho de 1951, que consagra a passagem das colónias a províncias, mudança que estará na base da maior parte das defesas efectuadas, como aconteceu na década de cinquenta, quando se diz ao Secretário-Geral da ONU que os territórios objecto de dúvidas são já independentes, por pertencerem a um Portugal uno e soberano. Por outro lado, ao achar que esses espaços se não discutem nem se “vendem”, mostra-se inflexibilidade nos momentos em que os EUA propõem negociações para a sua autodeterminação, quer nos planos apresentados, quer na própria ONU. A mesma e fatal intransigência demonstra Marcelo Caetano, em 1968, ao recusar propostas de igual conteúdo. Diferem, num ponto principal, estas posições: no primeiro caso é a convicção a funcionar, enquanto, no outro, tal se decide por manifesta falta de poder e espaço de manobra. Ficam, assim, sem efeito todos os tipos de diligências, mesmo aquelas que são levadas a cabo pela Task Force on the Portuguese Territories, quando propõe a retirada dos Açores e a eventual expulsão da própria OTAN. Igual reflexo tiveram as sugestões vindas dos líderes nacionalistas das diversas colónias, antes da eclosão da conhecida Guerra do Ultramar, o que, se tivesse seguido outro rumo, poderia – sendo quase certo – ter gerado outros cenários, tudo isto no campo das hipóteses, como facilmente se deduz. Mas “A decisão de Salazar de optar pela guerra é um exemplo clássico de fuga para a frente. Em 1960, o regime estava esgotado internamente e isolado externamente” . Deitando mão aos recursos militares e sucessivas alterações, à polícia política, aos investimentos, à aceleração das políticas administrativas, educativas e assistenciais, o Estado Novo não desperdiçou qualquer oportunidade, com vista a evitar o colapso do império que se adivinhava desde então. Ao prever que esse desfecho poderia, um dia, ser uma realidade, surgem os apoios nas alas mais duras do regime, enquanto, pelo contrário, se notavam variadíssimas brechas a abrirem-se nos sectores mais leves desse edifício estatal. Entretanto, o respectivo Arquivo quer mostrar que também o povo (e foi isso que se quis colocar em bicos de pés) estava do lado de Salazar: nesta conformidade, por carta, Francisco da Costa Madeira mostra-lhe todo o apoio, oferecendo-se mesmo como voluntário para o serviço militar em África, anos 60, enquanto António José de Morais, do Brasil, enviava, com particular zelo, recortes de imprensa sobre a guerra do Ultramar, por essa mesma altura. Com o intuito de branquear a imagem, todos os meios são válidos, tal como se verificou, em 1962, com a firma Salvage @ Lee, um consórcio de empresas portuguesas para dar ênfase a Angola e àquilo que se considerava ser a sua dimensão. Era, então, a lei da demonstração a querer impor-se à realidade, para mostrar aos americanos que a razão assistia à política do governo português. Com a imprensa a dar o seu contributo, até pelo controle efectuado pelo mecanismo da Censura, também a chamada a terreiro de Adriano Moreira, nos anos iniciais de sessenta, se insere na renovação de todo este quadro. Veio de longe um outro auxílio imprevisto, a Guerra do Vietname, que, por entre uma hecatombe, serviu de tubo de escape aos ataques sofridos pelo Governo de Salazar, que a América passou a ter outro centro de interesse, essa região asiática onde consumiu grande parte das suas energias. Consciencialização e contestação em Moçambique Na história moçambicana, são recorrentes as formas de contestação, porque, ao longo de milénios e, sobretudo, de séculos, os povos autóctones tiveram de contactar com uma variedade de incursões, vindas ora do oriente, ora do ocidente e, por extrapolação, quase, com origem em todas as direcções. Estas permanentes faces e contra-faces, que oscilam entre a aceitação pacífica e o ter de ser, entre o olhar de lado e as crescentes resistências, fizeram com que estas gentes sedimentassem formas larvares ou explícitas de manifestações de descontentamento e até de recusas puras e duras. Ainda que, de início, se não possa falar de uma qualquer consciência nacional, entendida no contexto actual, nem por isso se podem desprezar esses mecanismos de oposição a forças estranhas que, frequentemente, minavam o seu quotidiano e abalavam as suas estruturas, tentando mesmo fazer desmoronar convicções e tradições fortemente arreigadas. Escusado será afirmar-se que era esta situação que mais fazia despertar os ímpetos centrifugadores, na medida em que ninguém aceita como boa a ideia de perder a sua identidade. Com choques profundos, a nível cultural, horas houve em que os sentimentos de revolta foram mais agudos que noutras ocasiões, um tanto ao sabor também das próprias possibilidades internas. Sendo o homem criado para ser um ente gregário e um cidadão em sociedade, a sua consciente “negritude era a urgência unânime da África negra colonizada” . Sem ter como horizonte, então, a construção de uma qualquer nação, o apego às suas condições intrínsecas servia como detonador de várias formas e mecanismos de expulsão de quem, a seu ver, não aparecia por bem, sendo portador de intenções e acções que não podiam ser aceites, nem de mão beijada, nem por outros motivos. Do outro lado, aparecia, como regra máxima e como imperativo da sobrevivência ocidental – e é esta cultura que mais nos interessa para os temas em debate – a necessidade de civilizar, uma fórmula amplamente recorrente em tudo quanto se prendesse com a colonização, ora incipiente, ora assumida como fenómeno totalizante e absorvente, em termos de legislação, de aplicação prática, a plasmar-se, amiúde, na imprensa da época, desde que esta se generalizou. Gerava-se, então, a altercação e o jogo do gato e do rato, partindo-se do princípio de que se trata, efectivamente, de uma relação dialéctica em que se posicionam, nos diferentes pratos da balança, subjugadores e subjugados, muitas vezes em guerra declarada, sem que esta expressão corresponda, como é visível, ao seu sentido convencional. Longe dos povos indolentes, facilitadores de todas as mordeduras no seu corpo social, pacíficos até à medula, sem quererem mexer uma palha para lutar pelos seus direitos, aparecem-nos comunidades em que a rejeição e mesmo a violência são uma constante. Lançavam-se assim, no campo africano, os meios de discordância relativamente às intenções e propósitos dos europeus que demandavam África. É que, no dizer do Rei Leopoldo, da Bélgica, em finais dos anos oitenta do século XIX, este continente tem de ser arrancado das trevas em que se encontra, pois “O assunto que nos traz hoje aqui é um daqueles que merecem um lugar de destaque (...) Abrir à civilização a única parte do nosso globo em que ela ainda não penetrou, dissipar a escuridão em que as populações inteiras estão mergulhadas” . Por tabela, eram estas as atitudes que faziam desfilar o cortejo das desilusões e consequentes afirmações das vontades de quem vê desaparecer aquilo que lhe é mais querido: as suas próprias vivências, que outras vinham para as queimar, ou com labaredas de enorme intensidade, ou em lume brando. Como quer que seja, o fim era sempre o mesmo e isso é que não estava nos horizontes de quem se sentia em casa, no seu reduto natural. Com tantas agressões e dominações, um caminho se lhes abria: o da resistência, ainda que, por vezes, sem sucesso visível, mas a fazer germinar propósitos que, um dia, poderiam ver a luz do dia. Assim, por entre vitórias e derrotas, por entre clivagens acentuadas ou meios-termos, “A ténue linha branca da autoridade colonial em África foi posta à prova em vários pontos, mas nunca (?) foi quebrada. A metralhadora (...) foi uma arma formidável nas mãos do poder colonial, mas as investidas da seca, da doença e da peste bovina (...) na década de 1890 não tiveram menor influência” . Deduz-se, então, desta citação que aos africanos afluíam inimigos de toda a ordem, um flagelo que, infelizmente, não deixa de os assolar desde esse passado, mais ou menos recente, até aos dias de hoje. Para lhes fazer frente, decisão, astúcia e engenho foram as armas encontradas, à medida das contingências dos momentos e das circunstâncias vividas. Acima de tudo, “Parece universalmente aceite a ideia de que nenhuma colonização foi boa. Apenas houve umas piores do que outras.” . E acrescentamos nós: também, nesta classificação, se pode considerar que nem todos os momentos e actos foram iguais, pelo que as reacções, ao longo do fio da história, não podem deixar de ser diversas, tendo presente, em Moçambique, que colono e colonizado, sem atingirem picos de diferenciação tão agudos quanto noutras paragens (ver a antiga África do Sul), ocupavam lados opostos, mas não se pode ser maniqueísta em extremo, porque nem sempre as posições antipodais estiveram em campo. Como pano de fundo, “No curso do (...) processo histórico das guerras de conquista, o povo moçambicano sempre (?) se bateu heroicamente (...) contra o opressor colonialista. Desde a resistência do Monomotapa à insurreição do Barué, a história moçambicana orgulha-se dos gloriosos feitos das massas na luta pela defesa da liberdade e da independência. A derrota da [então] histórica resistência do povo deve-se exclusivamente à traição das classes feudais no poder, à sua cobiça e ambição, que permitiram que o inimigo dividisse o povo e o conquistasse” . Com esta referência a recuar no tempo, um dado é de assinalar-se: na própria simbologia da Frelimo, que viria a ser a protagonista essencial da caminhada para a independência, as velhas resistências surgem como suporte e fermento das lutas posteriores, por nelas se verem a consciencialização de uma pretensa identidade nacional e o desejo de libertação das forças dominadoras, de antanho e dos tempos presentes. Sementes do nacionalismo O passado e o presente unem-se por um elo de rebeldias e levantamentos que, em conjunto, configuram e consubstanciam a emergência daquilo que se conhece por nacionalismo, um conceito que se interliga com a ideologia, com a legitimação e mobilização política, dele fazendo um meio de conquista do poder, que se veio a concretizar em luta contra o colonialismo. Suportando-se numa visível herança africana, que só recentemente adquiriu foros de cidadania, saltando para a ribalta, em Moçambique, tal como noutros locais, fez-se em oposição ao legado colonial e seus efeitos. Pode até afirmar-se que foram as práticas levadas a cabo pelos europeus que levaram ao despertar das consciências nacionalistas, mais do que nacionais, propriamente dito. Insere-se na vastidão das resistências todo este movimento ascensional, que se ergue, em degraus, desde as simples contestações até à vocação nacional, aquela que desemboca na construção de um estado e de uma nação, que em África, regra geral, aquele precede o sentimento de pertença a uma comunidade. Numa terra de grandes diversidades, a chegada a este patamar não apareceu de sopetão, nem surgiu por acaso. Múltiplos são os factores, grandes são os passos dados, que emanam de um dilatado período colonial, o maior de todos eles, também o mais tardio e o menos célere em saber ler as novas lições, no universo das velhas nações dominadoras. Como enunciou Yves Lacoste, “O direito dos povos a disporem de si próprios é hoje teoricamente reconhecido pela comunidade internacional e este direito de cada nação de ser independente, quer dizer, de se constituir em estado soberano, é considerado uma das condições fundamentais da democracia” . Se bem que se saiba que a noção de democracia não é facilmente generalizável, no mesmo significado e alcance, nem se aplica directamente de uma forma mágica, ela não deixa de ser um elemento estruturante da nova política mundial. Moçambique, por essa e outras razões, não fica de fora da sua abrangência, sendo que os últimos anos nos oferecem um bom exemplo desta contestação, pelo menos em tentativa. Com a necessidade e o desejo de conseguir uma comunidade (mais do que uma sociedade) de seres livres e iguais, nas suas diferenças intrínsecas, “Parece que diversas partes da África negra, que permaneceu extremamente fragmentada em termos étnicos, devido em particular às sequelas do tráfico de escravos praticadas até finais do século XIX, começam a conhecer, com grande atraso, este processo de formação e de expansão das nações, o que coloca o problema das fronteiras demasiado vastas ou demasiado pequenas, herdadas da época colonial” . Com o direito como esteio essencial, com um território comum, vindo da Conferência de Berlim e dos tratados e acordos relacionados com a temática fronteiriça e não questionada pela própria OUA, antes incentivada, não eram estes requisitos suficientes para se atingir uma alma nacionalista, porque esta tem de partir de outros pressupostos. Entre os vários que se podem citar, o sentimento de pertença comunitária, a língua, a cultura, a noção de ser construtor de um mesmo projecto consideram-se fundamentais. Assim e com efeito, após a morte de Estaline, em 1953, com a possibilidade de diálogo entre o Leste e o Ocidente e de uma coexistência pacífica, “os povos afro-asiáticos vão ganhando consciência da sua situação de colonizados e procuram organizar-se num movimento anticolonialista de carácter universal” . Sem ser um ponto de chegada, nem o da partida oficial rumo à nação, aspectos que dificilmente se podem definir, estas circunstâncias e outras, que atrás descrevemos, não deixaram de ter a sua influência. Aí estava, afinal, um dos cliques essenciais, quando “Os discursos e as energias de construção da nação são bem familiares (...) e o Estado-nação continua a ser um mecanismo viável, ainda que de alto risco, para a interacção entre as especificidades regionais e as pressões globais” . Com a identidade nacional como miragem e, mesmo, como objectivo almejado, este grande mar vive do contributo de todos os rios e cursos de água, de modo a que nesse novo espaço de comunidade assumida possa suportar o peso de novas responsabilidades, num mundo que, cada vez mais, se encaminha para a globalização. Desta forma, consciência nacionalista, ideologia e acção têm uma enorme tarefa a realizar. Ainda que, nos primórdios dessas tomadas de posição e nos tempos subsequentes, tal se não sentisse, em toda a sua amplitude, ”a construção da nação é uma dimensão decisiva da modernidade e esta continua a ser muitas vezes a configuração colectiva mais capaz de negociar, resistir e encontrar objectivos comuns com as forças da globalização multinacional” . Em Moçambique, sendo notória a força das tradições locais, também a modernidade se começa a impor, como fruto de todos os seus antecedentes, que acarretaram o “fim dum império que se não teve [para a] emergência dos estados que se não ajudaram a construir” . Entre o império desaparecido, aqui tido como inexistente, em comparação com outras realidades congéneres e o estado, aparece-nos como meta o atracamento numa nação, que deve à consciência nacionalista muito – ou quase tudo – do seu pretenso ser. Com o homem sujeito a constantes modificações, no espaço moçambicano se verificaram uma enorme quantidade e variedade de factos totais, para usarmos uma concepção sociológica, que os tempos e as suas gentes acabam por confirmar. Colocados no seu mundo, são protagonistas da “constituição real de um país [que] não se constitui de artigos fixados por escrito, mas de forças sociais vivas, a que os artigos impõem (ou devem impor) certos limites” . No limiar, “A revolução nacional termina com o movimento revolucionário que se considera nação (...) com um povo unificado e politicamente consciente, (a) que se dá governo e uma máquina estatal“ , não obstante aqui se ter assistido, praticamente ao inverso deste processo, com o estado, como vimos, a antecipar-se à nação. Se desde os séculos XVI em diante se encontram manifestações contestatárias, a consciencialização nacionalista é fenómeno bem mais tardio podendo ver-se no gesto de Makombe Hangá, rei do Barué, em 1895, parte da sua génese, já que “Bem vejo como vocês, os brancos, avançam cada vez mais pela África; em todos os lados do meu país (sublinhado nosso) as companhias estão em actividade. Também o meu país tem de assumir essas reformas e eu estou preparado para os receber. Também eu gosto de ter boas estradas e caminhos de ferro(...) mas nunca deixarei de ser o Makombe que os meus pais foram“ . Com um pendor étnico acentuado, o meu país é já um sinal de desafio e de futuro. Mas este é um processo longo, porque ”A formação de um estado-nação demora“ e, nessa medida, todos contributos são de considerar-se, até ”O nacionalismo étnico [que] formou a base e a linguagem de movimentos sociais e de aspirações políticas por todo o mundo“ pois “São estes passados vivos do povo, a assim designada massa da população que dá aos nacionalismos étnicos, desde sempre, a base cultural e social para a mobilização política da nação“ . Ligados por identidades novas de tipo nacional ou étnico, as populações moçambicanas, em contacto com o esclavagismo, primeiro, o trabalho e as culturas forçadas, numa fase posterior, cedo se aperceberam que à sua frente se debatiam o colonialismo e anti-colonialismo. À medida que se obtinham vitórias, reais ou aparentes, emergiam também novas lideranças, o que, por arrastamento, criava crescentes problemas às entidades portuguesas, numa espiral de alterações sociais. Entretanto, nem tudo eram rosas, porque, internamente, nem sempre a história corria a favor das teses nacionalistas, ou melhor, das lutas encetadas nesse sentido. Ao de cima vinham, com frequência, as contradições inerentes às dinâmicas surgidas, visto que “Esses processos de reestruturação não excluíam as tensões. Bem pelo contrário, as fontes são unânimes a sugerir que, nas diversas sociedades africanas, existiam contradições e antagonismos mais ou menos graves, das quais os colonos iriam naturalmente tirar partido” . Perante esta situação, a agulha oscilava, com alguma frequência, no barómetro da afirmação nacionalista, mas, ao fim e ao cabo, “as resistências à conquista colonial tornaram-se um dos momentos fundadores do nacionalismo africano e a referência a essas resistências um dos ingredientes mais habituais da moderna cultura em África” . É longa a lista de mecanismos de resistência, de esforço pela obtenção dos valores do nacionalismo africano, a começar pelos motins, recusas individuais, greves, minagem de sectores de produção ou económicos, emigrações, alianças, recuos, indiferenças, dissimulações, fugas, banditismo social e, no fim desta teia, luta armada. Como causas, despontam sinais de cansaço, de abandono da humilhação sofrida, de repulsa pela segregação e discriminação, sendo que as razões são mais frequentemente oriundas de aspectos negativos que de visões construtivas. Só que, no rol do deve e haver, de uma maneira ou de outra, muitas vezes se atingiam outros fins, incluindo a ajuda dada à causa da consciência nacionalista e da nacionalidade, em si. Mas “O despertar político dos africanos, e mais em especial das elites, foi sustentado por grandes ideias e ideologias, que contribuíram para alimentar e formar a consciência política africana” . Com esta nova postura, outros valores se levantam. Guiada pela mola destes ideais, a atitude que decorre das alterações verificadas traduz-se por uma consciencialização política mais avançada, pela emergência do sentimento nacional, pela entrada em cena de argumentações mais convincentes, oriundas, muitas vezes, dos pensamentos activistas que tinham bebido, dentro e fora do espaço africano, as razões da sua veia contestatária e de resistência a todo o gás. Para se alcançar este pódium, houve etapas que tiveram de ser vencidas, para se atingir a desejada comunidade nacional. É que “Embora existissem grupos étnicos, não havia nações, antes do estabelecimento das colónias, pelo que o estado era anterior à nação” , assim se sustentando o que, atrás, declaramos. Desta forma, “Os Estados têm de encontrar modos de forjar a unidade nacional no meio da diversidade” . No meio de tudo isto, vê-se ruir o luso tropicalismo, o assimilacionismo, doutrinas e práticas que foram bandeiras do colonialismo português, na medida em que, do lado de lá, estavam o trabalho forçado, teimoso na sua escalada predadora, o indigenato, os impostos, as divisões sociais e a fuga da terra e seus recursos para mãos estranhas às entidades locais. Irrompem, por entre as nuvens, os clarões das novas consciências que começam a sonhar com a moçambicanidade. “Opunham-se [então], com vigor crescente, aos padrões europeus, violentadores das suas identidades” . Numa situação de conflito evidente ou latente, as achas, quaisquer que fossem, convergiam sempre num ponto: oposição à situação vigente e busca de um estádio diferente, para melhor, como é facilmente suposto. Como patinhos feios de toda esta engrenagem o topo pode ser atribuído aos diversos estatutos dos indígenas, apesar das sucessivas recauchutagens, às culturas e trabalhos compulsivos, aos subterfúgios da identificação pessoal e até aos cheiros de racismo, que nem sempre desapareciam das esferas das relações sociais. Conjugados estes e outros factores, “Para melhorar o entendimento de um meio tão complexo como é a sociedade humana, é preciso que haja mentes que se afastem do caminho conhecido, que desafiem a disciplina ortodoxa” , tendo esta gente aparecido sob a forma de resistentes nacionalistas. A guerra colonial, a economia e a sociedade Levada ao extremo a consciência nacionalista, aponta-se agora num sentido mais refinado e mais vocacionado para um outro objectivo final: a intenção e a necessidade de vir a obter uma terra com outra soberania, de feição moçambicana, da raiz à crista da árvore. Com o passaporte adquirido em aguerridas lutas dos finais do século XIX e princípios de XX, com os sustentáculos vindos, por paradoxo, das medidas da administração portuguesa, “A existência e o desenvolvimento da luta armada, portadora de um projecto político nas colónias portuguesas é o teste de um renascimento nacional em Angola e em Moçambique, assim como na Guiné” . Num turbilhão de alterações, que são o resultado de um larguíssimo leque de suportes, a decisão de partir para a guerra colonial foi antecedida de uma vasta série de acções e apetrechamento social e ideológico. Sem recuarmos muito no tempo, aspecto que tentámos abordar nos capítulos anteriores, os anos correspondentes à segunda metade do século XX são fundamentais. Como a nova dinâmica social exige elites capazes de a coordenar e dirigir, estas aparecem internamente e, em muito maior quantidade e qualidade, com origem no exterior. Com as tímidas medidas educativas, o próprio Estado Novo acabou, um pouco, por virar o feitiço contra o feiticeiro. Um exemplo notável sai da Casa dos Estudantes do Império (1945), que constitui um autêntico alfobre de futuros líderes e um caldeirão de novas ideias. Três anos depois, é a vez do Centro de Estudos Africanos, fundado por Agostinho Neto, Mário de Andrade e Amílcar Cabral entrar em cena, sendo que, no caso moçambicano, é o próprio Eduardo Mondlane a avançar com o Núcleo de Estudantes Secundários Africanos de Moçambique (NESAM), convertido, no ano de 1951, na UNEMO (UNIÃO NACIONAL de ESTUDANTES MOÇAMBICANOS). Aliás, “Eduardo Mondlane retoma as origens da resistência moçambicana, no século XX, na tradição local, na criação da Ligação Africana, em Lisboa, em 1920, na formação em Moçambique do Grémio Africano, mais tarde, Associação Africana, no Centro Associativo dos Negros de Moçambique e na Associação dos Naturais de Moçambique. Mais tarde, a partir de 1949, nos intelectuais esclarecidos (sublinhado nosso) que formaram o NESAM (Núcleo de Estudantes Secundários Africanos de Moçambique). Na Metrópole, a Casa dos Estudantes do Império desempenhou também papel de relevo” . Deve-se, tendo em conta este testemunho e tantos outros, ao movimento associativo um poder de alavancagem extraordinário, quanto às vias a seguir no combate ao regime colonial. Muitas destas associações geraram-se em Lisboa, mas não é despiciendo falar-se das organizações locais, nem dos apoios colhidos no estrangeiro, desde os EUA à URSS e, no que diz respeito à Frelimo, muito particularmente à Tanzânia, que acolheu as tarefas da formação, da logística e mesmo de instituições educativas, a avaliar pelo que aconteceu com o Instituto de Moçambique. Desta forma, “A libertação do continente transformou a segunda metade do século XX num período triunfante para os povos africanos” , acrescentando que, a seu ver, a euforia deu lugar à desilusão, precisamente com a conquista das independências, assunto a que nos referiremos proximamente. Sem que possamos, então, embandeirar em arco, porque nem todos os fins vieram a ser marcados pela carga positiva que se ambicionava, o certo é, porém, que a etapa militar pareceu, nessa altura, a medida mais conveniente, face ao reduto em que o Estado Novo se posicionou. Com os moçambicanos atirados para um dilema, a luz começa a fazer-se pela sua persistência, a que acrescem as lições pescadas no exterior. Os Estados Unidos da América, pela dedicação dada a Mondlane, podem situar-se, numa primeira fase, a da preparação, na primeira linha da agenda internacional. Com o desejo de vir a construir um homem diferente, um cidadão africano de corpo inteiro, a ONU, como vimos, alcandorou-se a um lugar de destaque, ao eleger como prioritária a luta contra o colonialismo, mas eram os EUA a fornecer o maior arsenal, na era Kennedy, sobretudo, de argumentação contestatária, ao considerar “o nacionalismo africano, em especial nas colónias portuguesas, como uma realidade política inevitável” . Partindo da decisão de apoiar, por vários meios, nações emergentes e em curso, em 1961, é criado na Universidade Lincoln, na Pensilvânia, um programa com o objectivo de ajudar, educativamente, alunos saídos das colónias, designadamente de Moçambique, com a contrapartida de os arrancar à esfera soviética. Era assim, uma mão a lavar a outra, quando a Guerra Fria ditava as suas leis. A coroar estas e outras acções, como a atribuição de verbas, é de realçar-se a solidariedade existente entre os Kennedy e Mondlane, a ponto de se escrever o seguinte: “Uma vez no Gabinete de Kennedy (Robert), Mondlane, corpulento e volúvel, começou a criticar o papel cada vez maior da América no Vietname. Robert Kennedy interrompeu-o e disse que estava mais interessado nos problemas de Moçambique. O Presidente da Frelimo começou então a falar da situação em Moçambique e dos programas da Frelimo para a educação de refugiados moçambicanos. Mondlane fez referência à queda inevitável do domínio português e disse que seria trágico se a indeferença e a ignorância, juntamente com a vontade expressa de aplacar Portugal, evitassem que os EUA passassem para a linha da frente na luta pela liberdade” . Ao saltar das palavras para os actos, esboça-se uma assistência encoberta e disfarçada aos movimentos de libertação – para não ferir as relações diplomáticas com Portugal –, tendo Mondlane recebido da CIA 60.000 dólares, em trânsito pelo Instituto Afro-Americano, de Nova Iorque. Ao mesmo tempo, a Fundação Ford adianta 99.700 dólares, com destino ao mesmo Instituto, “para ajudar a formação de refugiados moçambicanos, no Instituto de Moçambique, em Dar-es-Salam” . Visto como a personalidade com estatuto político e pessoal para liderar a revolta, ei-lo em 1964 a encetar a fase da via armada, no norte de Moçambique, havendo quem diga que esse gesto pecou pelo excesso de voluntarismo e pelo carácter apressado com que se desencadeou. Constituiu, apesar dessas críticas, o arranque de uma longa e desgastante guerra colonial. Na visão anticolonialista dos EUA, a autodeterminação e a independência eram metas a alcançar. Meio ou fim, este tema veio, e isso é claro e certo, a impor-se na sua política, pelo menos durante uns poucos anos, nos inícios da década de sessenta. É que “Na África, depois do movimento independentista iniciado na Ásia, continuava o colapso dos impérios europeus. Neste contexto, para não perder o emergente Terceiro Mundo, os Estados Unidos mantinham o seu anticolonialismo” . Com o I Congresso da Frelimo, realizado em Dar-es-Salam, em 1962, a 23 de Setembro, aí se haviam definido as primeiras linhas de força da sua futura actuação, contando, nessa altura (porque essa posição se veio a alterar e, mesmo, a inverter), com as boas graças americanas. Nestes turbulentos anos de 1960, Mueda surgia como o primeiro símbolo da jornada anticolonial, mas antes, as posições do Bispo da Beira, que se vieram a manter ao longo dos tempos, sempre em crispação com a metrópole e seus governantes, tinham ajudado ao soar das novas campainhas. O mesmo sinal saltara das greves diversas, do acórdão de Lourenço Marques a passar uma esponja sobre o assassinato de trabalhadores negros (24 de Maio de 1957) e ainda de exemplos colhidos em Angola, assim como na Junta de Libertação Nacional, de feição anticolonialista e na Conferência das Organizações Nacionais das Colónias Portuguesas, em 1961, em Casablanca, entre tantas outras situações. Perante o agudizar do panorama, Portugal, que recusara sempre o método negocial, apressa-se a agir. Para expressar a sua determinação, para além de ter reforçado os contingentes militares, em 29 de Abril de 1961, pelo Decreto Lei n.º 43632, concede autorização aos governadores das Províncias Ultramarinas para importarem, directamente, armas e munições. Era a resposta na moeda que começava, também na colónia do Índico, a entrar em circulação. Paralelamente a esta diplomacia das armas, um dado curioso veio a tornar-se constante nas relações Portugal / Moçambique: referimo-nos aos esforços de contravapor levados a cabo por Jorge Jardim, ora em sintonia com as políticas de Lisboa, ora em corredores paralelos, já que era seu objectivo – mais ou menos descarado – vir a tornar-se uma espécie de Ian Smith à moçambicana. Na contabilização dos alinhamentos regionais, o governo português contava, com a independência unilateral da Rodésia, um outro aliado de peso, a juntar à África do Sul, enquanto a Frelimo tinha na Tanzânia o seu escudo preferencial. Porque este xadrez foi usado com bastante frequência, ao longo da guerra colonial fazem-se sentir os seus efeitos e os desvios, estes por ricochete, como aconteceu com o bloqueio ao Porto da Beira, determinado pela Inglaterra, precisamente pelos acontecimentos da citada Rodésia. Mas tudo isto eram pedras desse enorme tabuleiro, que, já o dissemos, em 16 de Julho de 1960, vira despoletar os conflitos, de uma forma violenta e determinante, a figurar como o grande antecedente de 1964. Neste contexto, “A tensa atmosfera política existente no planalto de Mueda explodiu. Representantes de uma organização intitulada União Maconde do Tanganica e Moçambique que, vindos das suas residências temporárias em Tanganica, haviam regressado a Mueda alguns dias antes, com o intuito de abordar o administrador do distrito e de lhe entregar uma lista de reivindicações, foram chamados ao edifício da administração da cidade” , quando se notam os primeiros tiros. Daí em diante, ficou este episódio conhecido como Massacre de Mueda, um símbolo que a Frelimo incorpou no seu ideário político e ideológico. A servir de lastro a este movimento, um fenómeno, mais ou menos étnico, viria a transformar a história daquela colónia, ao fazer nascer a MANU – União Nacional Africana dos Macondes, cuja sigla denota o peso do anglicismo ali também vigente. Algum tempo depois, em 1962, a conversa era outra, com um interveniente de maior envergadura: a Frelimo. A partir daí, tudo passaria a ser diferente, porque “Com a independência da Tanganica (depois designada por Tanzânia) em 1961, Salazar já tinha antecipado o seu impacto em Moçambique. Eduardo Mondlane, o líder da recém-formada Frelimo, tinha-se licenciado nos EUA, onde ensinava ciências sociais na Universidade de Siracusa, quando avançou para a direcção do movimento, inicialmente dividido” . Estava-se, nessa época, numa espécie de dois em um: um país como rectaguarda (Tanzânia), um líder com desejos de futuro (Mondlane). Com estes ventos agrestes a soprarem do Índico, também no interior da casa metropolitana se notam vozes dissonantes, que contestam a política seguida nas colónias, tema que integraram nas suas malas oposicionistas, a ponto de o PCP, já em 1957, no seu 5.º Congresso ter declarado “o seu apoio à independência das colónias, autonomamente das modificações que se possam operar na situação política em Portugal” . Da parte de outros sectores saem também apoios à causa da luta anticolonial, como o Manifesto dos 101 (1965), o Documento enviado ao Vaticano nesse mesmo ano, a acção do Padre José da Felicidade Alves, em Belém, 1968, as vigílias da Igreja de S. Domingos (1969) e da Capela do Rato, contrariando assim as posições oficiais da própria Igreja Católica. Nestes protestos, são ainda de incluir, entre outros, as intervenções do Padre Mário de Oliveira, da Lixa, estendendo-se, noutras áreas, à imprensa, à literatura, às artes e às manifestações contra o embarque de soldados para as colónias. Mas, antes, fora determinante a acção levada a cabo, tal como foi dito, pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes. Em vaticínios, J. A. Gabriel y Galán, em 1969, declarava que “No fundo, qualquer português tem consciência de que, com o andar dos tempos, a actual forma de colonialismo é insustentável” . Mas era no seio da linha fronteiriça, que dividia e unia Moçambique e a Tanzânia, que se escreviam páginas com sabor a história local, no momento em que a UDENAMO (1960), a MANU e a UNAMI baixam os braços próprios e passam a constituir uma força mais duradoura e mais abrangente, fundindo-se, em Junho de 1962, na FRELIMO. Por sua vez, no aludido ano de 1957, Cunha Leal lançara um alerta e uma premonição, ao criticar “frontalmente a política colonial do governo, considerando que a indissolubilidade da metrópole com as diferentes colónias, nada mais é que a manifestação de uma aspiração muito respeitável, mas que, em prazo mais ou menos dilatado, há-de esbarrar contra realidades adversas e inelutáveis” . Não obstante o carácter ambivalente destas afirmações, não deixaram de ser mais uma espetadela no quadro dominante então vigente, sendo que o furacão Humberto Delgado (pouco claro, aliás, em relação às colónias) foi a maior bola de neve que se pôs a rolar, na direcção dos acontecimentos novos, que, um dia e outro, aquém e além, vieram a despoletar-se. Com a leitura feita por esta altura e constante da obra em apreço, o ano de 1958 é também o fermento da revolta africana, que detesta a palmatória, o trabalho forçado, a fome, o esbulho de terras, a falta de livre circulação, os impostos, dando grandes ouvidos às Missões Protestantes, que lêem esses descontentamento e lhe fornecem o antídoto aí esperado. Em contraponto, no entanto, Humberto Delgado nem ata, nem desata, pelo que a sua Proclamação, no Parágrafo 5.º, deixa um travo amargo nas aspirações anticoloniais. Vejamos: “Actualizar praticamente a integridade tradicional ultramarina, cujos fundamentos são: a unidade espiritual, política e económica da Comunidade de População Portuguesa, de aquém e além-mar e a igualdade de direitos de todos os seus constituintes” . Com as mãos na massa da missão civilizadora, mas feita à custa de uma catadupa de injustiças, algumas delas já elencadas, aponta-se ainda a discriminação escolar, a distinção civilizados e não-civilizados, indígenas e não-indígenas, a estratificação social e um pouco de arrogância. Cada passo dado em frente, parecendo um avanço, aparecia, nas dinâmicas locais, como um recuo sem retorno. Desta maneira, as alterações legislativas, as mudanças ministeriais, as abolições dos conceitos e práticas mais negativas não produziam os efeitos programados. Com a fogueira a arder, mais se assemelhavam a álcool incandescente que a água amortecedora. Definitivamente, com o ano de 1964, a guerra instala-se em Moçambique, o que desencadeia uma avalanche de factos novos, nos tempos da contenda militar, por via da guerrilha, na independência obtida e, por estranho que pareça, no agitado período da soberania moçambicana, sobretudo até aos primeiros anos da década de noventa do século XX. Por ser um documento com interesse relevante, transcreve-se, na íntegra, a Proclamação de 25 de Setembro de 1964: “Moçambicanos e Moçambicanas: Em Setembro de 1962, o Congresso da FRELIMO afirmou unanimemente a vontade e determinação do povo moçambicano de lutar por todos os meios para a conquista da Independência Nacional. A FRELIMO quis, por meio de esforços pacíficos, forçar o governo português a satisfazer as exigências políticas fundamentais do povo moçmbicano, a FRELIMO expôs junto das instâncias pan-africanas, afro-asiáticas e mundiais, a situação em que se encontrava o povo moçambicano, e denunciou os crimes de colonialismo em Moçambique. E foi assim, que depois do povo moçambicano, a OUA, as Nações Unidas, a opinião pública em geral, condenaram também a política criminosa do governo português. Apesar de tudo isto, o colonialismo português continua a exercer a sua dominação sobre a nossa Pátria. As riquezas do nosso País e o tratamento do nosso povo continuam a ser explorados pelos colonialistas portugueses e seus aliados imperialistas. Todos os dias são assassinados camaradas por causa da sua participação activa na luta pela libertação do nosso País, as prisões estão cheias de patriotas, e aqueles que estão ainda em liberdade vivem na incerteza do amanhã. A PIDE aumenta o número dos seus agentes e desenvolve os seus meios de tortura; o exército português é reforçado e aumenta continuamente os seus efectivos em homens e material de guerra; a psicossocial prossegue a sua campanha com vista a enganar o povo moçambicano. Moçambicanos e Moçambicanas: a FRELIMO conduz sempre uma acção de maneira a assumir plenamente as suas responsabilidades de guia da revolução moçambicana. Por isso, paralelamente aos esforços pacíficos, a FRELIMO entregou-se, também, vivamente à criação de condições para fazer (...) à eventualidade da luta armada. Hoje, face à constante recusa do governo português em reconhecer o nosso direito à independência, a FRELIMO reafirma que a luta armada é a única via que permitirá ao povo moçambicano realizar as suas aspirações à liberdade, justiça e bem-estar social. Moçambicanos e Moçambicanas: Operários e camponeses, trabalhadores das plantações, das serrações e das concessões, trabalhadores das minas, dos caminhos de ferro, dos portos e das fábricas, intelectuais, funcionários, estudantes, soldados moçambicanos no exército português, homens, mulheres e jovens patriotas: em vosso nome, a FRELIMO proclama hoje, solenemente, a insurreição geral armada do povo moçambicano contra o colonialismo português, para a conquista da independência total e completa de Moçambique. O nosso combate não cessará senão com a liquidação total e completa do colonialismo português. Moçambicanos e Moçambicanas: A revolução moçambicana, obra do povo moçambicano, insere-se no quadro geral da luta dos povos de África e do mundo pela vitória dos ideias da liberdade e da justiça. A luta armada que nós hoje anunciámos, tendo por objectivo a destruição do colonialismo português e do imperialismo, permitir-nos-á instaurar no nosso País uma nova ordem social popular. Assim, o povo moçambicano dará grande contribuição histórica para a libertação total do nosso continente, para o progresso da África e do mundo. Moçambicanos e Moçambicanas: Neste momento grave e decisivo da história do nosso País, em que unanimemente nos comprometemos a enfrentar o colonialismo português, a FRELIMO cumprirá o seu dever. Reforcemos continuamente a nossa unidade, a união de todos os moçambicanos do Rovuma ao Maputo, sem qualquer discriminação. Consolidemos cada vez mais a nossa organização, estejamos sempre de maneira organizada. Por toda a parte, em cada lugar, a FRELIMO estará presente e pronta a conduzir a luta. Sejamos firmes, decididos e implacáveis, frente ao colonialismo português, aos lacaios do colonialismo português, frente a todos os agentes da PIDE e a todos os traidores do nosso Povo e da nossa Pátria. Unidos venceremos! Independência ou morte! Moçambique vencerá! Viva a FRELIMO! Viva Moçambique! Viva África!”. Dar Es Salam, 25.09.64.” Sem que, neste capítulo, nos atrevamos a tratar com profundidade a questão da Guerra Colonial, cujos contornos ultrapassam, nos seus pormenores, o âmbito deste estudo – considerando-se, no entanto, como um factor determinante rumo à construção da nação moçambicana -, temos de afirmar que, no essencial, os mandatos de Salazar e Marcelo Caetano coincidiram nas políticas delineadas e colocadas no terreno. Assim aconteceu porque “O período de Marcelo Caetano, na presidência do Conselho em Portugal (1968-1974) não trouxe modificações da política colonial prosseguida por Salazar. Apesar de ser visto quase como um liberal, Marcelo Caetano manteve a essência dessa política, nomeadamente sustentando os mitos da colonização, não procedendo à descentralização administrativa, recusando qualquer diálogo com as forças da oposição e com os nacionalistas africanos. Realizou apenas mudanças de cariz cosmético” . Apesar da economia de pontos a abordar, pelas razões assinaladas, consideramos que, nesta temática, se podem delimitar alguns aspectos fundamentais, em termos espaciais e de actos bélicos. Em primeiro lugar, pode dizer-se que a guerra seguiu de norte para sul, atingindo muito mais as áreas rurais que os centros urbanos, locais onde praticamente se não fazia sentir. Por ironia do destino, as cidades chegaram a crescer e a desenvolver-se de uma forma acentuada, mercê dos investimentos feitos e da europeização imposta. Praticamente, até à década de 70, os seus efeitos restringiram-se ao norte, com uma aguerrida intervenção na zona de Tete, aquando da construção da Barragem de Cahora Bassa, um empreendimento colonial a que a Frelimo se opôs, com armas e bagagens. É, por isso, um marco a ter em conta, assim como o aparecimento de “áreas libertadas”, que se contrapunham aos aldeamentos forçados pelas tropas portuguesas. Quanto à linha que vai da Beira para sul, poucas foram, até 1974, as acções dignas de menção especial. Numa táctica de guerrilha, os meios e as técnicas diferiam em absoluto: umas forças militares portuguesas organizadas ao estilo ocidental e um braço armado da Frelimo, que se desdobrava em esforços para acorrer a todas as frentes, postando-se no teatro da guerra como um exército quase imbatível, tal a argúcia com que se batia pelos seus ideais. Foi essa mística que levou este Movimento de Libertação (Partido apenas depois da Independência) a conseguir tornar Moçambique independente, consumada que foi a descolonização então levada a cabo, por entre vicissitudes diversas. A independência de Moçambique Após ter falhado a própria Guerra Colonial, que se estatelou no chão de uma forma abrupta e por implosão interna, com particular incidência a partir da acção do Movimento das Forças Armadas, cessaram os mecanismos da política definida pelo governo português para África, a saber: a contra-ofensiva militar, o apelo aos sentimentos históricos e simbólicos, as medidas legislativas, a resistência às pressões internacionais, a minagem de apoio social aos movimentos africanos. Tudo isto se esfumou como do pé para a mão, sendo justa uma palavra dedicada ao livro Portugal e o Futuro, de António de Spínola, que abriu a porta aos novos tempos que se lhe seguiram, apesar de todas as contradições que envolveram todo este processo. Apontando, timidamente e com tibieza um outro caminho para as colónias, a voz das independências e da descolonização fez-se sentir mais alto. Tirada a rolha à garrafa de espumante, o líquido apertado, que nela se encontrava, disparou para todo o lado, ora com controlo, ora desenfreadamene, o que motivou alguns talvez evitáveis atropelos. Afinal, era o fim e o estertor de um regime que comprimira os portugueses e os cidadãos das colónias durante 48 anos. Percebem-se então, as vias seguidas e os excessos gerados no calor do momento, em contraponto das ideologias que lhe estavam subjacentes. Do lado de lá, triunfavam os nacionalismos de libertação e de emancipação, para se inventar um homem novo numa nação a emergir e a adquirir a sua própria soberania. Contrariamente ao que diz Yves Santamaria em Moçambique não há uma “nação por inventar, apesar das instituições soberanas”, mas uma nação sonhada e em construção. Mas temos de concordar com Josef Pilsudski que, na mesma obra, a páginas 24, quando declara que “É o estado que faz as nações e não as nações que fazem o estado”, tese que se enquadra bem com a realidade moçambicana, sem poder ser generalizada, no entanto. Com o nascimento de um novo estado, que combina anseios passados e actos decorrentes do processo de descolonização, que o viabilizou, deu-se corpo às ideias da futura Declaração de Harare, em 1982, que consagrou a figura do homem novo africano, enquanto Moçambique consumia as suas energias numa devastadora guerra civil, que acabou por lhe minar as próprias entranhas. Numa primeira fase, “Com a guerra (1939/45), a Europa perdeu o seu prestígio junto dos povos coloniais, o que favoreceu a implantação dos movimentos de emancipação que começaram a aparecer” , devendo-se a estes os alicerces daqueles que tomariam decisões parecidas, lá mais para diante, como aconteceu em Moçambique. Por essas ocasiões, os pontos fracos encontravam-se mais na fragilidade dos próprios impérios, nas afirmações e convicções anticoloniais, nas viragens emergentes, quanto ao término deste longo e penoso processo, que teve lugar no mundo lusófono (um conceito que haveria de suceder a 500 anos de domínio português). São, no entanto, de outro género os fundamentos africanos têm a ver com as forças internas, com a revolta, com a contestação e com as lutas de libertação nacional, para além da contastação de que se trata de países com debilidades e vulnerabilidades de monta, que importava remediar. Por estes factos, “Em finais dos anos 70, por um conjunto de razões, o continente africano torna-se uma questão central. É constituído por Estados economicamente fracos e politicamente instáveis, com fronteiras traçadas artificialmente, onde frequentemente irrompem conflitos sociopolíticos” . Na longa escalada para a independência, esgotado o argumento das armas, a Lei 7/74 surge como um esteio determinante, por aludir à autodeterminação dos povos africanos e até o reconhecimento ao seu direito à independência, um estádio bem mais profundo que o anterior, a levantar então aturadas polémicas. Esta Lei só foi possível, porque “O derrube da mais velha ditadura europeia (...) decorreu (...) da situação sem saída e de completo bloqueio a que tinha chegado a política colonial do regime” , o que permitiu o entabulamento de negociações entre a Frelimo e o novo governo português, a completar com uma nova postura na cena internacional e a ideia diferente que a ONU começou a ter da política nacional. O processo em causa decorreu, propriamente, de 20 de Setembro de 1974, data da tomada de posse do Governo de Transição e 25 de Junho de 1975, com a proclamação da independência do território. Mas, logo em Junho de 1974, uma delegação portuguesa teve contactos com a Frelimo, em Lusaca, para, no dia 25 desse mês, tomar posse um governo provisório na então cidade de Lourenço Marques. A 7 de Setembro de 1974, com os Acordos de Lusaca, Portugal reconhece um único interlocutor, a Frelimo, depois de terem nascido como cogumelos muitas outras pretensas forças políticas moçambicanas, tais como a FICO (Frente Independente de Convergência Ocidental), a COREMO, o GUMO, o FUMO, o MONIPAMO e a FRECOMO. Implantava-se também naquele dia o acordo de cessar-fogo. Para uma melhor compreensão da correlação de forças então existentes, somos de opinião que o Protocolo estabelecido entre o Governo Português e a Frelimo, nesse mesmo dia, ilustra bem a temperatura política que então se vivia, pelo que se justifica a sua transcrição integral: “Preâmbulo: Tendo o Estado Português reconhecido o direito à Independência de Moçambique e aceite por acordo com a Frente de Libertação de Moçambique transferir os poderes que detém para o Povo Moçambicano, o Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique acordam em celebrar o presente acordo de cessar-fogo com vista ao estabelecimento da paz correspondendo assim às aspirações profundas dos Povos Moçambicano e Português. O presente acordo visa pòr termo aos actos de guerra no conjunto do território de Moçambique entre o Exército Português e as Forças Populares de Libertação de Moçambique, estabelecer o calendário de evacuação das Forças Armadas Portuguesas e transferir para a Frente de Libertação de Moçambique as instalações militares ainda sob controlo português. Durante o período de vigência do presente acordo, a Frente de Libertação de Moçambique continuará a desenvolver as suas Forças Armadas de modo a assumir plenamente as responsabilidades de defesa de Moçambique independente. TÍTULO I – Do Cessar-Fogo: ARTº 1º: A Frente de Libertação de Moçambique e o Estado Português acordam em proclamar o cessar-fogo sobre o território moçambicano incluindo águas territoriais e espaço aéreo que entrará em vigor às zero horas de 08 de Setembro de 1974 (hora de Moçambique). Para este efeito ambas as partes darão as necessárias instruções às suas respectivas forças combatentes. TÍTULO II – Da Comissão Militar Mista: ARTº 2º: A Comissão Militar Mista criada pelo Acordo entre o Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique desta data e de que este documento faz parte integrante, será constituida por 3 membros em representação de cada uma das partes. As suas funções são especificadas no Título VI do presente Protocolo. ARTº 3º: A Comissão Militar Mista terá a sua sede em Lourenço Marques e criará Subcomissões paritárias ao nível provincial e a outros níveis que sob a sua direcção supervisarão localmente a execução do presente acordo. TÍTULO III – Da evacuação das Forças Armadas Portuguesas: ARTº 4º: O Estado Português iniciará imediatamente a evacuação das suas Forças Armadas, que terminará o mais tardar às zero horas do dia 25 de Junho de 1975, dia da proclamação da independência de Moçambique. ARTº 5º: O processo de evacuação das Forças Armadas Portuguesas far-se-á gradualmente e de forma regular, devendo a Comissão Militar Mista estabelecer: A): os locais de agrupamento final das Forças Armadas Portuguesa, a partir das quais elas deixarão definitivamente o território moçambicano, B): Os locais de agrupamento provisório ao nível de cada província onde se concentrarão as Forças Armadas Portuguesas antes de atingirem os locais mencionados na alínea anterior, C): Os itinerários terrestres, aéreos e marítimos a seguir pelas Forças Armadas Portuguesas no percurso da evacuação. ARTº 6ª: As Forças Armadas Portuguesas, enquanto permanecerem no território de Moçambique, terão como funções em colaboração com as Forças Armadas da Frente de Libertação de Moçambique: - defender a integridade territorial de Moçambique contra qualquer agressão exterior; - proceder à desminagem e desactivação de engenhos, à demolição e remoção doutros obstáculos perigosos à livre circulação das populações; - continuar as obras em curso, reparar as vias de comunicação e proceder a outros trabalhos de reconstrução relacionados com a normalização da vida das populações; - intervir em caso de força maior, no restabelecimento da ordem interna, nos termos determinados no Acordo entre o Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique. A Comissão Militar Mista estudará a composição e organização e estacionamento destas forças a fim de as habilitar a desempenhar eficazmente as suas funções. ARTº 7º: As Forças em curso serão consideradas forças transportadas não operacionais. ARTº 8º: O Estado Português entregará as instalações militares que evacuar e o respectivo equipamento e material e diligenciará para que não se proceda a actos de destruição total ou parcial. TÍTULO IV – Da neutralização de organizações e actividades perturbadoras da ordem pública: ARTº 9º: O Estado Português desarmará imediatamente todos os corpos de milícias, OPVDC, milícias privadas, Flechas e outras organizações similares, entregando à Frente de Libertação de Moçambique as armas não pertencentes ao Exército Português. ARTº 10º: O Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique cooperarão na detecção e neutralização de todos os agentes reaccionários e subversivos e nomeadamente os ex-agentes da PIDE-DGS. ARTº 11º: O Estado Português e as Forças Armadas Portuguesas tomarão medidas para impedir que os seus nacionais se envolvam, individual ou colectivamente, em actividades de colaboração militar com os Governos da África do Sul e da Rodésia. TÍTULO V – Dos moçambicanos nas Forças Armadas Portuguesas: ARTº 12ª: Com a assinatura do presente acordo cessa a incorporação de moçambicanos nas Forças Armadas Portuguesas. ARTº 13ª: O Estado Português desmobilizará os moçambicanos actualmente em serviço nas Forças Armadas Portuguesas dentro do território moçambicano, os quais serão reintegrados na sociedade moçambicana, sob a responsabilidade da Frente de Libertação de Moçambique. A fim de evitar perturbações de ordem pública, as forças especiais como os GE, GEP e Comandos serão imediatamente desarmados. ARTº 14º: O Estado Português compromete-se a desmobilizar os moçambicanos actualmente em serviço nas Forças Armadas Portuguesas fora do território de Moçambique que assim o requeiram e deste facto notificará a Frente de Libertação de Moçambique. ARTº 15º: As duas partes procederão, o mais tardar até ao dia 14 de Setembro de 1974, à libertação dos prisioneiros que se encontram em seu poder, obrigando-se a dar mutuamente as mais amplas informações julgadas necessárias. ARTº 16º: O Estado Português compromete-se a amnistiar todos os militares portugueses que se encontram detidos ou condenados por actividades contra a guerra colonial em Moçambique e em favor da Frente de Libertação de Moçambique, que não tenham sido cobertos por amnistias anteriores. TÍTULO VI – Controlo da execução do presente acordo: ARTº 17º: Caberá à Comissão Militar Mista velar pela aplicação do presente acordo. Compete-lhe nomeadamente: A) – determinar os locais e itinerários de evacuação das Forças Armadas Portuguesas e supervisar as operações de evacuação, assim como a entrega de instalações militares à Frente de Libertação de Moçambique, B) – Supervisar o desmantelamento dos dispositivos militares dos “aldeamentos”, C) – Supervisar o desarme do corpo de milícias, OPVDC, milícias privadas e outras organizações similares, assim como neutralizar actividades militares, individuais ou colectivas, de colaboração com os Governos da África do Sul e Rodésia, D) – Supervisar a desmobilização dos militares moçambicanos em serviço nas Forças Armadas Portuguesas em Moçambique, os quais serão reintegrados na sociedade moçambicana sob responsabilidade da Frente de Libertação de Moçambique, E) – Organizar a libertação dos prisioneiros de guerra de ambas as partes, F) – Estabelecer as listas de todos os prisioneiros de guerra de ambas as partes detidos desde o início do conflito e esclarecer o seu destino, apurando eventuais responsabilidades, G)- Resolver eventuais litígios, violações e todos os problemas que possam surgir entre as Forças Armadas de ambas as partes na execução do presente acordo. TÍTULO VII – ARTº 18ª: Durante o período de transição o financiamento e o abastecimento das Forças Armadas Portuguesas estarão a cargo do Estado Português. Ao Governo de Transição caberá o financiamento e abastecimento das Forças de Libertação de Moçambique. As Forças Armadas Portuguesas comprometem-se a efectuar o pagamento integral das dívidas contraídas em Moçambique: Samora Moisés Machel. Pelo Estado Português: Ernesto Augusto Melo Antunes (Ministro sem Pasta), Mário Soares (Ministro dos Negócios Estrangeiros), António de Almeida Santos (Ministro da Coordenação Interterritorial), Victor M. Trigueiros Crespo (Conselheiro de Estado), Antero Sobral (Secretário do Trabalho e Segurança Social do Governo Provisório de Moçambique), Nuno Alexandre Lousada (Tenente-Coronel de Infantaria), Vasco Fernando Leote de Almeida e Costa (Capitão-Tenente da Armada) e Luís António Moura Casanova Ferreira (Major de Infantaria). Dados os pormenores constantes deste Protocolo, que abordam praticamente todas as grandes linhas da guerra colonial, incluindo a indicação dos principais protagonistas, optamos por omitir uma descrição mais detalhada dos factos que se desenrolaram durante mais de dez anos, que merecem uma análise e um tratamento à parte. Não deixa, porém, de ser sintomática a noção de que as Forças Armadas Portuguesas colocaram nas mãos da Frelimo, desde esses dias, todo o ónus do controlo sobre a futura nação moçambicana. Colocando-se ao seu serviço, foi um reconhecimento de fasquia alta aquele que ali se consubstanciou. Talvez, por isso, a sua aceitação não foi pacífica, desencadeando, de imediato, respostas agressivas, como a tomada do Rádio Clube Português em Lourenço Marques e os conflitos, dias depois, já na última quinzena de Outubro, que eclodiram entre tropas dos Comandos e da Frelimo, naquela cidade, seguidos de uma viva agitação social. Com receios palpáveis, o susto tomou conta dos milhares de portugueses que, nessa altura, viviam em Moçambique, o que provocou um êxodo sem precedentes, a resultar numa sangria económica e de quadros que, infalivelmente, se veio ali a sentir com uma profundidade ainda hoje por determinar, em termos de esvaziamento estrutural. Às zero horas do dia 25 de Junho de 1975, cabe a Samora Machel a honra de proclamar a independência, assumir a Presidência e, com efeito, tomar em mãos o novo Estado, a caminho da nação moçambicana, que ainda está em marcha. Retomando este assunto, “Para os países do mundo árabe, da África e da Ásia, a posição das novas autoridades portuguesas face às guerras coloniais e sobre a independência dos povos africanos submetidos ao domínio colonial português condicionava o estabelecimento ou o reatar das relações” , facto que viria a repercurtir-se, pela positiva, nos contactos que foi necessário estabelecer. Também a ONU, como dissemos anteriormente, encarou com novos olhos as autoridades portuguesas, pelo que o relatório sobre os Massacres em Moçambique (Wiriamu, 1973) já não chegou a ir à respectiva Assembleia Geral do Outono de 1974, tendo em linha de conta os novos parâmetros coloniais, antes, anticoloniais. Aliás, na primeira intervenção de um Chefe de Estado Português, na ONU, o General Costa Gomes liga-se umbilicalmente ao direito internacional, à autodeterminação e à independência dos povos ainda sob administração portuguesa. Mas a hora do relógio novo era moçambicana, sucedendo-se, sobretudo a partir de 1975, os acordos de transferência de poderes e bens, bem como de outras importantes matérias. Enumeram-se, a título exemplificativo, alguns deles: Gabinete do Plano do Zambeze, propriedade industrial, Cahora Bassa, funcionalismo público, telecomunicações, banca e serviços, transportes, energias, saúde, entre outros. Alcandorado a país independente, o acto que consagra este estatuto não fez terminar, como que por encanto, as questões quentes e os problemas que afligiam e continuaram a fazê-lo, de uma forma até mais grave, o território de Moçambique. Por opções políticas seguidas, com particular destaque depois do Congresso da Frelimo de 1977, o caminho foi o do corte radical com as estruturas até aí pré-existentes, aproximando-se de uma prática socialista e marxista, que deixou grossas e amargas marcas. O tom acabara por ser dado no momento em que o Governo Transitório tomara posse, em 20 de Setembro de 1974, precisamente pela voz do Presidente Samora Machel: “Importa primeiramente descolonizar e, em segundo lugar, edificar as estruturas adequadas ao Poder Popular Democrático [sublinhado nosso] (...) Descolonizar o Estado significa essencialmente desmantelar o sistema político, administrativo, cultural, financeiro, económico, educacional, jurídico e outros que, como parte integrante do Estado colonial, se destinavam exclusivamente a impor às massas a dominação estrangeira e a vontade dos exploradores” . Configurando uma ruptura total e uma marcação de terreno absolutamente distinta de tudo quanto cheirasse a passado, todos os edifícios institucionais e sociais ameaçam ruir por meio de um terramoto que os novo poderes estavam a arquitectar. Para além disto, dois anos depois, no citado III Congresso de 1977, sai- -se do Movimento para se entrar no Partido, que tudo vem a dominar em seu redor. Com clivagens de toda a ordem e feitio, o grande corte político vem a acontecer com o aparecimento e a acção da Renamo, o que desencadeia uma sangrenta e devastadora guerra civil até 1992. Com um grande estendal de excessos e dificuldades, a mudança afigurava-se como imprescindível, pois “Mais que tudo o resto, a revolução africana é um gesto cultural, de auto-confirmação e de evolução da integridade comunal, pleno de audácia na concepção das suas soluções” . Como estas decisões resultavam num vazio, sobretudo a nível político, económico e administrativo, aí estava Cuba, a par da URSS e da China, a vincar a sua presença e a sua acção. Pondo mãos à obra, a Frelimo desmantela aqui para construir acolá. Note-se que os quadros sociais, educativos e assistenciais não lhe eram, de maneira nenhuma, favoráveis, ao contrário do que acontecia com os investimentos e os empreendimentos, sectores que, curiosamente, tiveram um grande incremento com a própria guerra. Só que, para agudizar o panorama moçambicano, os anos 80/90, do século passado, não corriam de feição para as ideologias, dando-se lugar a um pragmatismo mais frio, mas mais eficaz. Assim “Parece que, com efeito, as grandes ideologias ruíram, embora para dar lugar a uma proliferação de discursos que, não são menos ideológicos [o que comporta algo de paradoxal], sendo até por vezes mais, se bem que não apareçam como tal” . Como este continente africano importa essas mesmas ideologias, que nem sempre ali chegam na sua concepção mais pura e original, surgindo mesmo deturpadas e com adaptações que, nem sempre, surtem o efeito programado, até o atraso com que são implantadas veio ajudar ao insucesso verificado. Com realidades bem diferenciadas, “Na verdade, a evolução africana é definida pela palavra crise: O endividamento imparável, a exploração sem limites (...), os imensos problemas de saúde (...), as fomes (...). Nem a economia se estruturou, nem a política encontrou o sistema estável e duradouro de que uma grande parte dos países africanos necessita” . Em Moçambique, salvo a sua própria especificidade, o quadro não era, nesse tempo, muito diferente deste que aqui se retrata. Guerra intestina, debilidades estruturais, intempéries, desde a seca extrema de 1989/90 às cheias arrasadoras, epidemias mortíferas, com a cólera, a tuberculose e a nova SIDA a fazerem razias, com uma geometria educativa em grande ebulição, mas aqui com notáveis ganhos, outros ventos apareceram não podendo deixar de superar: arrepiar caminho, encarar a vida de uma outra maneira, baralhar e dar de novo, eis aquilo que teve de ser posto em prática. Com coragem e visão estratégica, questionando tudo, as alterações, tão tardias quanto a colonização foi prolongada, acabaram por ver a luz do dia: a economia e as finanças sofreram mudanças radicais, correspondendo aos campos políticos em que radicam as suas fundamentações, a saltar do marxismo para uma maior liberalização, também porque “A globalização foi acompanhada de um desenvolvimento desigual da economia mundial e de uma incerteza económica acrescida” . Mas as raízes das dificuldades não podem, como é lógico, ser imputadas, em exclusivo, à Frelimo e às suas políticas. Remontam aos tempos do colonialismo e à sua organização económica, agravando-se com o seu desmantelamento e o vácuo criados, como já assinalámos. Aliás, nas zonas libertadas durante a Guerra, os ensaios sucediam-se com a suspensão das culturas de algodão e sizal, substituídas por agricultura alimentar, com a criação de cooperativas – que crescem exponencialmente no período pós-independência –, com apoios a práticas novas. Para que tudo isto fosse conseguido, já em 1969, algum tempo antes da sua morte, Eduardo Mondlane reclamara a necessidade de uma profunda campanha educacional, como meio de, através do homem novo, alcançar outra sociedade. Fê-lo na Rádio “Voz da Liberdade”, em Janeiro desse ano, aproveitando assim um órgão de difusão que chegasse às camadas populares. No cômputo dos tempos mais duros, 1974 a 1977 são tidos, no entender de A. M. de Almeida Serra, como “os três anos que abalaram Moçambique” . Na nova cultura da pós-independência, com esta a aparecer em período de grandes tensões internacionais, com a Rodésia e a África do Sul, antes de ascenderem à lista de países autónomos, a oporem-se à revolução moçambicana, com a acção dos Grupos Dinamizadores a ser posta em causa e a estatização a desfazer-se na produção e no abastecimento, com o aparelho governamental a ser visto de lado, eram importantes os contactos com os vizinhos, o que aconteceu, entre outras fases, em 1984. Nesse ano, o Acordo de Nkomati, com a África do Sul, de 16 de Março, faz cessar apoios recíprocos: a Frelimo renuncia ao apoio ao ANC (Congresso Nacional Africano) e este país deixaria de apadrinhar a Renamo. Mas, na prática, tudo isto foi em vão. Determinantes foram, porém, os anos de 1990 a 1992, com o patrocínio da Comunidade de Santo Egídio e do governo italiano, altura em que se selou o Acordo de Paz. Finalmente, em Novembro de 1994, as primeiras eleições mostram que o multipartidarismo consolidara o seu papel, sinal de um Moçambique com outra face. Por outro lado, em 1992, uma nova Lei Orgânica do Banco de Moçambique abria o caminho a importantes reformas económicas e, sobretudo, financeiras, quando, nos anos 80, já se tinham esboçado tentativas de abertura, com a adesão ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial. Duas etapas parecem evidentes: 1975/1986, predominância da intervenção do estado e das experiências socialistas; depois, com o Programa de Reabilitação Económica (PAE) entra-se numa outra era. Mas, uma vez mais, podem acoplar-se argumentações diversas para explicar o rumo dos acontecimentos. Uma delas é esta: “Portugal, ao contrário dos outros países europeus, abandonou as suas colónias africanas muito repentinamente (...). A rapidez deste processo foi ao mesmo tempo entusiasmante e violenta (...). Qualquer futuro era refém de um presente aterrador” . Rodeado de dificuldades, umas herdadas, outras geradas no interior das dinâmicas locais e muitas delas com origem nas influências e modelos externos, Moçambique é, acima de tudo, uma terra independente. Acontece que este estatuto e esta conquista e afirmação de uma soberania implicam consequências que também se não podem alienar. Com um percurso novo a fazer, os trabalhos de casa nunca podem ser descurados e é essa a dimensão que, um pouco pelas vicissitudes e adversidades sofridas, ainda não foi, segundo a nossa convicção, plenamente absorvida. Com uma corda elástica a puxar as diversas forças em presença, no tabuleiro da política e das decisões, no sentido do apego às tradições e a modernidade a exigir um esforço gigantesco para se singrar num mundo global, nem sempre é fácil pilotar as navegações em mar tão encapelado. Mitos, ressentimentos e culpabilizações são também factores negativos a turvar as águas. Vêem-se no horizonte, sinais de esperança, que o recente prémio de boa governação atribuído a Joaquim Chissano pode vir a fazer desabrochar. Numa África que merece ter futuro, Moçambique poderá – e está no bom caminho – ajudar a construí-lo, porque de migalhas se faz pão e todas elas sõ poucas para a fornada que é preciso cozer. Importa afastar, de vez, a persistente e corroedora ideia de que este continente arrasta consigo o estigma de lugar problemático e a atribuição de poder, pelas independências, a quem de direito é o abanão que tardava. Quanto a este desenlace independentista que a Segunda Grande Guerra veio acelerar, é de repisar esta contastação: Portugal foi a última nação europeia e colonial a pisar tais trilhos. E isso trouxe inevitáveis consequências, como se está a notar. Se Salazar e Marcelo nunca aceitaram tal desafio, é curioso saber-se que, já em 1958, houve quem se referisse à sua inevitabilidade, apesar de tudo fazer pela manutenção do estado metropolitano unitário. Por entre a defesa exacerbada da política de então, dizia-se: “É verdade que – e deve dizer-se aqui – os países colonizados estavam destinados a emancipar-se da sua metrópole e a conseguir a sua independência através de um natural processo histórico, mas este desenvolvimento tinha de ser o resultado de uma evolução e não de uma revolução” . Deduz-se, um pouco pelas entrelinhas, que as calendas gregas seriam o tempo oportuno para se atingir esse novo patamar de soberania. É que a ONU, vista então como um instrumento do comunismo internacional, com uma “perniciosa influência democrática” , os EUA duradouramente anticoloniais, a maçonaria que tudo contaminava (chegando a atingir Wilson - mação de 33º grau - e Roosevelt) e um ocidente a defender esses mesmos fins eram, no entendimento de Alejandro Botzaris, os principais protagonistas dos movimentos descolonizadores. Por eles, a independência de Moçambique tinha chegado há muito mais tempo, mas Portugal soubera resistir a todas essas pressões. Entretanto, “A Segunda Guerra Mundial tinha feito soar o dobre a finados pelo imperialismo” . Estado e nação em construção Num processo complicado, herdado da árvore genealógica e transmitido para as fases da gestação e do nascimento, Moçambique constituiu-se primeiro em Estado e, muito a custo, está a erguer a nação. Mais reticente, esta tem dificuldade em ver a luz do dia. A partir de uma vastíssima pluralidade étnica cultural, linguística e religiosa, são muitos os elementos dissolventes e bem menos e menores aqueles que ajudam a cimentar e a robustecer a grande casa moçambicana, aquele espaço, com alma e força humana, capaz de se unir em torno de um ideal comum. Neste contexto, compreende-se que seja o Estado, com todo o seu aparelho, a fazer das tripas o coração que tem como missão alcançar essa alta finalidade. Construído com base em convicções e em ideologias, talvez nem sempre tenha agido da melhor forma. Na ânsia de andar depressa, ao queimar etapas, muitas vezes fez sair o tiro pela culatra, afastando até da nação aqueles que a ela, porventura, queriam chegar. Balizados por um território que nem sequer ajudaram a definir, os diversos povos que o habitam ainda se não sentem como partes de um todo, muito maior que a sua soma aritmética. É este objectivo que, ali, se tenta esboçar, passo a passo. Assim, “Uma nação que deseja os seus interesses deverá ter por alvo reunir o seu povo pelos laços da unidade, da fraternidade e da igualdade...” , princípios estes que, naquela altura, reflectiam obviamente o espírito da Revolução Francesa no seu esplendor. Adequando-os aos tempos de hoje, temos uma espécie de receita ideal. Mas tudo isto é difícil. Ao pegarmos nos respectivos cordelinhos, deparamo-nos, frequentemente, com pesados travões, desde um certo artificialismo – e, quanto às divisões fronteiriças, este é evidente – até à essência de cada um dos grupos que serpenteiam por essa imensidão territorial. Sem este aspecto ser decisivo, a própria dispersão geográfica, a fraquíssima densidade populacional, a deficiente rede de vias e meios de comunicação são elementos a ter em conta, no âmbito desta análise. Todavia, outros argumentos são muito mais importantes: a força das etnias e das diversas línguas aparecem no lote dos primeiros. Comportando civilizações diferenciadas, torna-se difícil amalgamá-las na massa nacional que se pretende vir a obter. Estado existe, terra também. Não faltam ainda a Constituição, o corpo legislativo, os símbolos nacionais e os demais ingredientes de que se carece. No entanto, tudo isto é necessário, mas não suficiente. Só com uma inabalável identidade nacional é possível falar-se numa nação e, em Moçambique, tal ainda não acontece. Num remoinho de contradições, decorrentes do arreigado apego a fragmentadas etnias, é de assinalar-se, vincando bem essa ideia, que só as nações e os nacionalismos têm “suficiente poder e dimensão para assegurar um mínimo de coesão social, ordem e sentido num mundo em ruptura e alienação” . Sozinho, o Estado, mesmo que cheio de força, está longe de conseguir, por falta da união necessária, subir a essa montanha. Por isso, “Em rigor, só podemos designar um Estado como Estado-nação [o lugar cimeiro nesta classificação] se, e quando, uma única população, étnica e culturalmente, vive no interior das fronteiras de um Estado e quando as fronteiras desse estado são coextensivas às fronteiras dessas populações” . Quanto a Moçambique, esta pureza ideal comporta em si mesma uma tarefa hercúlea e impossível de concretizar: a multietnicidade é de tal maneira uma constante que a união de todas as pontas se nos afigura de dificílima resolução. Mas ainda que ainda seja, não pode desanimar-se e há que encetar todos os esforços tendentes a limar arestas e a atenuar fricções e divisões. É, talvez, no cruzamento de todos estes vectores – que se não anulam – que se encontra a nação moçambicana. Parte-se do pressuposto que “As lutas têm duas faces: visam conquistar a independência política, mas procuram, ao mesmo tempo, construir uma sociedade nova – a revolução nacional e revolução social” . Como aqui se viveu um capítulo idêntico àquele que nos é referido por Mário de Andrade, pode adoptar-se esta máxima para a sociedade que estamos a abordar. Unidade na diversidade, afirmação do ser africano e do homem moçambicano são requisitos essenciais. As culturas, ao invés de serem objecções, podem muito bem converter-se, por uma grande introspecção interna, em factores mobilizadores do sentimento de pertença a uma mesma comunidade. Para isso, cada particularismo deve deixar de se fechar em si próprio, gerando, pelo contrário, as sinergias que permitam estabelecer pontes e laços da necessária unidade. É de uma teia que se trata: pontos de cores variadas a fazerem surgir a manta multicolor que, por assim ser, já contém a imagem global que se pretende. Desta forma, para a obra conjunta todos devem ter uma voz activa, serem, ao fim e ao cabo, cidadãos participantes e como tal considerados. Só o exercício de uma efectiva cidadania pode alavancar a adesão a uma soberania que se aceita, em comunidade, assim possibilitando o aparecimento da nação. Esta consegue-se com uma sociedade integrada, um poder central (Estado) com estabilidade, um sentimento de adesão a uma causa e uma democracia activa e consciente, muito embora nem sempre este suporte se encontre em várias nações, o que, na nossa concepção, se revela como uma falha, acrescente-se. Comunidade de ideias, de ambições, de projectos, de êxitos e fracassos, a nação vive de tudo isto. Com o Estado como um meio, este “tornou-se uma instituição ao serviço da grandeza e do poder nacionais” . Em Moçambique, como entidade precedente, cabe-lhe ajudar a construir aquilo que ainda não existe: a nação, mesmo que Habermas já vá falando, numa perspectiva pós-modernista, no que aí vem depois do estado-nação, tese que leva, necessariamente, ao supranacional que, em África, mais tardará a chegar, se isso, algum dia, vier a suceder. Com a base sustentada nos direitos fundamentais do homem, com a afirmação clara da sua dignidade e valor. Há, no entanto, um dado novo, que veio a desencadear-se com a própria guerra: “Em África, as injustiças do governo colonial inspiraram os movimentos nacionalistas, que congregaram os grupos étnicos mais diversos, no seu avanço para a independência” . Sonhando com um futuro comum mais risonho, este foi um elemento catalisador de vontades mais abrangentes, mas que, tantas vezes assim veio a acontecer, a desilusão de tempos novos muito vazios de tudo acabou por destruir. Aquilo que fora aglutinador, chegou a tornar-se um pólo desagregador, o que se viu, em Moçambique, pela própria devastadora e longa guerra civil, a tender para a secessão em duas ou mais nações, tão frágil é ali o tecido social. Com muitas ambições pessoais pelo meio, é esquecido, com frequência, o princípio de que “Uma nação é uma realidade social, histórica e política que incorpora permanentemente ideias e forças de carácter objectivo” , o que se não compadece, na verdade, com apropriações indevidas de poder, ainda que por inconfessáveis meios e com resultados, a prazo, que resultam em estrondosos fracassos. Pegando numa tomada de consciência e num ténue sentimento de pertença a uma comunidade, só um credível estado moçambicano logrará ver a nação a afirmar-se. Caso contrário, ganha-se hoje, para se perder amanhã. Se não fosse para isso, de pouco teria valido. “A luta de libertação [que] não se limita a uma oposição ao domínio colonial, como também realiza uma verdadeira revolução social. A futura nação independente será efectivamente uma sociedade nova e esse processo já está em gestação” . Feito um grande esforço, com inúmeras perdas de vidas, de parte a parte, com prejuízos económicos e sociais gravíssimos e incalculáveis, com a destruição de comunidades e modos de vida, com o afloramento de ódios e com todo o cortejo de horrores que estão inerentes às guerras, triste será se, amanhã, ali se não souber agarrar no que restou, para fazer o que se impõe. Até ao momento, reafirme-se “Moçambique não é uma Nação. O que surgiu no fim da luta anticolonial foi um Estado num espaço territorial multiétnico e multirracial, socialmente multifacetado e com graves desigualdades regionais” . Sendo o Estado a significação legal, a nação confere-lhe o ânimo de que precisa para se impor sem ser imposto, para se fazer ouvir sem gritar, para aplicar as leis sem ser visto como uma excrescência, para, afinal, ser uma entidade com aceitação generalizada. Se assim não for, existe Moçambique mas sem moçambicanos. Quando, como chegou a acontecer, vencer a falta de coesão nacional, quando a lei da força for a regra, o clientelismo e a corrupção, os métodos, não há esperança que resista: em cada canto se minará a unidade necessária, em cada esquina se chamará o vizinho do lado, esquecendo o imperativo nacional. Ainda que este grande objectivo pareça, às vezes, uma miragem, tradição, comunidades locais e sociedade nacional podem, com persistência e despojamento, vir a ser a nação esperada. Isto não se pode conseguir por decreto, mas pela adesão vinda, espontânea e genuína, de baixo para cima. Entretanto, não deve, nunca, colocar-se de lado uma velha constatação, que passa pelo reconhecimento das comunidades e autoridades locais, que terão de fazer ouvir a sua voz. Mas “De facto, o Estado moçambicano pós-colonial, tal como no passado o Estado português não o fez, hoje, neste contexto de reconfiguração, não ignora a efectiva posição privilegiada e a reconhecida legitimidade desses agentes” , facto que se considera bastante positivo no caminho de atracção para a causa comum. Para esse efeito, as realidades tidas como invisíveis, ou aparentemente adormecidas, têm de ser conquistadas, pois é sabido que “Temos uma arma de construção massiva: a capacidade de pensar” . É que “Os africanos são um entrançar de muitos povos. A cultura africana não é uma única, mas uma rede multicultural em contínua construção” e ainda porque “As gerações vivas são contemporâneas da construção dos alicerces das nações. O que é o mesmo que dizer os alicerces das suas próprias identidades” , sendo que, na sua opinião, “nação e etnia podem viver sem conflito” . Nascido o Estado e a sua consequente caminhada para a solidificação que se exige, a Nação tem nele um de seus suportes. Mas revelar-se-á escasso e falível, se pretender actuar de per si, de uma maneira egoísta e autista, até. Tem, pois, de saber colher em todas as machambas e lugares. Fechar-se em redor do seu próprio umbigo só arruinará aquilo que, afinal, pretende levar a cabo e é seu fim último: ganhar os moçambicanos para a nação que é de todos, em geral, e de ninguém, em particular. Numa terra devastada por guerras e rivalidades sucessivas e cruéis, estava-se “... Perante um país que nascia com imensas dificuldades, mas com vontade firme de se reconstruir e erguer a Nação. Vivia profundamente a questão nacional.” Do dia a dia à identidade nacional Num relance pelo passado moçambicano, uma evidência ressalta, de imediato: de ontem até hoje, o seu dia a dia é um repositório de dificuldades, de injustiças, mesmo de imoralidades. Atirado para as catacumbas da história, o seu povo, por ser africano, era visto na Europa como um apêndice, como uma peça na engrenagem colonial, sob o ponto de vista das entidades governativas e liderantes. Com a voz comum ocidental a pender praticamente para o mesmo lado, tão poucas e diluídas eram as posições discordantes, as práticas ali implantadas, longe de ferirem os olhares, eram até vistas como naturais. No final, tratava-se mesmo de um imperativo e dever que a todos tocava: impor ali a civilização que se tinha como única, universal e obrigatória. Se a escravatura foi uma constante durante séculos, a prolongar-se, mesmo que subrepticiamente, até finais do segundo milénio, as formas derivadas, entretanto levadas a cabo, menos condenáveis, não deixavam de ter efeitos nefastos. A economia inerente ao colonialismo impunha, no entendimento dos responsáveis de então, essas fórmulas. Desde logo, o trabalho forçado ou compelido, só abolido, oficialmente, no ano de 1961, quando a guerra colonial já se fazia sentir, pelo menos em parte do império. Por estranho que pareça, foram estas práticas, aliadas a outras, que, gerando descontentamento, fabricavam unidades, como aconteceu com os camponeses de Barué, que se opuseram, afirmando a sua vontade, ao trabalho forçado, ao aumento do imposto de palhota e ao recrutamento militar, isto já nos finais do século XIX. Em inícios dos anos seguintes, viam-se ainda os carregadores recrutados, os machileiros, que se converteram num dos símbolos de poder e ostentação de quem os utilizava, o que se verificou até aos anos 30. Com um misto de elevação de quem os protegia e a crítica aos sofrimentos que sentiam, ora eram propangadistas do poder instituído, ora o minavam por todo o lado, até pelos segredos que passavam a deter. Mas é a questão da cultura algodoeira que mais veio acentuar estas contradições. Estendendo essa monocultura um pouco por todo o território moçambicano, com o cortejo de imposições que acarretou, o governo português ia, por fim, ver que tudo isso era contraproducente. Na base destas mudanças radicais, eis que surge, aí pelos anos vinte, a Sociedade Fomentadora da Cultura do Algodão Colonial, que veio a incrementar o comércio e a produção algodoeira, até pela euforia dos preços a que se assistirá. Com o Decreto-Lei n.º 28697, de 25 de Maio de 1938, apareciam directivas referentes ao recrutamento do capital e à captação de trabalhadores africanos, entre muitos outros aspectos. Criada a Junta de Exportação do Algodão Colonial, esta previa os mecanismos de pressão, controle, acompanhamento técnico, arbitragem de conflitos, sendo que as diversas entidades que se vieram a constituir continham em si sinais de uniformização e harmonia, desencadeando, por sua vez, acções veladas ou concertadas contra elas próprias e o próprio estado colonial. Por essas vias e formas, faziam surgir fontes identitárias, um pouco por negação do que se não deseja, menos que pela prossecução de objectivos comuns, concretos e definidos. Eram, no entanto, um fermento poderoso, que, junto a outros, punha a germinar fórmulas mais directas de contestação social e política. Assim, nos anos 40, viam-se, no terreno, as seguintes firmas e entidades um pouco de norte para sul: Sociedade Agrícola Algodoeira, Sociedade Algodoeira do Niassa, Companhia dos Algodões de Moçambique, Monteiro e Giro, Lda, Companhia Agrícola e Comercial Lopes e Irmão, Sena Sugar Estates (também ligada à produção de açúcar), JFS – Companhia Agrícola e Comercial João Ferreira dos Santos, Companhia Nacional Algodoeira, Companhia da Zambézia, Companhia Colonial do Búzi e Algodoeira do Sul do Save. Com o mapa moçambicano praticamente coberto, colocou-se nas mãos de toda essa gente o destino desses tempos e a destruição dos solos e comunidades locais, para o futuro. Com seus abusos e aparelhos repressivos, os resultados eram, com alguma frequência, profundamente alterados para pior, por diversas vias: formas de resistência passiva, emigração clandestina, contestações encapotadas, levantamentos, com Mueda a aparecer como um dos exemplos, em 1960. Um ano após este acontecimento, com o Decreto-Lei N.º 43874, de 24 de Agosto, acaba por se consumar o fim do regime forçado desta cultura, quando já era tarde demais. A luta política pela independência rebentaria a partir daí, com expressão prática a partir de 1964. Entretanto, com todas as pressões exercidas, por volta de 1960, Moçambique exportava 140.000 toneladas de algodão, aparecendo em 14º lugar, a nível mundial, quando Angola se ficava pelas 20 toneladas. Por volta de 500.000 produtores, possibilitavam a ocupação de uma área de 300.000 ha, numa organização social toda ela altamente discriminatória, tendo em conta os dados que se seguem, colhidos na obra A cultura algodoeira na economia do norte de Moçambique : Homens Válidos 1.º Escalão 18 aos 30 anos Machambas com 110X110m 2.º Escalão 31 aos 45 anos Machambas com 90X90m 3.º Escalão 46 aos 55 anos Machambas com 60X60m 4.º Escalão > 55 Machambas com 40X40m Mulheres Válidas 1.º Escalão 18 aos 35 anos Machambas com 45X45m 2.º Escalão 36 aos 50 anos Machambas com 35X35m Em culturas alimentares Homens 1.º Escalão 1 ¼ ha 2.º Escalão 1 ha 3.º Escalão ¾ ha 4.º Escalão ¾ ha Mulheres 1.º Escalão ¾ ha 2.º Escalão ½ ha Distinguiam-se ainda agricultores e cultivadores de algodão, conforme pertencessem aos 1.º, 2.º e 3.º escalões, nos homens, para a primeira classificação e a outra para os restantes. A par destes trabalhos, tinham a seu cargo o fornecimento de força braçal para vários investimentos, que se desenrolavam em parceria com as respectivas empresas concessionárias. Com as discriminações atrás citadas, este autor enumera as atitudes de resistência dos indígenas, que vão do abandono do terreno inicial para outro local à sementeira tardia ou compassos maiores, de modo a ter-se menos plantas e menos trabalho, passando ainda pelo cultivo de áreas menores, pelo desbaste incompleto ou tardio, pelas colheitas fora de prazo, pelo arranque e queima fora de tempo e pela redução ou supressão das culturas de rotação. Quando estes desafios às autoridades e às normas estabelecidas eram detectados, “É claro que os agentes de campo ou propagandistas, que não tinham só a obrigação de ensinar, mas também a de vigiar, se viam na necessidade de estar constantemente a chamar a atenção dos produtores e das autoridades gentílicas para aquelas numerosas faltas” , pois, “(...) Os administradores e chefes de posto tinham de intervir com a autoridade e o prestígio que lhes advinham dos seus cargos. Actuação antipática esta, mas que muitos faziam de bom grado, não só por dever de obediência à lei e às ordens superiores, como também por saberem que dela resultariam (?) benefícios para os indígenas e para a economia local e geral – da província e da Nação” . A agravar este quadro, também os salários eram motivos de discórdia, até de região para região, porque, na Zambézia, subiam a 4$40/dia e 110$00/mês, enquanto, nas restantes zonas do Norte, se ficavam pelos 3$60 e 90$00, respectivamente. Apesar das obras feitas em diversos locais e da assistência social, “A resistência passiva era notória” . Por isso, em 1977, se recordava uma canção, em língua chuabo, que mostrava as agruras do dia a dia nas tarefas algodoeiras: “Sofro, sim, sofro Sofro, o meu coração chora Que se pode fazer? Sofro (...) Cultivo o meu algodão, Sofro (...)” Se a cultura algodoeira foi um factor a aguçar o apetite por manobras de oposição, frontal ou velada, ao regime e ao sistema, outros mais poderosos se podem referenciar: a língua portuguesa assume, desde logo, um imenso poder unificador, por via indirecta e talvez não desejada, nem prevista, que levou a que fosse tida e vista, pelas autoridades nacionais, após a independência, como um aliado fortíssimo na causa da identidade nacional, nessa fase já com sabor moçambicano. Mas, já antes, durante a própria Guerra Colonial essa mesma necessidade e efeito se fizeram sentir, defendendo-se a defesa da língua da potência colonial por, através dela, se viabilizar melhor a implantação política, a aculturação, agora nova, a homogeneidade e a afirmação da mesma identidade nacional. Contrariamente aos efeitos dispersivos das línguas locais, o português unificava. Por isso, tornou-se um instrumento e, simultaneamente, um elemento estruturante nessa própria identidade. Tinham-no sido as fronteiras, agora é a língua comunicacional e civilizacional. Em conformidade com esta realidade, Celina Martins escreveu: “Necessito inscrever na língua do meu lado português a marca da minha individualidade africana. Necessito tecer um tecido africano e só o sei fazer usando panos e linhas europeias. O gesto de bordar me ensinou que estou inventando uma nova ordem e nessa ordem esses valores iniciais da nacionalidade [esta é uma postura quase pós-modernista] pouco importam” . Diz-se mais adiante que a “Língua do outro se erige como possível cimento aglutinador da colectividade. Pela primeira vez [de acordo com Lourenço do Rosário] o português passou também a ser uma arma nas mãos dos movimentos de libertação” . Suporte essencial na construção da identidade, já, no século XVIII, o português era utilizado por uma questão prática, que se relacionava com a existência de muitas línguas locais, facto que impedia a aprendizagem de todas elas, comprometendo, entre outras funções, o exercício de missionação. Mas os defensores do uso da europeização iam mais longe na sua argumentação: afinal, as congéneres autóctones, além de pobres, eram defeituosas. Grão a grão, a bateria de desconsiderações ia crescendo e esta era mais uma delas, não obstante se poder adiantar que tal procedimento era fruto da época e das circunstâncias. Mas isso não obsta a que seja tido como uma forma de discriminação negativa e susceptível de, um dia, despoletar reacções adversas. A propósito deste tema, “A expansão europeia de Quinhentos introduziu, na constelação de povos, línguas e culturas da Costa Oriental de África, um elemento que viria a desempenhar papel importante na história passada e actual de Moçambique: o português e a língua portuguesa” . Aproveitada em diversas fases e períodos histórico-sociais, a língua portuguesa veio a realizar a unidade em contextos diferentes: antes da independência, como meio destacado no processo de colonização, pelo seu carácter instrumental e civilizacional, porque a ela subjaz uma cultura; no tempo da guerra, como factor de congregação identitária nas áreas libertadas e, agora, como pilar essencial da nacionalidade e identidade moçambicanas, ambas em marcha lenta. Como ponte entre culturas e ideias, como veículo de mensagens e contexto, “A língua portuguesa é, assim, um importante elo de ligação entre diferentes etnias de espaços lusófonos, contribuindo para a sua unidade nacional” . A elevação do português a este lugar de destaque, potenciando a sua importância, por se inserir no mundo da lusofonia, com cerca de 200 milhões de falantes, não pode, no entanto, fazer perder de vista as línguas locais, por imperativos de proximidade, de linguagem dos afectos e dos sentimentos e expressão viva das culturas autênticas. Se aquela é o toque civilizacional e o cimento aglutinador, estas são a genuína vivência de cada uma das comunidades. Uma e outras têm marcado o seu lugar na história e no dia a dia dos moçambicanos. Com a unidade a fazer-se de um leque variado e complexo de atitudes e vivências, de que já referimos, em capítulos anteriores, alguns dos seus contornos, a identidade nacional suporta-se ainda nos efeitos colaterais das políticas de assimilação, do indigenato, do multiculturalismo, dos sistemas educativos e das simbologias alimentadas pelos diversos protagonistas da cena governativa e sócio-política. Com a assimilação a pressupor uma identificação entre o colonizador e o colonizado, a existência de uma classe intermédia e uma tentativa de uniformização cultural, não pode dizer-se que se tenha desenvolvido por aí além. Com os números a desmentirem os propósitos, tão exíguas foram sempre as estatísticas dos assimilados, muitas vezes estas se tornaram, por ironia, os obreiros da destruição dos objectivos pretendidos. Constituindo-se em elites locais, facilmente adquiriam a convicção de que algo estava errado e que era preciso alterar a situação. Dessa forma, tornavam-se pedras do edifício da própria identidade nacional. Aliás, eram tantas as condições que lhe eram impostas, para ascender a esse estatuto de português de segunda, como foi referido por Mia Couto, que poucos vinham a usufruir desse apregoado privilégio. Longe então de vir a obter-se a generalizada e esperada mentalidade europeia, ao invés, abriam-se as portas à africanidade, à negritude e ao nacionalismo moçambicano. Nesta conformidade, “A teoria da assimilação, já antiga, não tinha já muitos partidários no século XX, embora fosse ainda praticada em certos pontos. Tinha como objectivo integrar os povos colonizados no povo colonizador, numa espécie de consumação do princípio da administração directa. O sistema administrativo, judicial, político e económico deveria ser decalcado pela organização da metrópole e integrado nela” . Em oposição a este esforço nivelador, pela via da assimilação, o indigenato, que englobava a imensa massa populacional foi, frequentemente, alcandorado a grande aguilhão na defesa da identidade nacional. Eivado de contradições, recheado de visões distorcidas, logo descambava para a contestação. Com uma velha existência, em 1930, mereceu uma atenção especial no sistema educativo, com a instrução formal em português, para melhor transmitir e inculcar os ideais do então Estado Novo. No seguimento do Decreto-Lei n.º 39666, no seu Art.º 2.º, que elabora o respectivo Estatuto, “São considerados indígenas [...] os indivíduos de raça negra que nelas tendo nascido ou vivendo habitualmente, ainda não possuem a cultura e os hábitos individuais e sociais exigidos pela integral aplicação de direito [...] dos cidadãos portugueses” . Sobre esta gente se exercia a voragem europeia, em moldes descarados ou sabiamente camuflados. Reduzidos a patamares inferiores da condição humana, assim se conservam até ao momento em que, no plano da consciência individual e colectiva, despertam para a nova realidade. Assim aconteceu muitas vezes na história moçambicana, por si escrita e participada. Com o Estado e a missionação a pisarem o mesmo caminho, era difícil a fuga para a frente. Mas, por entre as frestas, a oportunidade acabava por surgir, mais cedo ou mais tarde, mais formal ou informal. Na vasta teia dos factores que permitiam ou viabilizavam descontentamentos vários, a divergirem em intensidade e extensão, mas com poder de mobilização, também os destribalizados têm uma palavra a dizer. Em contraponto, para refrear a sua acção desestabilizadora, o regime português, nos anos sessenta, deitava mão a um outro expediente, de matriz corporativa, como sucedeu em Lourenço Marques, que, de acordo com Adriano Moreira, via surgir várias associações profissionais, contando-se 380 sócios negociantes, 36 sapateiros, 117 carpinteiros, 53 barbeiros e outros tantos alfaiates, 99 lavadeiros (sic), 115 carregadores e 86 criados de mesa. Tudo isto e muito mais era bem pouco, confessando a impotência sentida pelos responsáveis metropolitanos, quanto a estas matérias, pois “É certo que nem o Estado nem as missões podem fazer tudo. Nem é seu dever exclusivo, porque a tarefa ultramarina é da essência da Nação e, por isso, dever de todos e de cada um” Com a escola e as missões a serem, então, instrumentos de massificação identitária, aquilo que serviu o regime português veio a converter-se, nos tempos futuros, em elemento aglutinador moçambicano. Criadas e consolidadas estas estruturas e disseminadas por todo o território da Costa do Índico, nelas se viu o cimento necessário, o elo de ligação de que tanto precisava a moçambicanidade. Entretanto, o movimento da negritude fizera o respectivo trabalho de casa, tal como aconteceu com outras manifestações culturais e ideológicas, tendo em conta que “só tendo raiz somos de um lugar e de um tempo“ . Com uma importância acrescida, a literatura não pode ser dispensada, para a compreensão mais eficaz de todas estas questões, sobretudo quando vestida da roupagem nacional, ou, mais do que isso, nacionalista. Forte enquanto fermento, constituiu-se como alimento fundamental na construção da independência e no agitado período que se lhe seguiu. Nas suas diversas vertentes, da poesia à prosa, tudo nela foi sabiamente aproveitado, ora com rectas intenções, ora com fins menos confessáveis. Comprometida ou de cara mais destapada ou aberta, a literatura foi sempre um precioso instrumento. Fonte de inspiração política, aparece, na maioria dos casos, como “componente central da identidade cultural de todos os estados-nação” , pelo que também Moçambique não fugiu muito a esta regra, não obstante a discussão que o conceito em causa veio a suscitar, mormente a partir das tomadas de posição, por volta dos anos cinquenta, de Alfredo Margarido. Quanto a esta polémica, servimo-nos das palavras de Nelson Saúde, citadas na obra referida no parágrafo anterior, descontando, obviamente, qualquer carga mais radical: “Eu nunca arrisco definir o que é ser moçambicano, porque uma característica importante de Moçambique é ser um mosaico de várias culturas, de várias etnias, de várias formas de expressão, de várias linguagens, da vários signos. É qualquer intersecção entre a mescla de valores que compõe aquele país. Defini-lo será reduzi-lo” . Perante este painel de pluralidades, é na aludida intersecção que se encontra, afinal, o ponto comum que leva à possibilidade de se poder falar, como é lógico, numa literatura moçambicana, suporte da própria identidade nacional, em oposição, como nos diz Luís Manana de Sousa, à anterior literatura colonial, praticamente exótica, atitude que “o Estado Novo fomentou e desenvolveu” . No seguimento da sua linha de raciocínio, o “texto fundador da nacionalidade literária moçambicana” pertence a Rui de Noronha, intitulando- -se Surge et Ambula, aparecido no ano de 1936, sendo assim uma espécie de marco protonacionalista. Coloca neste pedestal ainda os nomes de José Craveirinha, Rui Nogar, Noémia de Sousa, João Albasini, entre outros autores. De assinalar é o facto, para o tema que estamos a analisar, de José Craveirinha se considerar a si mesmo “cidadão de uma Nação que ainda nâo existe”, mas que, deduz-se, está a ajudar a construir. Ao darmos um salto para os anos sessenta e setenta do passado século XX, são já outras vozes moçambicanas que entram em cena, colocando no terreno todo o estendal de ferramentas identitárias. Referimo-nos, neste caso, à acção dos movimentos de libertação nacional, com destaque, pelo protagonismo que assumiu, para a Frelimo. Começamos, desde logo, pelo seu próprio programa e primeiros manifestos, documentos que veiculam a sua ideologia. Assim, já em Setembro de 1962, nos dias 23 a 28, no seu 1º Congresso, em Dar-es-Salam, se proclamava que era necessário “promover maior unidade entre os moçambicanos”, cooperando com todas “as organizações nacionalistas das outras colónias portuguesas”. Entretanto, em Julho de 1968, em pleno Niassa, o 2º Congresso, que se realizou entre os dias 20 e 25, reforçava essa mesma tendência, bem expressa nas seguintes conclusões: 1) - “O nosso povo quer viver num Moçambique independente, próspero, evoluído, democrático”; 2) - “Realizar a unidade de todo o povo moçambicano e mobilizá-lo para a luta de libertação nacional”, como se lê no Capítulo II. Num apego àquilo que considera serem heróis e guerreiros moçambicanos dignos de menção especial, elencam-se os nomes de Maguiguana, Makombe e Bonga, não se vendo aqui, curiosamente, Gungunhanha, presente, porém, noutras ocasiões. Nos Estatutos, pode descobrir-se que é seu objectivo lutar pela “conquista da independência imediata e completa de Moçambique”, apontando-se uma estrutura que, em pirâmide, vai da nação ao círculo, passando pela província, distrito e localidade. Se a Constituição retoca esta tecla da unidade nacional, muito embora dela apenas se possa falar com propriedade a partir de 1990, outros símbolos forjadores de identidade nacional se vêm impondo, progressivamente. Um deles é o Hino, a evocar a força da nova entidade, nomeadamente quando se canta: “Moçambique nossa terra gloriosa pedra a pedra construindo o novo dia milhões de braços, uma só força ó pátria amada vamos vencer” Desta forma, o “Povo unido do Rovuma ao Maputo/ Colhe os frutos do combate pela paz/ Cresce o sonho ondulado na bandeira/ E vai lavrando na certeza do amanhã”. Paralelamente a este símbolo, a cor preta da cantada bandeira remete- -nos para o continente africano, enquanto o branco faz reflectir na justeza da luta do povo moçambicano e o vermelho evoca a defesa da soberania, para além de outras referências contidas nestas cores e nas cinco, em geral, que a constituem. Com o metical a colaborar neste esforço identitário, aqui pela efígie de Samora Machel, até a toponímia foi escolhida para que essa finalidade seja atingida. Nesta conformidade, se Portugal tivera o cuidado de dar nomes às terras e arruamentos, o novo governo não perdeu tempo nesse mesmo capítulo, repescando parte de quanto dessa terminologia se houvera perdido. São disso exemplos: Lourenço Marques / Maputo; Porto Amélia / Pemba; Vila Cabral / Lichinga; João Belo / Xai Xai. Significativas são as designações relacionadas com a toponímia de Maputo, designadamente: Avenidas Acordos de Lusaka, Zimbabwe, Mártires de Mueda, 25 de Setembro, Vladimir Lenine, Ho Chi Min, Josina Machel, Organização da Unidade Africana e das Forças Populares de Libertação, entre outras. Se os programas educativos afinam por este mesmo diapasão, veja-se o que acontece, para melhor se entenderem estes mecanismos, com a arte. Assim, a propósito de uma exposição se escreveu, por altura do 14º Aniversário do Dia Mundial da Paz, acerca dos artistas escolhidos: “A nossa Guernica é múltipla e inscreve-se nas obras dos artistas moçambicanos. Desde o Grito da Paz de Naguib, ainda em plena deriva do sangue e da terra desconjuntada, desde os dilacerados Cristos de um Malangatana a falar e a exorcizar outras guerras, desde a substância pictórica e musical do universo de Chichorro ao desenho escultórico e primordial de José Júlio, o testemunho e a imprecação contra todas as formas de violência – colonial ou outra – sempre enformaram a Arte que se faz no país“ . Esta mostra, acrescente-se, contou com as presenças de Canotilho, Chichorro, Chissano, José Júlio, José Pádua, Lara Guerra, Lívio de Morais, Malangatana, Naguib, Noel Langa, Ntaluma, Shikhani e Tereza Rosa d' Oliveira. Com estes meios, dia a dia, “Estão nascendo outras primeiras identidades” , porque este é um processo dificilmente construído e carregado de obstáculos até se chegar, quase improvavelmente, à cúpula, na medida em que “Moçambique é uma nação de muitas nações. É uma nação supranacional.“ Está, por esta postura, aberto um outro caminho: num tempo em que a nação, aqui, se está a erguer, noutros lados já se envereda por estradas diferentes. Tudo isto nos surge num mundo em que os relógios se encontram, provocantemente, desincronizados, o que se descobrirá a seguir. Os tempos de amanhã Num ponto de partida que entronca num presente cheio de nuvens, falar dos tempos de amanhã é uma tarefa demasiado hercúlea. Com Moçambique ainda a viver por entre sobressaltos, com vista à sua própria afirmação nacional, assiste-se, por agora e de uma maneira cada vez mais aguerrida, à emergência de novos figurinos e outras necessidades. A culpada de tudo isto é a globalização e seus efeitos colaterais devastadores. Pretendendo uma massificação mundial, despoleta, ao invés, individualismos crescentes. Dito desta maneira, até parece que a nação será a arma ideal para travar os novos combates. Acontece, porém, que, sendo necessária, não é, todavia, suficiente, repita-se. Deparamos, de imediato, com uma primeira dificuldade: se Moçambique ainda não é uma nação, como poderá enfrentar os desafios que lhe são, então, colocados? Novas, estas questões exigem respostas velhas e outras, aquelas que têm de nascer da imaginação possível e das adaptações que, jamais, podem ser esquecidas. É um duplo esforço que se pede aos moçambicanos que, seguindo Eric Hobsbawn, ainda não lograram chegar a ser uma nação, termo pleno de ambiguidades, e já encontram, no seu caminho, todo o tipo de escolhos, numa avidez de pertença e angústia de se sentirem desamparados . Este é um grande desafio, quando “A nação foi assim entendida como o suporte identitário dos futuros Estados independentes, cuja principal preocupação se antevia ser a de dinamizar e de desenvolver, para proveito dos africanos [assim se pressupõe], os recursos humanos e materiais desvendados e explorados pelo colonialismo” . Para este autor, perfilam-se, no horizonte, pequenos grupos identitários, talvez os regionalismos, que se aprestam a competir com as próprias nações. Voltam, de novo, a agitar-se outras bandeiras, aquém e além, sobretudo nas zonas de maior turbulência. Cremos, porém, que Moçambique passa, para já, ao lado desta fase, porque o seu Estado, até pelas correcções introduzidas, está a tentar levar a água ao moinho da pretensa identidade nacional. Tem, no entanto, de saber que essas ameaças existem e não deixarão de apoquentar os seus dirigentes, as suas elites. Mas prever, como vimos, “o futuro não é aconselhável a quem sofre de coração” . As dificuldades amontoam-se, no momento em que “Os líderes que tentam reconceber as velhas instituições deparam-se com a recusa, resistência obstinada e o conflito. Os inovadores que procuram criar novas instituições ou organizações confrontam-se com o ceptcismo. Ambos os grupos precisam de audácia, competência política, tenacidade, noção de timing e compromisso. Precisam de aliados.” Mas, num mundo que se defende na lei, esta ideia também se estende a Moçambique, local que, por viver emparedado entre justiças tradicionais e a vontade de impor um sistema nacional, apresenta uma grave dificuldade, a esse nível. Para conseguir a sua própria identidade, há um penoso caminho a percorrer. O mesmo se pode dizer, aliás, de muitas e outras áreas, quase todas, afinal. Com a necessidade a ter de aguçar o engenho, “Todas as leis e regras deveriam considerar-se justas apenas na medida da sua utilidade, no interior de uma dada comunidade e da sua rectificação social” . Apressados em mostrar obra feita, a afinação das agulhas – que nem sempre tem sido cartilha ali seguida – não pode, numa perspectiva de futuro, deixar de merecer a devida atenção. Num mar de águas mundiais agitadas, são crescentes os novos desafios que importa saber enfrentar, jogando com a unidade e a diversidade, com a informação e a busca de recursos, com força própria e vontade de afirmação no tabuleiro da feroz concorrência – que mina a riqueza e atormenta a capacidade identitária e a nacionalidade -, com uma poderosa consciência social e firme apego ao reconhecimento das diferenças. Para que isto tudo tenha sucesso, deve caminhar-se em diferentes vias, porque “A direcção de uma política, interna ou externa, não pode e não deve prender-se completamente a precedentes. Desligar-se do passado, no entanto, pode ser a melhor ou a pior das coisas: a melhor, quando consiste em eliminar da análise os elementos anacrónicos, para regrar a acção, segundo os elementos actuais; a pior, quando equivale a uma suposta amnésia frente às lições da história, o que acarreta a repetição de erros já cometidos” . Perante problemas de tão difícil escolha, decidir é sempre complicado, mas a inacção, essa, paga-se bem mais caro. Numa África empobrecida, num Moçambique atravessado, transversalmente, pela pobreza que é o “principal desafio do século XXI” , pelas epidemias, pelas catástrofes, notam-se, no entanto, sinais de esperança na governação actual, na crescente afirmação da cidadania, na capacidade de relacionamento, na busca de soluções novas, na procura de mecanismos de desenvolvimento, com a salvaguarda, porém, das especificidades locais. Com o século XXI a aparecer como o tempo das utopias, a sua acção mobilizadora é o melhor despertador que se pode utilizar. Ao destruir intrínsecas brigadas da nostalgia e ao deixar de enveredar por facilidades destruidoras, deve ali continuar a citar-se Dwight Eisenhower, que um dia disse: “O pessimismo nunca ganhou qualquer batalha” . Se os índices de desenvolvimento ainda se mostram algo assustadores, a abertura a terapêuticas mais ou menos eficazes pode aparecer como a via para um futuro melhor, um lugar comum, que nunca deve, no entanto, ser esquecido. É a hora de entrar em cena o papel insubstituível do conhecimento, a maior das riquezas, e a via para lá se chegar está descoberta: a aposta na educação, que ali se destaca. Para ajudar a concretizar estes sonhos, os mecanismos de apoio aos países em vias de desenvolvimento (PVD) mostram-se de uma acuidade insubstituível. No contexto dos Objectivos do Milénio e ainda do NEPAD, uma base de requisitos se veio a estabelecer, aspecto positivo, por um lado, mas com mazelas, pelo outro. Condicionaram-se então os apoios à promoção da democracia e dos direitos humanos, à clarificação dos padrões de responsabilização, à governação participativa, tudo isto pensado à escala ocidental, que, em África, nem sempre é de aplicabilidade prática e satisfatória. E, quando assim acontece, aprofundam-se as dificuldades e as assimetrias. Apesar destas objecções, com a criação de novos mecanismos de apoio à educação e à saúde, com o combate à pobreza e à exclusão social, com o aprofundamento do sistema judicial, com uma maior fiscalização, com uma acentuada guerra à corrupção, com a promoção do investimento, pela via da confiança, Moçambique veio a obter em APD mais de 963 milhões de dólares americanos, sendo 64,5% de países do CAD e 35,5% de Instituições Multilaterais. Apoiando-se tudo isto numa Nova Ordem Económica Internacional (NOEI) e nas grelhas dos acordos ACP, Convenções de LOMÉ, OMC e outras estruturas, teve a UE um contributo essencial, com o seu programa “Mozambique European Communnity, Country Strategy Paper and National Indicative Programme for the period 2001-2007”. Deve, também, falar-se na ajuda específica portuguesa, que priveligiou, sobretudo, áreas prioritárias. Mesmo que a economia e as finanças não sejam o único remédio, a verdade é que, sem a sua vitalidade, tudo o mais acabará por ficar por fazer. Por isso, como elementos determinantes, estas APD são, para Moçambique, um sangue muito especial, que importa saber aproveitar e potenciar ao máximo. Com o peso da tradição a ser travão e acelerador, é no controle destes dois pedais que se encontra o ritmo certo, implicando a aceitação destes princípios alterações institucionais, sociais e tecnológicas, que têm de ser eficazmente reconhecidas e enfrentadas. Moçambique, com um multicultural lugar na história, vai ser capaz de se afirmar se souber usar a sua africanidade em favor dos seus cidadãos e a ciência (e também a política) em prol de todos eles. Ao sentirmos que assim é, aventurámo-nos a correr pelas suas estradas fora, rumo à procura da nação moçambicana, que ainda não encontrámos, mas cientes de que esta foi uma viagem que valeu a pena e que já não tem retorno: o fascínio que em nós despertou espicaça-nos, convida-nos para novas partidas. A mala continua pronta, os tempos são marcados para avançar. Seguindo em frente, não deixamos de olhar para trás, porque “Um homem é uma ponte ligando as diversas margens” , devendo seguir-se, na esteira de Gandhi, que Mia Couto agarra, uma prática que permita olhar o horizonte com esperança no futuro, extirpando aquilo que faz emperrar a marcha normal que é preciso saber imprimir-se. Perceber as mensagens – sobretudo aquelas que vêm de dentro – faz toda a diferença. Retenhamos a finalizar este desabafo: “A política sem princípios, o comércio sem moral, a riqueza sem trabalho, a ciência sem humanidade, a educação sem carácter, a religião sem sacrifício, o prazer sem consciência: estes são os sete pecados que estão na base da degeneração das sociedades” . Na superação desses e doutros problemas está, em suma, a chave do êxito, a porta da vitória. Referências Bibliográficas Al-Hasan, A. Y. In A História da Humanidade – Do século VII ao século XVI. (Volume IV). Lisboa: Editorial Verbo. Almeida, P. R. de. (1999). Salazar – Biografia da Ditadura. Lisboa: Editorial “Avante”, S.A. Andrade, A. A. B. de. (1972). Problemas do Espaço Português – Junta de Investigações do Ultramar (N.º 87). Lisboa: Estudos de Ciências Políticas e Sociais. Andrade, A. A. B. de, et al. (1975). Balanço da Colonização Portuguesa – O que foi, como foi a colonização portuguesa. Lisboa: Iniciativas Editoriais. Andrade, M. de. (1974). 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