sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Esta Elsa veio assanhada de todo...

Numa volta pelos concelhos de Águeda, Oliveira de Frades, Vouzela e S. Pedro do Sul, para apenas falarmos destas terras que nos são próximas, constata-se que a tempestade Elsa chegou carregada de água e mau humor, soprando aos quatro ventos e pondo a nuvens a fazerem barulho. Se a chuva é essencial e é de tradição que apareça pelo Natal, quando já deveriam ter existido três cheias (e só vamos numa, mas das valentes!), os estragos em vias de comunicação e pontes, equipamentos, casas de habitação, monumentos e mesmo mortos e desaparecidos é que não deveriam vir ter connosco. Mas vieram e agora há que lhes fazer frente e pôr os pés a caminho na recuperação do que for preciso, lamentando quem perdeu a vida. Cabe aqui um agradecimento muito especial aos Bombeiros, às Forças de Segurança, às CM e JF, à Protecção Civil por tudo quanto fizeram e estão a fazer em favor de todos nós. Um obrigado muito especial a toda essa gente.

Valadares. S. Pedro do Sul, cem anos de mudanças....

Valadares e seu ensino em cem anos de marcha Com o Rio Vouga aos pés e a Serra por companhia a subir para Manhouce, Valadares espalha-se, enquanto povoação e sede de freguesia, por cerca de três quilómetros de extensão na estrada que liga a EN 333 -3 à EN que une a sede do concelho, S. Pedro do Sul ao Porto, pela Serra. Com o sol por boa companhia, tem como um de seus símbolos, que partilha com a vizinha Sejães, as famosas e doces laranjas. Mas a sua riqueza maior está nas pessoas, na sua criatividade e vontade de fazerem progredir sempre a terra que é seu berço. Isso vê-se nas obras realizadas, nos sonhos concretizados, na alegria que transmitem com seus trajes e cantares, na solidariedade manifestada no seu Centro Social e em tantos outros aspectos de relevo, como, por exemplo, esta revista,“ Os ecos da Gravia”. Nestes breves apontamentos de hoje, seremos mais limitados nas nossas ambições, que passavam por querer falar da vida em geral desta comunidade de fronteira. Vamos, por isso, tentar encaixar apenas aqui algumas reflexões motivadas por cem anos de distância em termos de análise de seu ensino e alfabetização, precisamente no espaço temporal que vai de 1911 a 2011 e anos seguintes. As diferenças, como veremos, são como a água e o vinho. A primeira e triste constatação é que a população diminuiu a olhos vistos nestes cem anos de vida, começando com 1314 habitantes em 1911, para, no ano de 2011, último recenseamento efectuado, apenas termos aqui a residir 805 pessoas. É aqui que se enontra o maior dos problemas da nossa sociedade do Interior: um asfixiante e doloroso despovoamento, que, se não for travado a tempo e horas (e já ontem era tarde demais), ameaça a nossa própria existência, o que se verifica nesta freguesia e na grande maioria da área do nosso território português. Já agora, vejamos os números desde 1864 até 2011, desta forma: 1874 – 1060 habitantes; 1878 – 1105; 1890 – 1353; 1900 – 1300; 1911 – 1314; 1920 – 1429; 1930 – 1452; 1940 – 1483; 1950 – 1466; 1960 – 1587; 1970 – 1408; 1981 – 1285; 1991 – 1101; 2001 - 1007 e 2011 – 805. Estes valores falam por si. Dizem-nos, então, que o pico maior aconteceu no ano de 1960 e o menor apenas em 2011, há curtíssimos anos. Se, por aquilo que se sabe, talvez se compreenda a quebra que houve entre 1960 2 1970, a resultar do fenómeno das emigrações que esvaziaram as nossas povoações, levando as suas gentes por essa Europa fora e para as grandes cidades do nosso país, como Lisboa e Porto, em migrações internas dignas de nota, já custa muito a aceitar o que sucedeu de 1981 até à actualidade, em rombos sucessivos no tecido populacional. Podemos dizer que, apesar dos dinheiros europeus, da nova dinâmica autárquica, dos fundos vindos daqui e dali, dos muitos projectos aprovados e colocados no terreno, das novas vias de comunicação e equipamentos diversos, algo de grave falhou. Portugal não pode dormir descansado, a níveis dos órgãos do poder central e local, enquanto esta sangria se não estancar. Estando perto dum fatal hemorragia, este êxodo rural tem mesmo de acabar. Nem a UE deve deixar de olhar, em políticas do coesão, que já tem, mas que, pelos vistos, não funcionam, para esta terrível situação. Não sendo nós apologistas de quaisquer puxões de orelhas, porque cada estado membro tem a sua autonomia e a sua liberdade, o certo é que dos cofres comunitários vêm pipas de massa e é o que se vê: o erro tem de estar algures e nunca nesta nossa tão dedicada gente que tudo faz para resistir. Com este novo governo, parece que vamos ver estes espaços a tentarem dar a volta por cima, pois que agora estão sem sangue novo, com uma pirâmide totalmente virada ao contrário, o que se reflecte no encerramento das escolas e na abertura de Centros de Dia e Lares ou dos Serviços de Apoio ao Domicílio Instituído um novo Ministério, o da Coesão Territorial, a ter ao leme alguém que deu provas de conhecer esta triste realidade e de a fazer inverter, a Dra. Ana Abrunhosa, pode ser que outros e melhores caminhos venham a surgir. Se assim não for, então nem sequer sabemos o que fazer, que a falta de horizontes para os nossos jovens é enorme e gritante. É na busca desses seus sonhos que estará a chave da solução para estes problemas. Como? Com políticas públicas que encarem de frente a nossa salvação. Falemos agora de ensino A nossa intenção começou, em organização inicial deste trabalho, pela vontade de falarmos apenas do ensino e do que mudou neste período temporal de cem anos. Porém, ao olharmos para os números gerais que acabámos de expôr, não resistimos e lá fomos por outras estradas, as da nossa desgraça como aldeias sem grandes sorrisos infantis e cheias de lágrimas de quem vê os seus partir, tantas vezes sem retorno. Foquemo-nos, para já, no tema a que nos propusemos. Começamos por estranhar a dureza das palavras com que se descrevia a realidade em 1911, em alguns dos cinco parâmetros descritos em números, varões e fêmeas, assim mesmo. Mas contra isso nada a fazer. Foi o que foi e não é legítimo até fazermos comentários à luz dos nossos actuais valores e padrões de vida. Olhemos para as tabelas do campo da educação em 1911, relativamente a esta freguesia de Valadares: população residente – 1314 habitantes; analfabetos varões – 478; fêmeas – 710; sabem ler, varões – 113; fêmeas – 8. Dois aspectos se evidenciam de imediato: em primeiro lugar, uma disparidade e desigualdade de género verdadeiramente assustadora; seguidamente, notamos que o analfabettismo era uma realidade negra, muito mais quanto às mulheres. Não é, porém, uma diferença que se aplique apenas ao ensino, porque todos os aspectos da vida social mostram esses abismos entre os dois sexos, bastando, por exemplo, pensar-se que, ainda na década de sessenta do século passado, o voto feminino era altamente restritivo e que as mulheres, para se deslocarem para fora do país, tinham de ter uma autorização especial. Estendendo, agora, esta lógica ao concelho de S. Pedro do Sul, no seu todo, tínhamos, nesse mesmo ano, este panorama: 22550 habitantes; 6691 analfabetos varões; 11807 fêmeas; sabiam ler 2929 varões e 843 fêmeas. Se nos fixarmos em 2011, aparece-nos em Valadares uma taxa de analfabetismo de 7, 62%,, abaixo, porém, da média global do concelho que era de 9,05%, sinal de que são óbvios os progressos por aqui. Em jeito de comparação, anotemos: Baiões – 5,14%; Bordonhos – 6,63; Candal – 27, 68; Carvalhais – 6, 97; Covas do Rio – 25, 42; Figueiredo de Alva – 9,67; Manhouce – 18, 17; Pindelo dos Milagres – 12, 66; Pinho – 10, 47; Santa Cruz da Trapa – 7,67; S. Cristóvão de Lafões – 6,74; S. Félix – 11, 81; S. Martinho das Moitas – 23, 46; S. Pedro do Sul – 7,33; Serrazes – 5,74; Sul – 15, 24; Valadares – 7, 62; Várzea – 4, 2 e Vila Maior – 9, 36, tudo isto de acordo com o Diagnóstico Social de 2013 elaborado pelo Município. Sem qualquer lupa, salta aqui uma outra evidência: a desigualdade também se verifica notoriamente dentro das fronteiras concelhias, bastando analisar-se a disparidade existente entre a média geral e os valores muito mais altos do Candal, Covas do Rio e S. Martinho das Moitas, ou até de Manhouce e Sul. Assim sendo, há ainda muitas reflexões a fazer para além da dicotomia litoral – interior. Tendo Valadares, por essa análise, 7 crianças a frequentarem o Pré- escolar e 13 no Primeiro Ciclo, o panorama para o futuro continua a ser pouco animador em matéria de povoamento. Temos, mesmo assim, uma boa dose de confiança e esperança. Quando o Rei D. Afonso Henriques ligou Valadares, com o Covelo, ao couto do Mosteiro de S. Cristóvão de Lafões, lá tinha as suas boas razões. Não nos cabe a nós, de maneira nenhuma, dizer o contrário. Como bom vizinho, é isso que desejamos a toda a gente desta terra – Valadares. Que amanhã o sol continue a dar luz, muita luz, a esta freguesia do Vouga e da Serra da Gravia... Carlos Rodrigues, in “Ecos da Gravia”, Dez 19

domingo, 15 de dezembro de 2019

Pede-se barriga suplementar...

O mês de Dezembro traz-nos carradas de excessos. São as Boas Festas em dose vastíssima, são os desejos de um ano novo muito feliz, aos montes, e são, sobretudo, as ceias de Natal, às vezes três para o mesmo dia. Isto estafa mesmo. Já nos lembrámos de pedir uma barriga suplementar para ver se conseguimos levar de vencida tanto convite. Também já pensámos em fazer com que o bacalhau se convertesse em lagosta. Sem sucesso, infelizmente... Um abraço e um bem haja muito forte a quem se lembra sempre desta humilde pessoa...

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

As estradas em Lafões ao longo dos tempos...

Planos rodoviários e Lafões em breves notas A propósito do fecho e reabertura da EN 16, do troço de ligação entre Vouzela e as Termas de S. Pedro do Sul, onde já se pode circular desde sexta-feira, dia 6, à noite, lembrámo-nos de mostrar como têm evoluído os Planos Rodoviários Nacionais que começaram a ser definidos, mais estruturadamente, no ano de 1945. Nesse tempo, a rede de estradas contabilizava 20600 quilómetros em vias de três níveis, 1ª, 2ª e 3ª classes. Quarenta anos durou esse documento. Depois de ter servido de guia esse mesmo PRN, um outro aparece em 1985, sucedendo-lhe posteriormente o PRN 2000, com uma configuração muita próxima daquilo que temos na actualidade, salvo os devidos acertos. Lafões teve como um de seus eixos principais aquele que une a zona de Aveiro a Vilar Formoso, a EN 16, partindo daí por essa Europa fora. Antes, porém, a circulação fazia-se pelo traçado da velha via romana e, mais tarde, pela ER (Estrada Real) 41. Data esta de um Decreto de 14 de Abril de 1856, quando foi decidido construí-la em macadame para unir os dois citados pólos habitacionais entre o litoral e a fronteira. Alega-se, em 1862, que, no concelho de Albergaria-a-Velha, havia sido objecto de obras de beneficiação, isto após uma curta primeira existência, o que era já o prenúncio de continuadas obras ao longo dos tempos. Entretanto, tomando como fonte de informação este nosso NV e um seu famoso suplemento, o Especial Via Rápida de 1988, de 11 de Novembro, por altura da inauguração do IP5, anotemos outras classificações também do século XIX, de certa forma ligadas a esta nossa Região, a “Tabella das Estradas Reaes e Districtaes, de 1889”, relativamente aos seus 18427 km. Eis algumas dessas vias: Nº 13 – Viseu-Vouzela-Seixa-Talhadas/Águeda; nº 41 – Aveiro – Albergaria – Pessegueiro – Oliveira de Frades – Vouzela – S. Pedro do Sul – Viseu e por aí fora; nº42 – S. Pedro do Sul – Santa Cruz da Trapa – Vale de Cambra – S. João da Madeira – Porto; nº 45 – Aveiro – Águeda – Arca – Varzielas – Guardão – Tondela – Carregal do Sal; nº 95 – Santa Cruz da Trapa – Oliveira de Frades – Cambra – Campia – Alcofra – ER 45... Como tudo tem um limitado período de existência, também aqueles dois documentos, de 1945 e 1985, e estas referências expiraram o seu prazo. Entra em cima da mesa o já citado PRN 2000, com uma boa série de requalificações, de novas categorias de vias e arrojadas novas propostas, pelo que aqui o vamos detalhar mais em pormenor. Voltando, então, a 2000, aqui colocamos alguns tópicos desse Plano, onde até se falava de “instalação e gestão de sistemas de informação e tráfego nos prinicipais corredores”. Apontavam-se as seguintes rodovias: em nove IP (Itinerários Principais), o nº 5 seria atribuído à ligação Aveiro a Vilar Formoso; o IC 2 – Lisboa – Porto, entre os 34 IC (Itinerários Complementares): havia ainda as EN , como “restos” das velhas e esquartejadas estradas, tais como a 16, entre S. Pedro do Sul e Vouzela; a EN 333 – Oiã – Águeda – Vouzela (Nó); a EN 333-3 – Oliveira de Frades – Nó de Cambarinho; em matéria de AE, aludia-se ao IP5, futuro A25. Tendo havido algumas reclassificações, ei-las: - ER (Estrada Regional) 16 – Oliveira de Frades – Vouzela; ER 227 – Cercal – Oliveira de Frades; ER 228 – Vouzela – Mortágua e Castro Daire – S. Pedro do Sul; ER 230 – Águeda – Carregal do Sal e daqui para Oliveira do Hospital; ER 333 – Vagos – Oiã; ER 333-2 – Campia – Varzielas; ER 333-3 – Ligação da ER 227 a Oliveira de Frades. Entre tantas modificações, várias destas notas podem estar já algo desactualizadas ou menos perceptíveis em termos das suas existências. No entanto, não quisemos deixar de aqui falarmos nestas matérias, no momento em que assistimos à reentrada em funcionamento de um troço que, devido à queda de um muro de suporte, levou a uma inexplicável demora na sua reparação (meses e meses) e só veio a contemplar uns esccassos metros, quando as forças vivas locais tanto pedem a sua total requalificação. Coisas da vida que a vida mal consegue entender... Carlos Rodrigues, in “Notícias de Vouzela, 12 Dez 19

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Em Dezembro de 1514, D. Manuel I concede a Lafões o respectivo foral. Eis algumas notas...

Foral de Lafões e seu enquadramento Comemoram-se, neste ano de 2014, os 500 anos do Foral de Lafões, sendo nossa intenção, ao abordar tão importante documento, vir a tentar fazer uma espécie de enquadramento desta temática na organização politica, económica e social de nossas terras, nessa época, mas também, e sobretudo, nos tempos anteriores em que se forjaram os municípios em Portugal. Estes, a serem filhos dilectos do desejo de autonomia dos povos, em oposição aos abusos senhoriais e outros, próprios de um regime feudal em que a vassalagem era norma vigente, foram objecto de transformações e leituras várias ao longo de nossa história e um pouco em todo o mundo científico que se debruça sobre a sua formação e implantação. Antes de avançarmos para a alusão a outros forais e cartas de foral, anteriores àquele que D.Manuel concedeu a Lafões em 1514, digamos que a origem dos concelhos e sua apreciação têm alimentado polémicas várias, com duas linhas em confronto: para Alexandre Herculano e Henrique Gama Barros, os municípios vêm na linha da romanização, como uma de suas consequências; já Teófilo Braga, seguindo Muñoz y Romero, contesta tal hipótese, associando-os à fase da Reconquista. Sendo estas querelas, que ocupam os estudiosos destas matérias, algo marginais relativamente àquilo que queremos analisar, o que relevamos é o facto de, na Idade Média, a partir do século XI, os concelhos serem simultaneamente instrumentos de povoamento e de afirmação da liberdade e autonomia, factos que, em Lafões, também muito se verificaram. A seu lado, criando-os, ou apoiando-os, temos os nossos Reis. Classificados os concelhos como perfeitos, imperfeitos e rudimentares, de acordo com Herculano, ou com modelos de Salamanca, Ávila e Santarém (Barros), o que se quer destacar é então a existência destas organizações por estas nossas bandas. Em Herculano ( História de Portugal, Ulmeiro, Lisboa, VIII, 1985), “ ... A história da instituição e multiplicação dos concelhos é a história da influência da democracia na sociedade, da acção do povo na significação vulgar desta palavra, como elemento político... “ (p. 73) e isso diz tudo: mostra quanto peso tiveram na vida das comunidades que se foram gerando. Se, com D. Manuel, havia já uma certa ideia de uniformização central e, por isso, algo distante da matriz medieval mais genuína e mais pura, os forais foram sempre, na sua essência, um campo para a defesa da liberdade e autonomia dos territórios em que se aplicavam as suas normas jurídicas, económicas, sociais. Com a vertente uniformizadora a triunfar neste período manuelino, fértil em mudanças estruturais a todos os níveis, as alterações verificadas nos forais têm a ver com a subida da centralização que se ia aprofundando, sobretudo desde o reinado de D. João II, seu antecessor. A sua Carta Régia de 22 de Novembro de 1497, como resposta a pedidos que já se faziam sentir desde as Cortes de Coimbra (1472) e Évora (1475), com D. Afonso V e em 1481 e 1482, com D. João II, aparece como uma forma de, reexaminando os forais velhos, lhes impor a marca que então se entendia como a mais benéfica para as aspirações do Rei e seu estilo de governação. Foi o que se sucedeu depois em mais de duas centenas destes documentos, incluindo o de Lafões, em 1514, e do Banho, em 1515. A anteceder esta versão, a Região de Lafões teve outras cartas de foral, no todo e em várias partes do seu território, desde os inícios da nossa Monarquia, com o Banho e ser a primeira localidade, em 1152, a ser dotada com a categoria municipal, por deliberação de D. Afonso Henriques, Rei que, em 1169, atribui Carta de Couto, confirmando a de 1159, do Alcaide Cerveira, a Oliveira de Frades, como espaço de Santa Cruz de Coimbra. Por outro lado, até ao século XIX, houve por aqui outros concelhos, ou terras autónomas, tais como Trapa e Sul, assim como existiram localidades que estiveram sob a alçada, por exemplo, de S. João do Monte. Também, como se pode ler no Foral, Queirã, Alcofra e Moçamedes gozavam de um certo estatuto especial. Quanto a Lafões, propriamente dito, já D. Duarte, em 1436, tinha dado atenção a este mesmo concelho, numa zona que, desde há muito, era dotada de um Governador ou funções afins, como se vê em documentos diversos vindos dos séculos X em diante. Sendo este um primeiro trabalho sobre o Foral de Lafões, no seguimento de um bom programa lançado pelas Escolas de Vouzela e Câmara Municipal, que vai ter três datas fortes, a 15 de Outubro, 15 de Novembro e 15 de Dezembro, ponto alto destas comemorações, acabamos, por hoje, com uma reflexão: a que se relaciona com o facto de Vouzela estar com legitimidade acrescida para assinalar esta efeméride. Vejamos quais as razões que nos levam a esta conclusão: Em primeiro lugar, ter na sua posse um dos dois ou três originais do Foral Manuelino, recebido no ano de 1516, a 14 de Setembro, perante o escrivão da Chancelaria da Correição da Beira, e dado a Afonso Ribeiro, escrivão da Câmara do dito Concelho, atesta a centralidade desta terra, nessa mesma época, o que lhe confere a dignidade para ficar como fiel deposiária de tão importante documento. Se, no Numeramento de 1527, Lafões aparece com duas “cabeças”, Vouzela e S. Pedro do Sul, nessa constação há um dado que reforça o papel do primeiro destes locais, também em razão do número de habitantes, com 48 moradores em S. Pedro e 73 na terra do Zela. Mas há mais argumentos: desde logo, aquele em que só Vouzela foi autorizada e usar as armas de Lafões. Com a história a fornecer algumas fontes seguras, neste caso, caminhamos por deduções, mas estamos crentes que não fugimos da verdade quando afirmamos estas conclusões, matéria que continuaremos dentro de algum tempo. Para estas linhas, muito úteis nos foram estas obras: “Foral de Lafões, 1514, Maria Teresa Tavares e Sofia Carla Vasques, Câmara Municipal de Vouzela, 1997”, “ História de Portugal, Alexandre Herculano, Ulmeiro, Lisboa, VIII, 1985”, “ Termas de S. Pedro do Sul, A. Nazaré de Oliveira, Palimage, Viseu, 2002” e “ Serém – 500 anos de Foral, Manuela Almeida, Junta de Freguesia de Macinhata do Vouga, 2014”. Carlos Rodrigues, in “Notícias de Vouzela”, 2014

sábado, 7 de dezembro de 2019

Troço da EN 16 entre as Termas de S. Pedro do Sul e Vouzela como amarga prenda de Natal...

Depois de uns meses de paragem obrigatória, devido às ameaças de ruir por parte de um muro à entrada para a Quinta da Sernada, em Vouzela, a EN 16 acabou por abrir as cancelas e deixar fluir o trânsito ontem mesmo, noite de sexta-feira, entre esta vila e as Termas de S. Pedro do Sul. Escassos metros fizeram com que os veículos tivessem de se desviar para vias secundárias, passando para Fataunços, para fazer, em quilómetros, a distância que separava estas duas terras de Lafões. Se dissermos que estamos a falar das Termas mais frequentadas na Península Ibérica, pelo menos há anos, menos compreensível se torna esta demora, apesar dos esforços feitos pelos municípios de Vouzela e S. Pedro do Sul. O certo é que também o concelho de Oliveira de Frades e os muitos utentes e milhares de aquistas desta EN 16 acabaram por ser vítimas de todo este imbróglio e atraso. Se compararmos com a pressa e ligeireza com que se conseguiu isolar, com blocos de cimento, a Assembleia da República, aquando das manifestações da GNR e PSP, isto é notícia de outro mundo... Por outro lado, contrariando os pedidos feitos pela Comissão intermunicipal que pretende ver beneficiado todo o trajecto de 1.7 quilómetros de estrada muito estreita e com treze curvas acentuadas e perigosas, tendo posto a circular uma petição pública que já conseguiu as 4000 assinaturas para ser apreciada em AR, isto é pouco, muito pouco, uma curtíssima e azeda prenda de Natal. Sendo já alguma coisa, batemos palmas, baixinho e sem grande entusiasmo...

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

O Rio Vouga visto à luz dos Conselhos de Bacia...

Conselhos de Bacia Um olhar sobre o Rio Vouga em 1996 Na análise dos rios em Portugal, há um mecanismo legislativo que se revela de uma grande importância, que é aquele que se designa como os “Conselhos de Bacia”, ora mais activos, ora mais em banho-maria, ou mesmo em triste apatia. Nos anos 90, estavam em plena actividade no que ao Rio Vouga se refere, como se comprova com as conclusões da sua 5ª Reunião do mês de Fevereiro de 1996, realizada em Oliveira de Frades. Começou-se a discussão com a apreciação da acta de Junho de 1995, em que se registaram as conclusões do encontro de Sever do Vouga, constatando-se que era alargado o painel de representantes, a cargo das seguintes entidades: Direcção Regional do Ambiente e Recursos Naturais e respectivo Ministério, assim comos os Ministérios da Agricultura, Planeamento e Administração do Território, Indústria e Energia, Saúde, Comércio e Turismo, Mar e ainda a Associação Nacional de Municípios e os representantes dos Utilizadores e das Organizações Não Governamentais, tais como a Associação dos Amigos do Rio Vouga, então existente. É de relevar-se que esta noção de Bacia já Amorim Girão, nos anos 20 do século passado, a utilizou na sua própria tese de doutoramento na Universidade de Coimbra, apresentando a “ Bacia do Vouga”, muito concretamente. Entre os muitos assuntos tratados a propósito da citada reunião de Sever do Vouga, ficou a saber-se que tinha sido apresentada uma candidatura aos Fundos de Coesão com vista à elaboração dos Planos de Bacia, com base nas seguintes verbas: Douro – 335 000 contos, o que corresponderia, grosso modo, a 1675000 euros; Tejo – 445/222500; Guadiana – 210/1050000; Lima e Cávado – 140/700000; Mondego, Vouga e Liz – 200/1000000; Ribeiras do Oeste – 45/225000; Sado e Mira – 165/825000; Ribeiras do Algarve – 70/350000; Plano Nacional da Água – 650/3250000. Previa-se, no seu início, um prazo de dois anos para a sua conclusão, mas afirmou-se que tinha sido dilatado, estabelecendo-se como prioridade os rios internacionais e só depois os nacionais. Falou-se também das previstas Barragens de Ribeiradio e do Pinhosão, entendo-se que a primeira se considerva mais prioritária. Em termos de informação sobre as actividades desenvolvidas pelo Conselho de Bacia, referiram-se as reuniões de Aveiro, S. Pedro do Sul, Torreira, Sever do Vouga e Oliveira de Frades. Foram ainda indicados alguns estudos elaborados sobre este Rio, com destaque, quanto ao território em que Lafões se insere, para o Aproveitamento Hidráulico da Bacia (1975), Estudo da Caracterização, Perspectivas e Gestão dos Recursos Hídricos na Região do Vouga (1990) , Aproveitamentos Hidro-Agrícolas (1994) e Levantamento das Fontes Poluidoras do Rio Vouga entre as Termas de S. Pedro do Sul e a foz do Rio Caima. Dado tratar-se de sessões de trabalho aprofundadas, foi apresentado, nessa altura, em 1996, um relatório do Instituto Nacional da Água, intitulado Recursos Hídricos de Portugal Continental e sua Utilização, em que se evidenciavam as seguintes notas, algumas não muito agradáveis, como se pode ver: “... Uma primeira conclusão que pode ser extraída é que não tem sido dada à gestão dos nossos recursos hídricos toda a atenção que ela merece. Se todos afirmam repetidamente que a água é muito importante, não apenas como recurso insubstituível nas actividades humanas mas também como componente essencial dos sistemas naturais, então será necessário que, em coerência, lhe seja prestada mais atenção... Uma segunda conclusão que pode ser retirada deste estudo é que os nossos recursos próprios, ainda que mal distrribuídos, são abundantes e muito superiores às nossas necessidades... Uma terceira conclusão que se impõe, talvez menos evidente, é que os principais problemas que se colocam para a resolução nos próximos anos dizem respeito à requalificação, protecção e ordenamento dos nossos recursos hídricos.... “ Atendendo-se ao facto de que, quanto à utilização das águas, há interesses diversos e, bastantes vezes, quase em conflito uns com os outros, “... É fundamental que o processo de planeamento seja amplamente participado por todos os sectores utilizadores, pelas organizações profissionais relevantes e pelos representantes das populações para a protecção do ambiente... “, o que é de relevante importância no que diz respeito, por exemplo, ao uso da nova albufeira da Barragem de Ribeiradio, que, em 1996, ainda era vista como um projecto desejável mas por concretizar. Pondo-se no prato da balança a necessidade dos “princípios do desenvolvimento sustentável, da precaucionaridade e da prevenção”, urge que se tire um correcto aproveitamento deste recurso natural em favor das populações e do interesse de cada uma de nossas terras e comunidades, sem pôr em causa, obviamente, aquelas precauções. Aqui entronca a ideia de que é preciso fazerem-se “abordagens integradas para unidades territoriais específicas”, cada uma delas com as suas características muito especiais e intransmissíveis, como acontece na actual Bacia do Rio Vouga na parte abrangida pela Barragem de Ribeiradio, sem pôr em causa o princípio da “responsabilidade partilhada” Num outro parágrafo, assinala-se que tudo deve ser olhado sob o prisma da ligação entre o ambiente e o desenvolvimento sustentáveis e que as políticas deste sector só são eficazes se não dependerem apenas do Estado, mas antes se forem assumidas por toda a sociedade, o que implica por parte das comunidades uma activa e concreta missão a desempenharem. Sem se pôr em causa qualquer equilíbrio ambiental, que deve merecer um cuidado absoluto, os rios e suas albufeiras devem colocar-se ao serviço das populações e não as marginalizar. A água, a natureza e o homem, ao viverem em diálogo, produzem progresso e desenvolvimento. Se os olhos dos decisores estiverem fechados a esta realidade, qualquer obra pode ser (e é) um investimento estéril e até prejudicial para os territórios em que se insere. Há empreendimentos que têm de ser vistos a esta luz com feição também local: a Barragem de Ribeiradio é um desses e a vertente do turismo, que não está a ser valorizada, não pode ser esquecida. É para isto também que servem os Conselhos de Bacia dos Rios, em particular, neste caso, o Vouga, que corta terras de S. Pedro do Sul, Vouzela e Oliveira de Frades, em pleno coração deste nosso querido Lafões.... Carlos Rodrigues, in “Notícias de Lafões”, 5 Dez 19

Cimeira do clima com mais vozes do que nozes, infelizmente....

Cimeira do Clima a decorrer em Madrid Com uma agenda carregada de nuvens negras, a Cimeira de Madrid sobre o Clima, a COP 25, contou com a presença, na sua abertura, de cerca de 50 líderes mundiais e por ela vão passar, até ao seu encerramento no próximo dia 13, em estimativa, 196 países de todo o mundo com as suas delegações. Este evento, que esteve projectado para o Chile e ali se não realizou por razões da agitação política que, entretanto, se iniciou, integra-se na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas Apontando a gravidade da situação e o facto de, após o Acordo de Paris, pouco ou nada de significativo ter sido levado a cabo, antes pelo contrário, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, apelou, fortemente, ao empenhamento de todos os países no sentido de passarem das palavras e das intenções aos actos concretos, reais e efectivos. Também António Costa se associou a este grito, dizendo que os efeitos nefastos das mudanças verificadas nos têm afectado de uma forma dramática, apontando os trágicos incêndios e o avanço do mar para o litoral como uns de seus principais efeitos. Convém ainda que nos lembremos que, há bem poucos dias, o Parlamento Europeu aprovou o estado de Emergência Climática, atendendo à gravidade da situação, que pode pôr em perigo, daqui a anos, bem poucos, por sinal, o equilíbrio ou a própria existência do planeta - terra, onde habitamos, tendo a obrigação de o legar aos vindouros em condições de vida aceitável e duradoura. Apontando-se a entrada em vigor do referido Acordo de Paris para o ano de 2020, daqui a pouco tempo, ou se age depressa, ou tudo será colocado em risco. Com os jovens na rua, em manifestações sucessivas, somos interpelados, a toda a hora, para avançarmos com decisões e acções de vulto e não apenas com bonitas palavras de circunstância. Este é o tempo de agirmos. A ciência assim o diz e poucos (mas perigosos são aqueles que o negam) se atrevem a pôr em causa essas evidências. Carlos Rodrigues, in “Notícias de Lafões”, 5 Dez 19

Maravilhas nos Arquivos Municipais tais como em Oliveira de Frades

Arquivos municipais em tesouros sem fim Do ano de 1915, descobrimos, no Arquivo Municipal de Oliveira de Frades, uma série de notas que nos enchem a alma de conforto e conhecimento. É para isso que servem estes departamentos do poder local, que ainda não estão suficientemente valorizados, nem estimados, em incúria que se repete, infelizmente, um pouco por todo o lado. - Num dos documentos encontrados, uma simples arreamatação de bens traz-nos carradas de informação. Vejamos o caso em apreço: tratava-se da venda de um prédio urbano, então só com paredes, sem armação nem telhado, localizado no Fundo da Aldeia, limites de Nespereira, a confrontar de nascente com herdeiros de José Lopes da Costa, de norte com Bernardino Ribeiro de Almeida, de poente com o Caminho e do sul com Emília Ludovina da Silva. O estranho desta notícia é que se acrescenta que ali tinham vivido as Freiras do suprimido Convento Nossa Senhora de Campos de Sendelgas, algo que parece um tanto descabido, por serem grande parte destas terras de Santa Cruz de Coimbra, mas que as excepções parecem confirmar. No entanto, uma dúvida ainda a não conseguimos desfazer, porque Nespereiras há bastantes e esta aparece nos Arquivos do concelho de Oliveira de Frades, tudo fazendo crer que essa posse deve ter sido uma realidade. A ver vamos. Decorria esta operação de uma correspondência do Ministério das Finanças – Direcção Geral da Fazenda Pública, no seguimento das Leis da Desarmotização. Inseria-se esta aviso na lista nº 9908. Se for verdade, confirma-se que, já nesses tempos, se assistia a uma espécie de globalização e que não havia limites para as aquisições e respectivas posses e que a Igreja tinha domínios por toda a parte. - Andamos hoje todos preocupados com as dívidas do estado (e, consequentemente, dos municípios) aos cidadãos. Mas em 2015 uma entidade empresarial, a Moagem, Serração e Carpintaria Mecânica – Estância de Madeiras do Bairro do Massorim, Viseu, perguntava à Câmara Municipal de Oliveira de Frades quando é que queria liquidar as contas da obra, presumindo nós, que se referia ao edifício dos Paços do Concelho que tantas dores de cabeça trouxe aos seus promotores. Pedia ainda a entrega do resto da tinta. - A Comissão Concelhia dos Bens Eclesiásticos, em ofício de 30 de Janeiro de 1915, solicita ao Administrador do Concelho cópia dos termos da expropriação dos terrenos dos passais de S. Vicente e de Pinheiro, destinados à construção da linha do Vale do Vouga, por ter de os enviar para a Ex.ma Comissão Central. - Através de um edital da Direcção Geral de Estatística procura-se saber quais os produtores detentores de milho, arroz, feijão, grão de bico, que quantidades produzidas, disponíveis e para venda. - Entretanto, já em 1916, é aprovado um voto de pesar pelo falecimento do ex-Ministro da Justiça, Conselheiro Dr. José Maria Alpoim Cerqueira Borges de Cabral, “ a quem este concelho deve a sua elevação a Comarca, facto que jamais pode ser olvidado”. Que o seu retrato seja colocado no Salão Nobre da Câmara Municipal. Por sua vez, foi decidido autorizar o pagamento aos professores, as rendas de escolas e habitações, o expediente e limpeza, os subsídios à renda das habitações dos docentes, a iluminação nocturna e os seguros dos edifícios escolares. Assim se vê que a matéria das transferências da educação para os municípios não é tema novo, porque, nesses anos, já assim se procedia em níveis até mais fundos, incluindo questões disciplinares e de controle do sistema. Numa variedade bastante dilatada, estas fontes são um manacial de informação de muito interesse e que importa acautelar, de modo o preservarem-se pelos tempos fora. Carlos Rodrigues, in “Notícias de Vouzela”, 5 Dez 19

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Maior conhecimento do passado aconteceu em Vouzela....

Conhecimento histórico de Lafões revalorizado Jornadas Arqueológicas realizadas em Vouzela mostraram novos mundos Com uma forte componente teórica de muito bom nível, completada com a prática das visitas ao terreno, as Jornadas Arqueológicas de Vouzela-Lafões, que aconteceram nos passados dias 14, 15 e 16, revelaram-se um evento pleno de oportunidade e de transmissão de conhecimentos que, de certa maneira, vieram mesmo alterar muito daquilo que se conhecia até há bem pouco tempo. Fazendo-nos recuar milénios, o nosso passado apareceu assim muito mais distante para trás, como se mostrou, por exemplo, com os achados encontrados em Bispeira, S. João da Serra, Oliveira de Frades, a propósito das escavações feitas em virtude da construção da Barragem de Ribeiradio-Ermida, que nos atiram para o Paleolítico, quando temos andado a falar, até agora, quase só no Neolítico. Foi-se então dos cerca de 10000 anos antes de Cristo até muitos milénios anteriores. Sem que tudo esteja desvendado, por haver datações e outros estudos a fazerem-se, o certo é que temos muito mais idade do que aquela que pensávamos ter. Também a matéria do culto dos mortos, que se associava muito às antas, às sepulturas existentes e a necrópoles já desvendadas, vê-se agora como ponto a rever, porque surgiram novas realidades, como a mamoa do Monte Cavalo, Vouzela, no Alto da Carqueja e outras sítios onde se faziam recordar aqueles que partiram. Por outro lado, numa perspectiva intermunicipal, à nossa escala regional, se trouxeram ali mais luzes sobre o recém inaugurado Balneário Romano das Termas de S. Pedro do Sul, após as obras de restauro e beneficiação. Os intervenientes Numa variedade alargada de temas apresentados, é justo referenciar-se aqui o que ali foi tratado e mostrado, tudo isto inserido no “ Estudo do Património Arqueológico de Vouzela”, 2016/2019, com a direcção de Manuel Luís Real, António Faustino de Carvalho e Catarina Tente. Desta forma, esquematizou-se o trabalho em redor dos Monumentos Funerários Neolíticos e Proto-Históricos, Castros e Romanização, Um Castelo e um Espaço Rural com mais de mil anos, Talhado na Pedra – Minas, Sepulturas e Lagaretas, Tempos Medieviais, Torres e Marcos. Como resultado destas investigações, as Jornadas Arqueológicas espalharam o seu conhecimento pelos Monumentos Dolménicos, a cargo de António Faustino de Carvalho, Pedro Sobral de Carvalho e José Pedro Anastácio; Crónicas de um monumento doente – Primeiros contributos para um diagnóstico de conservação do dólmen de Antelas, Oliveira de Frades – Teresa Rivas Brea, Lara Bacelar Alves, Fernando Carrera Ramirez, Vera Caetano, Massimo Lazzari e Pedro Sobral de Carvalho; As Estruturas tumulares proto-históricas de Vouzela – Pedro Sobral de Carvaho e Autónio Faustino Carvalho; A Mamoa proto-histórica do Monte Cavalo, Vouzela, Telmo Pereira, Alexandre Payá, Joaquim Maçãs e António Faustino Carvalho; O Castro de Baiões e a organização gentílica na Beira Interior – Armando Coelho Ferreira da Silva; Os Povoados do 1º milénio a. C. do concelho de Vouzela – Alexandre Canha; Os Bronzes de Figueiredo das Donas no contexto da metalurgia do bronze final – Elin Figueiredo; O Povoado e fortificação da Senhora do Castelo – Manuel Luís Real, Catarina Tente, Tiago Ramos, Daniel de Melo Branco e Luís André Pereira; O Património arqueológico de Oliveira de Frades – Filipe Soares; Os Banhos romanos de S. Pedro do Sul – Marcelo Mendes Pinto e Pilar Reis; Epigrafia romana no concelho de Vouzela – Armando Redentor. Continuou-se ainda com Arqueologia funerária romana e medieval no concelho de Vouzela – Catarina Tente, Daniel Melo Branco e Ana Beatriz Ferreira; Introdução à arqueologia mineira no concelho de Vouzela – Daniel de Melo Branco, Manuel Luís Real, Luís Andre Pereira e João Rocha; A Organização militar do território de Lafões durante a Alta Idade Média – António Lima, Manuel Luís Real, Daniel de Melo Branco e Alexandre Canha; A Densidade de Templos em Lafões durante os séculos X-XI – Manuel Luís Real e Daniel de Melo Branco; As Escavações no sítio medieval de Lameiros Tapados, Ventosa – Catarina Tente, Tiago Ramos, Catarina Meira, João Veloso, Rita Castro e Gonçalo Jacinto; Os Paços medievais e as casas-torre do concelho de Vouzela – Manuel Luís Real e Daniel de Melo Branco; Os contextos arqueológicos identificados nas escavações do Castêlo e Torres de Alcofra e Cambra – Jorge Adolfo M. Marques; Lagaretas escavadas na rocha de Vouzela – Sílvia Ricardo, Tiago Ramos, Luís André Pereira e João Rocha. Depois desta exaustiva listagem de autores e temáticas, que se justifica pelo mérito que tiveram, digamos ainda que as Jornadas contaram na sua apresentação inicial com a presença do Presidente da Câmara, Rui Ladeira, e da Directora Regional de Cultura do Centro, Suzana Menezes. Houve ainda tempo para a inauguração do núcleo museológico da Torre de Alcofra e da Exposição “ Lafões – Estudo do Património Histórico e Arquelógico de Vouzela”, no Museu Municipal. E para uma outra abertura, no terreno, a da Rota Cultural do Megalitismo de Vouzela e uma visita ao restaurado Balneário Romano das Termas de S. Pedro do Sul. Numa louvável iniciativa, muito se aprendeu e se vivenciou. Honrando-se o admirável contributo de Amorim Girão, Fataunços, que no século XX muito mostrou daquilo que temos, valeu bem a pena ali termos estado. Carlos Rodrigues, in “Notícias de Lafões”, 21 Nov 19

Desigualdades por todo o lado....

Um Portugal continuadamente desigual Somos um país que, infelizmente, ainda não encontrou o caminho da justiça, do equilíbrio social e territorial e de um desenvolvimento à altura dos valores humanos que devem presidir a este nosso destino comum. Com muito caminho feito, é ainda dura e penosa a estrada que temos de percorrer. Não temos apenas a clássica diferença entre o litoral e o interior, o norte e o sul. Em cada local, há sempre dolorosas ilhas que continuam a atormentar-nos, como aquela a que assistimos, há dias, em Lisboa, quando uma jovem mãe, sem-abrigo, se desfez de seu filho, colocando-o num caixote do lixo, mal acabou de nascer. Notícia arrepiante, não nos pode deixar indiferentes. Ao prolongar-se a vida sem vida pelas ruas das nossas cidades, ao deus-dará, sem chão e sem carinho, atiramos gente da nossa gente para estes actos tão trágicos e tão dramáticos, que, aliás, temos de o confessar, nada justifica, nada mesmo. Mas que acontecem, isso acontecem, como se viu. Uma sociedade que não é capaz de responder positivamente a estes dramas não pode, jamais, dizer-se que está de saúde. Está, pelo contrário, doente e bem doente. Quando se atingem estes e outros lamentáveis limites, mais ao fundo se não pode ir. Importa, por isso, que nos mobilizemos todos no sentido de fazer evitar estes desfechos. Na desigualdade das desigualdades, cair-se na rua é o fim de linha. Às entidades com responsabilidades políticas e sociais, pede-se que olhem para estas situações com a urgência e cuidados que merecem. Aos legisladores, solicita-se, fortemente, que se deixem de “casinhos” e “causinhas” e ponham os olhos nestas chagas sociais. Comparado com os atrasos nas obras de pouco mais de um quilómetro de estrada entre as Termas de S. Pedro do Sul e Vouzela, agora em fase de trabalhos, depois de bem mais do que um ano de demoras, omissões e adiamento, o que acabámos de relatar na capital quase que nos faz calar as nossas mágoas por estes “esquecimentos” de um Interior que morre aos bocadinhos. Aquelas ilhas da desgraça interpelam-nos a cada momento e fazem pular de tristeza os nossos corações. Com muitas queixas a fazer, calemo-nos para já e façamos votos para que aquela criança consiga o colo familiar a que tem direito. E mais não dizemos. Carlos Rodrigues, in “Notícias de Lafões”, 21 Nov 19

Interior: ontem povoava-se, hoje despovoa-se....

Altos e baixos em termos de população Com base em recenseamentos, hoje sabemos ao certo, de dez em dez anos, quantas pessoas habitam uma região, um país e, de certa forma, praticamente todo o mundo. Mas nem sempre foi assim. Aliás, os censos, no sentido moderno, remontam a meados do século XIX, sendo que, antes dessa época, eram estabelecidas estimativas e assim se faziam as contagens, com mais ou menos aproximação. Usando como unidade de medida o fogo (casa), entendia-se, de acordo com uns autores, aplicar o multiplicador 4 ou, com outros, o 5. Foi o que aconteceu, por exemplo, com as Inquirições de 1258 que apontavam para estes números por região, com base em Teresa Ferreira Rodrigues ( In “História da população portuguesa, CEPESE, Edições Afrontamento, 2009”): - Entre Lima/Minho – 44100 pessoas; Entre Douro e Lima – 120000; Diocese do Porto – 32250; Lamego – 43680; VISEU – 64350; Coimbra – 44500; Guarda – 49000; Trás-os-Montes – 61600; Estremadura – 164400; Alentejo – 72000. Como regra, vivia-se em pequenos aglomerados populacionais, dizendo-se, a certa altura, que a Beira era a província mais rica, sendo o povoamento mais denso no Minho, Vale do Douro e Beira Alta. Acrescentava-se que o litoral sofreu importantes progressos a partir do século XIII, o que se foi acentuando – e agora de que maneira! – pelos tempos fora até à actualidade, com todos os quadros invertidos. Entretanto, verificou-se que o crescimento urbano foi superior ao rural, em regra geral. Olhando para aqueles números e, integrando-se Lafões na diocese de Viseu e na província da Beira Alta, constata-se que estes territórios faziam parte das zonas de maior povoamento. O que aconteceu, então, para dar cabo dessa tendência, esvaziando-se sucessivamente a ponto de hoje ser o que é: um espaço de baixa densidade, em vias de despovoamento acelerado e, em muitos casos, com muitas aldeias sem ninguém? Não encontramos explicações para além das políticas públicas seguidas ao longo dos tempos, na Monarquia até 1910 e daí para cá em plena República, já lá vão mais de cem anos. É de notar-se que “.... No reinado de D. Sancho I ocupam-se áreas nas províncias das Beiras e de Trás-os-Montes até então quase desertas”. Actualmente, escorraçam-se as pessoas para os grandes centros. Em tempos posteriores a esse Rei, com os seus sucessores muito continuou a ser feito em favor do povoamento das nossas terras, com medidas de fundo, como a Feira de Vouzela, no ano de 1307, a construção do Hospital Real nas Caldas do Banho, com D. Manuel I, entre outras motivações de fixação e atracção populacionais. Um dos factores que, nesses séculos passados, condicionava muito a vida das pessoas, levando a grandes oscilações no número de habitantes, era o das más colheitas, num tempo em que os produtos agrícolas eram determinantes para a própria sobrevivência das comunidades diversas. Só no século XIV foram contabilizadas as dos anos de 1309, 1324, 1326 a 1329, 1331 a 1333, 1336, 1339, 1344, 1346, 1347 e a enorme e devastadora peste negra de 1348, com a sua chegada a Lisboa, depois de Messina em Setembro de 1347. São impressonantes as perdas de vidas, na ordem dos 20 milhões de pessoas na Europa. Tendo em conta que, então, se estava muito longe dos valores actuais em população, a percentagem de mortos apresentou-se como uma catástrofe de dimensões incalculáveis. Infelizmente, as pestes não se ficaram por 1348, pelo que outras se anotam: 1361/1362, 1369, 1375, 1379/1383, 1400/1401, 1420, 1433/34, 1438/39, 1457/58, 1481/1485, 1490/92. Sem grandes cuidados de saúde e de higiene, é facilmente percebido o impacto destas epidemias e os problemas que colocava às diversas povoações e seus responsáveis. Hoje, felizmente, temos andado livres dessas tragédias, mas há uma que não nos deixa de preocupar: as más decisões políticas que nos dizimam, pela fuga dos campos, as nossas populações. E contra essas tardam a aparecer os remédios eficazes. Carlos Rodrigues, in “Notícias de Vouzela”, 21 Nov 19

sábado, 16 de novembro de 2019

Amorim Girão e o seu valioso contributo para a história de Lafões

Em tempos de jornadas arqueológicas, emerge a figura de Amorim Girão Por estes dias, em Vouzela e Lafões, muito se vai falando de pré-história e dos tempos posteriores nas respectivas “Jornadas Arqueológicas”, com uma grande variedade de temas e abordagens. Importa que se diga que nestas terras nasceu um enorme vulto da geografia e das coisas da antiguidade que lhes dedicou toda a sua vida. Falamos, como é óbvio, do Professor Aristides de Amorim Girão, que em Fataunços nasceu no ano de 1895, para vir a morrer num outro espaço que também muito amou, Coimbra, a 7 de Abril de 1960. Foi duma ímpar grandeza o seu legado de investigador meticuloso e de professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, de que chegou, por duas vezes, a ser seu Director. Olhando para a sua obra e sua maneira de ser, um de seus discípulos e continuador, Professor J.M. Pereira de Oliveira, assim escteveu, um dia: “ Dos belos mas confinados horizontes da sua querida região de Lafões e do sobrado paterno de Fataunços (...) teria trazido o «provincianismo» dos seus alcances e a esperteza dos seus atrevimentos. Mas daí trouxe principalmente a franqueza que lhe dava o aparente tom de rude, a honradez que o marcava de aparente avareza, a convicção reflectida que fazia a sua aparente teimosia, enfim, a sua crença, que lhe dava o aparente cunho de ingénuo... “ ( In Cadernos de Geografia, 13/1994). Assim sendo, entre aparências e a realidade iria uma distância enorme. Em toda a sua pessoa, se escondia, dizemos nós, a força de quem fez da ciência o seu múnus principal. Tivemos a sorte de, tendo as suas origens em Lafões, ter erguido este território aos altos patamares dos estudos que realizou e muitos foram eles, nomeadamente as “Antiguidades Pré-Histórica de Lafões”, 1921, a “Bacia do Vouga”, 1922, que foi a sua tese de doutoramento, e “ Viseu – Estudo de uma aglomeração urbana”, 1925. No meio de milhares de referências nacionais e internacionais, trazemos aqui ainda uma nota do Professor Fernandes Martins, também seu directo discípulo, que não poupu nos elogios, afirmando o seguinte: “ Geógrafo de alto mérito, professor entuasiasta e trabalhador infatigável, escondia, sob a aparência um pouco austera e rude, um coração generoso e uma dedicação ao alcance de todos”, seguindo os mesmos Cadernos. Uma vida em cheio Se as questões locais lhe serviam para dar largas ao seu gosto pela azáfama dos trabalhos de campos, percorrendo Portugal de lés-a-lés, não se quedou por aí. Quis ir e foi muito mais longe e mais além. Escreveu as “Lições de Geografia Física... Geografia Humana... Geografia de Portugal, Atlas de Portugal, os Compêndios de Geografia, Condições Geográficas e Históricas de Autonomia Política em Portugal, a par dos contributos para o Desenvolvimento dos Estudos Geográfcos em Portugal. Devem-se-lhe ainda as bases da Divisão Administrativa do Continente em Províncias, a partir dos estudos que efectuou, nos anos trinta do século XX. Elemento preponderante da Sociedade de Geografia a que aderiu em 1937, foi ainda bom conhecedor dos vários intervenientes políticos no nosso país. Entendendo que a geografia e a arqueologia devem ser analisadas e vistas à escala da Península Ibérica, estabeleceu adequada correspondência com cientistas espanhóis, muito especialmente com Gonzalo Reparaz Ruiz, como se nota na obra editada pela Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, em coordenação de Fernanda Gravidão, Lúcio Cunha, Paula Santana e Norberto Santos. Esclareceu que, a seu ver, as antas não eram apenas sepulturas mas também lugares de culto e de homenagem aos nossos antepassados do período neolítico. Terminamos o muito que sobre Amorim Girão há a dizer, com as suas próprias palavras. Disse então: “ ... O que os poderes públicos não fizeram, supriu-o a forte iniciativa particular que obreiros dedicados assim puseram em prática... O Centro, e particularmente a Beira Alta, tem sido votado a este respeito ao mais execrável esquecimento... “ Por útimo, aludiu às muitas carências científicas existentes na sua época, em que diz haver apenas registo de duas centenas de antas em todo o país. Sem Internet, os seus feitos, concretizados palmo a palmo, foram ainda mais relevantes. Sensível, deixou agradecimentos, nestes destaques: “... O nosso bom tio e padrinho, Dr. António de Almeida, e o professor primário José Manuel da Silva (pela sua) constante companhia” Na abertura das suas “Antiguidades Pré-Históricas de Lafões” descreve, em pormenor, as razões e as peripécias que o levaram a lançar esta obra no meio de “... dois copos de óptimo Falerno”, indicando ainda muitas outras pessoas que lhe deram a mão e o incentivaram a prosseguir. Pelo que fez, pelas pesquisas e registos que nos deixou, Amorim Girão jamais pode ser esquecido. A pré-história e a geografia, sobretudo estas duas áreas do saber, muito lhe ficaram a dever... Carlos Rodrigues, in “Notícias de Vouzela”, 14 Nov 19

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Atenção dada aos mortos desde há milhares de anos....

O culto dos mortos ao longo dos tempos Estão vivas na nossa memória recente as visitas aos cemitérios para honrarmos os nossos mortos e lhe prestarmos mais uma devida homenagem. Assim acontece todos os anos em dia de Todos os Santos, 1 de Novembro, sendo que a data destinada a este efeito é o dia 2, em que se celebram os Fiéis Defuntos. Porém, pelo facto de o dia 1 ser feriado nacional, tais memórias transitaram para o primeiro dia do mesmo mês. Hoje vamos aos cemitérios, mas tempos houve em que as sepulturas se encontravam nas Igrejas e Adros, sendo que a respectiva mudança provocou, em Portugal, tumultos de enorme gravidade como foi a Revolta da Maria da Fonte, 1846, a que se seguiu a Patuleia, quase em ambiente de Guerra Civil. Com um movimento popular, vindo do Minho, e a estender-se um pouco por todo o país, visando, sobretudo, o governo e as medidas impostas por Costa Cabral, no cerne das contestações estavam os novos impostos e a proibição dos enterramentos nos templos religiosos, por razões de saúde e salubridade. Neste trabalho de hoje, aqui no “Notícias de Lafões”, queremos ir muito mais fundo e mais longe, buscando as formas que o culto dos mortos motivou ao longo dos tempos, muito antes dos citados cemitérios e igrejas. Com o “homo sapiens, sapiens” a interiorizar o valor e a importância de um Além, qualquer que ele fosse, cedo se descobriu a necessidade de encontrar meios e métodos de não esquecer os que partiam desta vida para o desconhecido. O aparecimento de cada vez mais dados sobre o nosso passado, fruto da inovação e de uma ciência sempre em crescendo, vai-nos permitindo conhecer o cuidado com que se pretendia honrar os mortos. Um dos monumentos em que mais se acentua, por aqui, essa dedicação aos entes queridos tem a ver com a construção das antas, essas enormes e elaboradas construções feitas à base de enormes pedras (megalitismo) e das mamoas que as cobriam. Localizadas em muitos sítios, umas mais elaboradas e enriquecidas, outras menos, numa espécie de paralelismo com as nossas campas e jazigos, para não falarmos dos templos dos Faraós do Egipto, ei-las espalhadas pelos nossos montes um pouco por toda a parte, dando-se como exemplos, Antelas (Oliveira de Frades), Lapa da Meruge (Vouzela) e Antas (Manhouce – S. Pedro do Sul). Mas muitas outras se poderiam apontar. Ainda numa malha mais apertada, por agora, queremos cingir-nos a uma modalidade de sepulturas que por aqui se encontram: aquelas que se escavaram nas rochas e de que há, em Lafões, vários vestígios. Com base em publicações diversas, desde Jorge Adolfo Marques a Ana Sofia Silva Pereira, é desta autora que mais nos servimos para alinhavar estas curtas linhas, a partir da sua dissertação de Mestrado, intitulada “Inventário do Mundo Funerário Rupestre Medieval – Centro de Portugal”. Começa por nos dizer que “ Este tipo de sepulturas de inumação caracterizam-se por serem directamente elaboradas no afloramento rochoso, seja este de granito, calcário, ou xisto”. Divide-as, depois, em as mais antigas, de formato ovalado, tipo banheira, situando-as no século VII, e em antropomórficas, mais recentes, do século IX em diante. Sendo discutível esta e outras datações, vale como uma indicação a ter em conta. Por outro lado, associa-as a um povoamento disperso em que se vivia em pequenas unidades familiares, o que corresponde, em parte, aos povoados de Lafões onde as podemos encontrar. Já agora digamos que Catarina Tente, que tem participado, nestes últimos anos, em escavações arqueológicas no concelho de Vouzela, também possui uma tese de doutoramento sobre esta mesma matéria, considerando que estas sepulturas são sítios de habitat alto-medievais. Em números de estações arqueológicas deste nível, o concelho de Oliveira de Frades aparece com três locais, S. Pedro do Sul com igual quantidade, cabendo a Vouzela oito e a Viseu sessenta e três. Concretizando, temos: Oliveira de Frades – Pinhal das Bugalhosas (Arca), Quinta dos Vales da Bouça e Porto Carro (Arcozelo das Maias); S. Pedro do Sul – Quinta de Novais (Baiões), Nossa Senhora do Milagres (Pindelo dos Milagres) Santa Bárbara (Sul); Vouzela – Corgo e Quinta da Tapada (Fataunços), Lamas, Outeiro dos Moinhos e Tapada (Paços de Vilharigues), S. Domingos (Ventosa), Nossa Senhora do Castelo e Igreja Matriz (Vouzela). Uma outra manifestação do culto dos mortos liga-se às estelas funerárias de que há por estas terras de Lafões vários exemplos, como em Destriz, entre outros. Junto a alguns dos diversos monumentos, como as antas, é frequente terem-se encontrado objectos vários e até vestígios de alimentos, sinal de que com o enterramento das pessoas se procedia também à oferta dessas manifestações de carinho e saudade. Ontem e hoje, o Além está sempre presente em muitas das nossas culturas e sociedades, ainda que de maneiras e intensidades muito diferenciadas, como aqui vemos. Carlos Rodrigues, in “Notícias de Lafões”, 7 Nov 19

Misericórdia de Vouzela com mais de quinhentos anos...

Misericórdia de Vouzela das mais antigas do País Num tempo em que se fala de eventuais mudanças nos seus órgãos sociais, é nossa intenção registarmos, neste espaço, algo da longa história da Santa Casa da Misericórdia de Vouzela, praticamente uma das primeiras, a nível nacional, a ver a luz do dia, em 15 de Agosto de 1498, seguindo a iniciativa da Rainha D. Leonor. Na base de seus princípios e compromissos, esteve a necessidade de prestar cuidados aos enfermos, de enterrar os mortos que de tal apoio precisassem, de alimentar os presos, de distribuir pão e alimentos aos carenciados, de oferecer agasalhos e roupas, de receber, na roda, as crianças abandonadas, de proporcionar acompanhamento condigno aos condenados e outros actos caritativos vistos como pertinentes. Tendo em conta que este movimento de solidariedade começou em Lisboa e ao mais alto nível, o facto de Vouzela ter estado logo na primeira linha das instituições criadas atesta a importância social e política que esta terra então detinha. Para dar uma ideia dos seus pergaminhos, no ano de 2009, o nosso saudoso colega, Agostinho Torres, elaborou uma bem detalalhada monografia, que nos serve hoje de boa fonte para fazermos este curto trabalho. Sendo impossível e impraticável falarmos de tudo o que ali se escreveu, fazemos ressaltar apenas umas curtas notas. A primeira destas tem a ver com o Compromisso de 29 de Janeiro de 1647, documento em que se registam os fins essenciais da respectiva Misericórdia, de que são uma espécie de bíblia e constituição que presidem a todas as acções a desenvolver e decisões a tomar. Foi confirmado pelo Rei D. João IV, a que se seguiram os reis D. João V, em 1738, D. José (1768) e D. Maria I (1786), entre outros monarcas. Diz-se que o primeiro edifício onde se instalou a Misericórdia se situava na Rua Direita (Morais Carvalho, na actualidade), assim como o hospital inicial também aí teve o seu lugar de partida, a durar até ao ano de 1880, altura em que, para se alargar a velha ER 41/EN16, veio a ser demolido. Passou depois este serviço de saúde para o Largo de S. Sebastião, antes de se fixar na Quinta da Cavalaria, onde veio a ser inaugurado em 1894 na presença da Rainha D. Amélia e seus filhos. Foi este local cedido pela D. Vitória Adelaide de Seixas Loureiro de Barros, esposa do Comendador João Correia de Oliveira. Quanto ao hospital velho, veio a ser um albergue depois de 1899. É de salientar-se que, em 1873, tinha a Misericórdia nos seus quadros dois médicos, um enfermeiro, um barbeiro com funções meio cirúrgicas, um arquivista, um tratador de relógios, um cobrador de foros e outros “funcionários”. Entre os edifícios construídos, um deles foi o da Igreja da Misericórdia, com as obras a serem iniciadas em 1593, sendo nele executadas grandes trabalhos de remodelação em 1647 (ano do Compromisso) e em 1743. Entretanto, em 1639, o Bispo de Viseu, D. Dinis de Melo e Castro, doara 15000 reis a esta Misericórdia de Vouzela e igual quantia para Trancoso e Pinhel e ainda 8000 reis para Aguiar da Beira, Penalva e Fornos de Algodres. Com vários e destacados benfeitores ao longo da sua existência, importa citar alguns deles, tais como José Ribeiro Cardoso, D. Vitória Adelaide Seixas Loureiro e Barros, já referenciada, e Benjamim Rodrigues Costa. Uma palavra também é devida aos médicos Dr. Agostinho Fontes Pereira de Melo, Dr. José Rodrigues de Almeida Coutinho, Dr. António Simões, Dr. Miguel Lopes Ribeiro e Dr. Adelino Dias Arede. Tendo já abordada a questão das actuais instalações, devemos acentuar que sofreram grandes beneficiações em 1958, sendo Provedor o Dr. Guilherme Ferreira Coutinho. Por estes tempos, no dia 1 de Fevereiro de 1959, era inaugurado mais um novo Hospital, cuja adjudicação fora feita aos empreiteiros Guilherme José Joaquim Cosme e António Baptista da Silva, que vem a ser expropriado pelo Estado em Maio de 1976. No meio de toda a azáfama, em 1972, avança o Lar Nossa Senhora do Castelo, aparecendo, em 1976, o Jardim de Infância, a Creche e o ATL e, em 2002, a Clínica S. Frei Gil, já com o Provedor Eugénio Lopes da Silva Lobo, a iniciar as suas funções em Janeiro de 1980 onde ainda se mantém. Entretanto, surgem também o Centro de Dia, o Lar e outras valências. Com mais de quinhentos anos de uma intensa história, quanto fica por dizer! Deixamos aqui apenas, e tão só, uns ligeiros apontamentos de uma Instituição carregada de um ilustre passado, um bom presente e um futuro que se espera auspicioso. É isso que desejamos. Carlos Rodrigues, in “Noticias de Vouzela”, 7 Nov19

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Notas sobre a antiga Adega Cooperativa de Lafões

Adega III - III - Adega e Junta Nacional do Vinho em convívio nos anos cinquenta Nestas nossas conversas publicadas aqui no jornal “Notícias de Lafões”, as últimas têm andado à volta da vida da extinta Adega Cooperativa de Lafões, cuja sede, na Várzea, por lá se encontra de pé, mas apenas como memória museológica, ou nem isso. Perdida a batalha em defesa de seu futuro, um dia acabou, em morte lenta e em prolongada agonia. De nada valeram os esforços feitos e os chás quentes de mel com açúcar. Nem as sopas de cavalo cansado, naqueles tempos de aflição, fariam o milagre de a manter no exercício de suas valiosas funções. Perdeu-se, ingloriamente. Em busca de dados e informações sobre o seu passado, fomos encontrar mais alguns bons testemunhos num livro, editado em 1958, com um nome muito simples: “Lafões”, da autoria de Correia de Azevedo, estando disponíveis ainda meia dúzia de exemplares, sobretudo em Bibliotecas Municipais e outras. Dando uma panorâmica global desta Região, por concelhos e por freguesias, é um razoável ponto de partida para uma visão de conjunto, não obstante a sua simplicidade e algumas falhas notórias, fruto, quem sabe, do próprio estado da insuficiente investigação por essa altura. Sem falarmos em muitos outros aspectos de interesse, hoje tratamos apenas de vinhos e tudo quanto lhes diga respeito. Como bom alicerce para esta exposição, aí temos uma novidade de vulto: nessa época, S. Pedro do Sul era a sede da Delegação da Junta Nacional do Vinho, numa Brigada constituída pelos então Regentes Agrícolas Joaquim Casa Nova Morais Gradil, no posto de Chefe, e José Paulo Carvalho Rocha. Estava-lhes confiada uma extensa área com os concelhos de Oliveira de Frades, Vouzela, S. Pedro do Sul, Vila Nova de Paiva, Castro Daire, Tarouca, Moimenta da Beira, Sernancelhe e partes dos de Viseu, Lamego, Armamar, Tabuaço e S. João da Pesqueira. Com as funções principais de prestarem assistência técnica, de regularem o mercado do vinho e fiscalizarem as suas características legais e estado sanitário, não era pequena a sua tarefa, nem grandes os meios. Como suporte, possuíam um laboratório e até armazém próprio. Quanto à Adega, fazia-se uma referência ao seu alvará de 16 de Novembro de 1949, muito embora já estivesse legalmente em funções desde o dia 23 de Outubro desse mesmo ano, através do título de constituição emitido pelo Notário João Marques Guimarães. Sem grandes considerações, apenas se punham em evidência os corpos sociais dessa altura: Direcção – Dr. António Henriques de Sousa, D. Maria Luiza Saldanha, Dr. Fernando Marques do Nascimento Ferreira, Padre Jacinto Ferreira de Campos, Prof, Manuel Pereira da Silva e Joaquim Lourenço da Silva; Assembeia Geral – Dr. José Augusto de Almeida, Dr. Aloísio Pereira de Paiva e César Augusto da Costa Martins; Conselho Fiscal – Dr. António de Almeida Pinho Bandeira, Américo Correia de Paiva e Luís Marques Teixeira. Porque a Adega está intimamente relacionada com a agricultura, trazemos para estas páginas uma outra valência, a do Grémio da Lavoura, a ter iniciado funções em 15 de Abril de 1944, para prestar assistência técnica agrícola, por via da respectiva Delegação da Direcção-Geral, esta com sede em Vouzela, e Estação Agrária de Viseu. O apoio ao sector vinícola competia à atrás referida Delegação da JNV, o que prova a sua existência já nesta década. Em maquinaria, era posta ênfase em 4 semeadores, 1 grade de molas, 2 sachadores e 2 pulverizadores mecânicos ao dispor dos seus associados. Paralelamente, funcionava no âmbito deste Grémio a Associação de Seguro Mútuo de Gados, apenas para os bovinos, estando inscritos, em 31 de Dezembro de 1957, setenta e um elementos mutualistas, com 208 bovinos e um valor de 647200$00. Eram estes os responsáveis do Grémio: Direcção – D. Diogo Francisco de Almeida Azevedo e Vasconcelos, José Alexandre Henriques de Paiva Pinto de Sousa e Luís Marques Teixeira; Conselho Geral – Dr. Manuel Marques Teixeira, Dr. Francisco Manuel Cardoso Moniz, Manuel Pereira Guimarães e Arnaldo Lino Ribeiro dos Santos. Geria, no dia a dia, os destinos desta Instituição José Alexandre Henriques de Paiva. Citando-se neste livro o poeta sampedrense António Correia de Oliveira, em matéria de paisagem vinícola, assim a descrevia: “ ... Para norte (de S. Pedro do Sul), sucede a íngreme esacalonada de arretos, onde a videira se requebra em redeais de enforcado ou se entrelaça nas armações das latadas, dando a sensação, desde Abril a Setembro, de ciclópica cascata de esmeraldas, a cair lá do alto sobre o Rio (Vouga)... “. E de vinho se fez esta crónica, continuando a dar-e uma ideia do que foi a Adega Cooperativa de Lafões e serviços afins. Neste fim de ano de 2015, Boas Festas e Bom Ano Novo!... Carlos Rodrigues, in Notícias de Lafões

Comendador Manuel Fernandes Gomes, uma grande paixão pela educação....

Recordando o Comendador Manuel Fernandes Gomes Uma visão educativa regional de um cidadão de enorme coração Em meados do século XX, um conterrâneo lafonense, que fazia fortuna no Brasil, lembrou-se de enxamear as escolas desta nossa zona de boa vontade, muitas obras e livros. Estamos a falar do Comendador Manuel Fernandes Gomes, que deixou bem vincado o seu nome por um lado e por outro. Andando nós sempre a aprender, há dias vimos que, em Ventosa, tal acontece na parede grande do seu antigo estabelecimento de ensino, inaugurado no ano de 1954, numa boa parceria entre o então MOP – DCEMN e este cidadão de vistas largas e duma dedicação sem limites a estas causas. Com origens nos concelhos de Oliveira de Frades e Sever do Vouga, espalhou as suas ofertas ainda pelos de Vouzela e S. Pedro do Sul. Sem sermos exaustivos na listagem que vamos fazer, neste mesmo jornal, Notícias de Vouzela, há muitas notícias a seu respeito e sempre a falarem de mais uma ou outra oferta. Deste modo, numa delas, a 1 de Março de 1960, era Sejães que recebia um prémio de 500$00 doado aos seus professores, acrescentado de mais 25$00 por aluno. Refere-se ainda que Santa Cruz da Trapa teve aquecimento para as suas quatro salas fruto da sua imensa generosidade. Por sua vez, em 1967, o Prémio Comendador Manuel Fernandes Gomes contemplou estas mesmas escolas e a de Reigoso. A mais vistosa de suas obras é, porém, aquela que se encontra em Oliveira de Frades em imponente edifício que se lhe ficou a dever quase totalmente. Como se escreve na monografia “Oliveira de Frades – António Nabais, Carlos Rodrigues e Manuel Martinho, edição municipal de 1991”, foi inaugurado no dia 25 de Maio de 1958, em domingo de Feira Franca, em cerimónia presidida pelo Governador Civil de Viseu, Dr. Marques Teixeira, com a actuação da Banda de Música local. Nesta ocasião, o Presidente da Câmara Municipal, Dr. Diamantino Bastos, não se esqueceu de agradecer o seu contributo especial. Num processo que durou alguns anos, os preparativos iniciaram-se em 1955, com o anúncio da construção de uma escola nova com 3 lugares, mediante resolução do Conselho de Ministros, sendo que os trabalhos apenas começaram em 1957, depois de algumas discussões que tiveram a ver com os respectivos planos municipais. Com funções educativas até este século XXI, está agora desactivado, mas destinado a outras missões, como aconteceu nos últimos tempos, ao ter ali acolhido a Associação dos Bombeiros Voluntários, enquanto o seu Quartel andou em obras, desde 1918. Não se ficaram por aqui as acções concretas deste benemérito. Num gesto cultural e educativo de grande alcance, veio a dotar todas as escolas de Lafões de uma biblioteca escolar, em armários próprios e com uma colecção de livros que abrangiam várias áreas do saber e da ciência desses tempos, não esquecendo o vasto campo da literatura. Com uma plaquinha a identificar o seu benemérito, têm vindo a perdurar desde esses anos até hoje, sobretudo aquelas que foram resistindo à erosão dos tempos e do uso. Também as cantinas, muitas delas, tiveram o seu apoio. Por tudo isto, o nome do Comendador Manuel Fernandes Gomes aparece em muitas de nossas terras e recordá-lo é apenas mais um acto de reconhecimento e homenagem. Hoje, aqui, nestas páginas, é isso que estamos a fazer, porque não esquecemos, nunca, os muitos livros que dele lemos, anos a fio. Carlos Rodrigues, in Notícias de Vouzela, Ago19

Morais Carvalho, um grande Homem de Vouzela

Conselheiro Morais (Moraes) de Carvalho Em rescaldo eleitoral, falemos de um parlamentar vouzelense Ainda estamos em maré de apreciação dos resultados das útimas eleições legislativas, realizadas no passado dia 6, domingo. Não é, porém, desse acto que vamos falar, preferindo recuar no tempo, mais de um século, para encontrarmos o fio condutor destas linhas: tentaremos retratar uma ilustre figura de Vouzela, o Conselheiro Morais Carvalho, antigo deputado, par do reino (1862, por carta régia), ministro e muitas outras coisas mais. Foi tão impactante a sua acção, que, tendo morrido em 1878, quatro anos depois já tinha erguida a sua estátua à beira da Capela de S. Frei Gil, onde ainda hoje se encontra, imponente, a marcar a sua presença. É alargadíssima a sua biografia, que tem páginas de ouro inscritas em Vouzela, na Galiza, na Inglaterra, no Brasil, em Lisboa e muitas outras partes do nosso mundo de então. De seu nome completo, Alberto António de Moraes Carvalho, nasceu nesta vila em 22 de Novembro de 1801 e faleceu em Lisboa no dia 15 de Abril de 1878, sendo filho de Luís de Moraes Carvalho e de D. Joaquina Rosa de Moraes Torres. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, começou por ser advogado na sua terra natal, mas não por muito tempo. Decorria o ano de 1828 quando aderiu à causa liberal, que lhe trouxe alguns dissabores, como o facto de ter emigrado para a Galiza e daqui para Inglaterra (Palmouth). Não satisfeito com o rumo da sua vida, atravessou o Atlântico e fixou-se no Brasil. Dotado de bons conhecimento jurídicos e boa postura social, aí continuou a exercer a sua profissão e fácil lhe foi singrar naquelas terras. Logo, em 1830, se aventurou, com sucesso, a escrever o “Índice Alfabético das leis do Brasil ( que se tornara independente, note-se, em 1822) em continuação do repositório geral de Manuel Fernandes Tomás”, entre outras obras que se tornaram ali verdadeiros compêndios de direito. Homem de sonhos e de mil projectos, em 1848, regressa a Portugal, descansa algum tempo em Vouzela, partindo, depois, para Lisboa. Recomeça ali uma carreira meteórica ao mais alto nível. Vereador eleito da Câmara Municipal da capital, em 1852/1853, foi escolhido por seus pares para seu Presidente. Fez ainda parte da Junta Geral do Distrito, tendo sido também Governador Civi e Conselheiro do Tribunal de Contas. Nas Cortes, exerce, em várias legislaturas (eis a razão destas notas nesta altura de 2019...) o cargo de deputado. Sempre a subir, nos governos do Duque de Loulé e do Marquês de Sá da Bandeira, torna-se ministro do Negócios Eclesiásticos. Casado com D. Maria Soares de Moraes, foram seus filhos: Adriano Alberto de Moraes Carvalho, Alberto António (também advogado e figura grada das lides políticas, incluindo o facto de ter sido deputado, ministro e par do reino...), Leopoldo Augusto, Amélia Elvira, Maria Georgina e Amélia Eugénia. No vasto rol de suas obras, vêem-se ainda o “Aforismo e pensamentos morais, religiosos, políticos e filosóficos”, de 1850, a “Observação sobre a primeira parte do Código Civil Português na legislação”, 1853 e “ Expropriação por utilidade pública”, 1878. Foi sócio honorário do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, sócio correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa, do Instituto Histórico de França, depositário da Ordem da Rosa, Brasil, e Comendador da Ordem de Cristo. Recebeu a Grande Cruz de Leopoldo da Bélgica. A sua estátua, na vila de Vouzela, foi inaugurada em 1882, sendo seus autores (como se relata no NV de 1/1/96, de Miguel Coutinho), Fernando Correia da Silva e Francisco António Raposo. Em Outubro de 2019, trazer aqui este exemplo faz-nos crescer água na boca e mostrar o nosso reconhecimento e gratidão por quem tão bem soube prestigiar as nossas terras.... Carlos Rodrigues, in Notícias de Vouzela, Out19

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Conferência de S. Vicente de Paulo em Oliveira de Frades....

O apoio social também na mão das Conferências de S. Vicente de Paulo Nascidas em França no ano de 1833, numa iniciativa de Antoine Fréderic Ozaman e Emmanuel Baily, as Conferências de S. Vicente de Paulo rapidamente se foram espalhando por muitos outros locais. Vouzela e Oliveira de Frades são disso dois bons exemplos. Ao vasculharmos, por exemplo, as páginas deste jornal, muitas referências encontraremos sobre uma boa parceria entre essas duas entidades, Vouzela e o seu NV, que deu fecundos frutos, sobretudo no campo da construção de habitações sociais. Por hoje, vamos, no entanto, focar-nos no seu papel e importância no concelho de Oliveira de Frades, para falarmos da sua Conferência, que viu a luz do dia (tendo em conta a informação a que tivemos acesso e que pode ainda vir a ser alterada) em Janeiro de 1939, tendo, portanto, a bonita idade de 80 anos. Constituída pelos Confrades subscritores e outros apoiantes, nos respectivos livros de actas, que nos aparecem em força a partir de 1941, em doloroso período da II Grande Guerra Mundial, se dá nota do seu modo de funcionamento e dos procedimentos seguidos. Assim, ficámos a saber que, em cada reunião regular semanal realizada na Residência Paroquial, se procedia a uma colecta entre todos os elementos presentes, de modo a fazerem frente às despesas que iam surgindo, prática que, ainda em 2019, às quintas-feiras, se mantém inalterável. No início, cada confrade cuidava do seu “pobrezinho”, em apoios diversos, desde roupa a alimentação. Numa lista que encontrámos, podemos referir algumas das pessoas que deram vida a esta instituição, nomeadamente, Diamantino Pires de Bastos, José Pinto Ferraz, Mário Henriques de Oliveira e Silva, José Alexandre M. Pereira, Amadeu da Costa Azevedo, José Luís Martins, Bernardino Rodrigues da Silva, Joaquim da Silva Moreira, Francisco da Silva Moreira, Fausto Pereira de Azevedo Laranjeira, Firmino Laranjeira (?), Augusto Fernandes Antunes, Aires Azevedo, António Rodrigues Almeida, João Pereira, acrescentando-se, em nomes manuscritos, ainda Armando Rodrigues Ferreira, Agostinho Tavares Pereira Gomes, Vasco Araújo, Manuel Rodrigues, Serafim Portugal, Américo Fernandes, Augusto Luís Rodrigues e Manuel Lopes Martinho (1952). Em linhas gerais, cada reunião começava sempre com as orações do costume e a leitura de textos diversos, em escolhas do Assistente Eclesiástico, o pároco local, sendo o primeiro o Padre José Tavares Baptista, que por ali se manteve durante cerca de duas décadas. Acompanhavam-no em posições de “chefia” um presidente, um secretário e, talvez, um tesoureiro, como acontece na actualidade. Entre as funções desempenhadas pelos elementos da Conferência, uma delas tinha a ver com a operação de levar aos “entrevados” (1942) o Santíssimo Sacramento da Eucaristia. Um ano depois, em Novembro de 1943, apontavam-se estes artigos de vestuário: 7 calças, 3 vestidos, 2 saias, 3 camisas, 3 blusas, e lenço, 1 avental e 2 cobertores para distribuição pelos carenciados. Em 1946, fala-se na festa de S. Vicente de Paula no dia 19 de Julho, com missa solene cantada pelos confrades. Na angariação de fundos, em 1948, conseguem-se 500$00 vindos da Junta de Província da Beira, mais 300$00 da Associação Recreio e Instrução da vila de Oliveira de Frades, 100$00 do Grémio do Comércio de Viseu e da Comissão de Festas do Santíssimo uma outra verba. Também a JOCF contribuía a seu modo, assim como outras entidades, designadamente a Confraria de S. Miguel de Travanca, com 100$00 doados em 1946 e a Comissão Municipal de Assistência, em 1953, a fazer chegar um montante de 500$00. Com bens na Remolha e no Olheirão, em 1953, são pagos ao pedreiro que laborava na casa do Bairro Vicentino a quantia de 1998$00. Anos depois, em 1959, procede-se à liquidação de uma urna, no valor de 295$40, destinada ao pai de um pobre. Em 1960, aparece uma listagem referente à distribuição de broa, ano em que se agradecem 100 malgas com vista ao programa da Sopa dos Pobres, obra acabada de criar. Ainda por esta altura, se pede apoio para a compra de uma cinta medicinal. Num papel avulso, fala-se na casa da Remolha e na custo de materiais e trabalho a subirem aos 8350$00. Nos anos que correm, sendo seu Assistente Eclesiástico o Padre Manuel Fernandes e Presidente o Dr. José Figueirinhas, opera-se na área do apoio em material médico, cadeiras e camas, a partir de uma boa cooperação tida com Fernando Almeida, Alemanha, e em parcerias estabelecidas localmente, assim como se colabora, entre outras missões, com o Banco Alimentar. Com a questão da Remolha solucionada, tendo sido alienado o património ali existente, pensa-se em prosseguir a potenciação do espaço do Olheirão, que até já tem sido objecto de negociações, de modo a ter um aproveitamento condigno. Na calha e já com projecto, tem-se em vista dotar a Conferência de S. Vicente de Paulo de uma sede própria num edifício em construção na área do Complexo Paroquial, depois do compromisso estabelecido com os Escuteiros. Com 80 anos de vida, esta Instituição continua a realizar os objectivos e missões para que foi pensada e criada, ainda que nem sempre sejam muito visíveis... Carlos Rodrigues, in Notícias de Vouzela, Out19

João Ramalho, de Vouzela para o Brasil....

João Ramalho, um contributo para a mestiçagem e colonização do Brasil I – INTRODUÇÃO Na imensidão brasileira, descobrem-se, ao longo dos tempos, várias fases na sua ocupação e colonização. A antecedê-las, existem povos que, segundo a nova história, têm direito a ser vistos como portadores duma cultura e duma existência. Nesta medida, deixaram de ser entidades antropológicas, apenas, para se tornarem realidade sociológica. Estamos a referir-nos aos índios que, na visão de Caminha e no seu relato, assistiram à primeira abordagem feita pelos portugueses àquele território. Muito embora subsistam algumas dúvidas no que diz respeito ao seu descobrimento, optamos por não enveredar por essa polémica. Em contrapartida, passamos à ideia de que se tratou dum achamento*, Cabendo à frota de Pedro Álvares Cabral essa chegada e a respectiva divulgação em 1500. Com os olhos postos em África e, sobretudo, na Índia e Oriente, em geral, de início o Brasil não suscitou um interesse por aí além. De acordo com esta perspectiva, citamos Joaquim Veríssimo Serrão: “ As primeiras viagens tinham por fim a exploração do pau-Brasil e o contacto com os aborígenes que viviam em plena civilização do mel, alimentando-se da pesca e dos produtos silvestres….” (História de Portugal – 1495 – 1580- Volume III, Edições Verbo, Lisboa, 1980, P. 130) Talvez se deva a esta constatação, que decorre um pouco da *Carta de Caminha, essa política de deixar de lado, nesses tempos, uma terra que se veio a revelar, mais tarde, de grandes recursos. Apoiada numa estratégia comercial, a coroa portuguesa mostrou assim a sua indisponibilidade para dar mais atenção a este espaço. Limitou-se, nas primeiras décadas de 1500, a acções esporádicas. “ … Ora como assim seja que esta terra d’além é tão grande e desta parte d’aquem temos Europa, África e Ásia, manifesto é que o mar oceano é metido no meio destas duas terras…” (Coutinho, J. – 1500, achamento do Brasil – Edição A voz de Paço de Arcos – 2000, Abril). Era desta forma que então se via o Brasil: um mundo novo lá longe, do outro lado do mar, que tinha de ser, um dia, aproveitado, mas não naqueles momentos e naqueles termos. No entanto, a par dos avanços para o oriente, não se descura totalmente aquela área americana. Assim, para ali seguem em viagens diversas as embarcações saídas do continente europeu. Foi numa dessas idas que, em data incerta, partiu João Ramalho, personagem a abordar neste trabalho. Com muitos dados ainda obscuros na sua vida, variadíssimas são as referências encontradas, tendo-o como protagonista dos primórdios da presença portuguesa no Planalto de Piratininga. Numa associação à temática estudada, em que se falou de mestiçagem e luso- tropicalismo, entre muitas outras correntes e aspectos, entendemos inserir João Ramalho na primeira das categorias assinaladas. Por outro lado, aponta-se-lhe ainda um papel de algum destaque em termos de colonização na zona onde se radicou e nos espaços explorados pelo movimento dos bandeirantes, em que muito provavelmente teve parte activa. Diz-nos Gilberto Freyre, que “ … No Sul, onde aliás já se encontravam, prosperando, à custa do próprio esforço, povoadores do tipo de Ramalho e do bacharel de Cananeia, com grande progenie mestiça e centenas de escravos ao seu serviço, a colónia de S. Vicente foi oficialmente fundada em 1532…” (Casa Grande e Senzala – Edição Livros do Brasil – Lisboa, 2003). Esta é mais uma prova de que J. Ramalho se tornou personalidade importante por aquelas paragens. Só assim se justificam as sucessivas alusões que lhe são dirigidas, como veremos seguidamente. Ao termos em conta estes dados, cingir-nos-emos à época temporal do século XVI e às relações estabelecidas com os ameríndios tupiniquins, comunidade em que se veio a incluir. Recebido positivamente, integra-se na sua própria vivência, aproveitando essa oportunidade para também exercer a sua própria influência, misturando-se desse modo as duas culturas – a local e a ocidental, não sem que deixasse de haver todos os excessos decorrentes de um processo colonizador. Nota-se tudo isso até no texto de Freyre, quando aborda o velho problema da escravatura. Com a Casa Grande e Senzala podem estabelecer-se alguns pontos de contacto entre o seu conteúdo e a vida de J. Ramalho. Aliás, esta evidência não é de estranhar-se, tal o destaque que aquele autor teve na defesa da mestiçagem como um dos suportes da história e da afirmação do povo brasileiro, não obstante as vozes que contra ele se vieram a levantar. “ …Bastaria a conservação do nome do povoado que fundou( Santo André da Borda do Campo) e cujo paço municipal e cujas defesas custeou do seu bolso quando foi elevada a vila, em 8 de Abril de 1553, para lhe perpetuar o nome, mas é verdade que a sua vida tem mais amplo e profundo significado. É que a personalidade de João Ramalho é como que inseparável da idiossincrasia paulista e, porventura, também da própria fundação de S. Paulo.”( Figueiredo, C. J. Moreira – João Ramalho, patriarca dos bandeirantes e filho de Vouzela - um grande português no povoamento e conquista do sertão brasileiro – Separata da Revista Beira – Alta – Viseu, 1954, P 6). Este é o teor do prefácio de Joaquim de Carvalho, num tom que, com alguma dose de emotividade, não deixa de pôr em relevo a acção desenvolvida por este cidadão português. Para alicerçar estas palavras, alude-se à inauguração, no dia 10 de Maio de 1953, da exposição Industrial de Santo André da Borda do Campo, comemorativa do quarto centenário da municipalidade desta vila, ano em que também foi erguido um monumento em sua homenagem, precisamente no dia 8 de Abril desse mesmo ano. Porque, na última citação se incide especialmente na faceta de bandeirante, apresentamos um excerto em que a mestiçagem cultural foi colocada em plano elevado por Caio C. Boschi, desta forma: “ Registre-se a abordagem da temática, por exemplo, na trilogia maior de Gilberto Freyre, relativa à análise da sociedade brasileira, sobretudo em Casa Grande E Senzala…( Estamos perante uma)…noção cuja complexidade pode levar ao paradoxo, como o fez Fernando Novais, que a miscigenação foi ao mesmo tempo um canal de aproximação e uma forma de dominação, um espaço de amanciamento e um território de enrijecimento* do sistema” ( Ventura, Maria da Graça A. Mateus – Coordenação – Os espaços de sociabilidade na Ibero – América, séculos XVI-XIX, Edições Colibri, Lisboa, 2004, P. 19) Cabe aqui incluir uma nota explicativa quanto à metodologia seguida: para as fontes, apoiar-nos-emos na história, antropologia, sociologia e literatura, condições preenchidas, entre outros, por Gilberto Freyre; para o discurso, usaremos a língua actual, nas duas versões – a de Portugal e a do Brasil, tal como já demos a perceber. Quando for necessário e oportuno, deitaremos mão a formas mais arcaicas, para não trairmos os suportes encontrados. Por se relacionarem com os métodos adoptados para se integrarem no mundo dos índios, não deixaremos de lado Diogo Álvares, o *Caramuru. Desta forma, a vida de um e de outro têm grandes pontos de união, não obstante as léguas que os separavam naquele mar de terra brasileira. O mesmo se diga de Cosme Fernandes Sem respostas, colocamos no ar esta questão: será a mestiçagem uma utopia, uma promessa de paz ou o encobrimento ideológico das diferenças? Como a dúvida ainda permanece, nada mais acrescentaremos. Na mata que vamos desbravar podem, no entanto, acender-se algumas velas que nos ajudem um pouco nestas matérias. Se assim for, tanto melhor. II – Breves notas biográficas Com uma vida ainda envolta em nuvens obscuras, João Ramalho apresenta-nos uma certeza: nascido em Vouzela, parte para o Brasil, aí passa quase a totalidade de sua vida, até à morte, já em S. Paulo por volta de 1580- 1582. Quanto à data do seu nascimento, estamos perante uma incógnita que nem Moreira de Figueiredo foi capaz de desvendar. Apesar de ter vasculhado “… todos os livros de nascimentos, casamentos e óbitos dos antigos Arquivos Paroquiais de Vouzela e de outras freguesias circunvizinhas …desde 1557…( e ainda ) … grossos volumes dos Cartórios Notariais da mesma região lafonense….” Idem) nada mais conseguiu descobrir. Já o mesmo se não pode dizer da sua filiação, que deixou rastos mais ou menos sabidos: foram seus pais João Velho Maldonado e Catarina Afonso de Valbode. Tem-se conhecimento ainda que casou com Catarina Fernandes das Vacas, como “ consta do seu testamento, feito pelo tabelião Lourenço Vaz em S. Paulo de Piratininga e pode ler-se no caderno rubricado por João Soares, título Abril, folhas 10, 1580 “ ( Idem, P18). Uma sua confissão relatada no livro * 1500 – achamento do Brasil*, de que já enigmáticas pistas, mas abre um pouco a ponta do véu. Diz-nos ele então: “ Já fiz 87 anos…. Sem prévia vivência das terras do Brasil, não conseguireis entender os volteios da minha vida. Ireis ficar escandalizado como escandalizado ficou em tempos o Padre Manuel da Nóbrega, o fundador desta vila de S. Paulo… Ramalho é a minha alcunha por causa da minha barba, que foi sempre ramalhuda. Maldonado é que é o apelido de meu pai… (p 59-60). Continua: “… Em Vouzela, onde nasci, despeço-me de Catarina, a minha esposa, e parto para Lisboa…Abalo de Vouzela, coração apertadinho…Suponho e bem que nunca mais tornarei a ver a Catarina, pois o meu destino é o Brasil tão distante…Arribo a esta costa do Brasil em 1511, talvez em 12 ou 13, não sei ao certo…Bem acolhido sou por António Rodrigues, o degredado português a quem todos chamam ou chamavam o bacharel de Cananeia e que há muito tempo vive entre os índios tupiniquins da beira da praia… (ID) Depois de afirmar que recebeu mulher nova, ali se lê que seguiu o ditado “ em Roma sê romano e confesso que, ente os índios, índio fui” (Id.P61). Por esse facto e de acordo com o seu próprio relato “… um dia baixou à praia Potira… Não sei por que os portugueses insistem em chamá-la de Bartira… Potira é filha de Tibiriçá, cacique de Inhapuambuçu, a principal taba ou aldeamento dos campos de Piratininga… Adopta-me e dá-me Potira em casamento… De Potira e das outras tenho muitos filhos e filhas… Caribocas como dizem os índios… mamelucos como dizem os portugueses…” ( Outros temas são abordados nesta confissão (P 61-62). Alguns deles vão servir-nos para ilustrar alguns aspectos da sua longa e atribulada vida. Perpassa destas linhas, descontando naturais excessos, um tom que cheira a Freud, que parece saído duma cama ou marquise de psiquiatra ou consultório de psicólogo. São palavras sentidas e por isso merecem a nossa consideração. Para Afonso Taunay, que escreveu sobre esta personagem, representa uma acção “ ímpar nos anais do apossamento luso primitivo da região meridional, da qual foi o agente, o mais antigo, senão o de máximo relevo e eficiência… Foi o posto avançado ramalhense do cimo da Serra o centro de intenso caldeamento luso- brasílico, que garantiu a subsistência das duas vilas portuárias da vila vicentina… ( Figueiredo , P !9) Com muitos filhos, o que se deduz dos documentos encontrados e da sua própria “ confissão”, conhece-se o nome de alguns deles: André, Joaquim, Margarida, Victório; Marcos, Joana, Jordão, todos com o apelido de Ramalho, acrescentando-se ainda António de Macedo e António Quaresma. Para completarmos esta resenha biográfica, socorremo-nos das datas e factos 1493(?) – Nascimento, devido aos 87 anos confessados em 1580. 1511 – 1513 – Chegada ao Brasil 1514 (?) ------ Casamento com Potira 1532 ---------- Colaboração com Martim Afonso de Sousa na fundação de S. Vicente 1549---------- Governo Geral de Tomé de Sousa ------- Eventual excomunhão “ por andar amancebado “ ( Crónica do Brasil, Lº I nº 77 ------ Nomeação para guarda- mor ou fronteiro do campo de Piratininga 1552 -------- Inauguração do Colégio pelo P.e Manuel da Nóbrega ------ Reitor, P.e Manuel de Paiva – Águeda 1553 --------- Cooperação com o P.e Manuel da Nóbrega, jesuíta, na construção da povoação de S. Paulo de Piratininga, talvez algo contrariado, tendo em conta as posições que, posteriormente, veio a tomar. A este propósito e apenas como achega, acrescente-se que um dos fundadores da Companhia de Jesus, o P.e Simão Rodrigues, era da mesma terra de J. Ramalho: Vouzela -------------- Inauguração de um segundo Colégio 1554 ------- Nomeação, após votação, para Capitão – Mor de Piratininga ---- Defesa contra assalto dos Tamoios. 1557/58--- Eleição para vereador da Câmara de Santo André. 1560 ------ Extinção da vila de Santo André pelo Governador Mem de Sá, seguindo-se-lhe a promoção de S. Paulo a vila, provavelmente com desgosto do nosso protagonista. 1562/63--- Novo ataque dos Tamoios, desta vez a S. Paulo. 1564 ------ Eleição e recusa do cargo de vereador de S. Paulo. ---- Escolha de um lugar no Vale de Paraíba para aí viver. 1580 ------ Testamento- “ Confissão”. 1580/82--- Morte, possivelmnete em S. Paulo 1595 ---- Primeira gramática Tupi, da autoria do P.e José de Anchieta. **** 1501/ 03 ----- Primeiras expedições para conhecer o contorno marítimo. 1531 ---------- Chegada de Martim Afonso de Sousa a Pernambuco, antes de se instalar no Planalto de Piratininga. 1532 --------- Ataque dos corsários franceses. 1534 --------- Divisão do território brasileiro em capitanias hereditárias. 1552 --------- Criação do Bispado do Brasil III – Uma vida em terras brasileiras No seguimento da resenha anterior, que omite muitas das acções ou vivências de João Ramalho, descobre-se, facilmente, uma vida recheada de episódios. Sem podermos dizer que todos eles são verídicos, porque, em muitos casos, é difícil distinguir a realidade da ficção ou até do boato e da lenda – e estas personagens são muito propícias a estas leituras – não deixa de ser verdade que João Ramalho deu um contributo importante à história desses primeiros tempos da permanência de portugueses no Brasil. A confirmar tudo isto, vem, uma vez mais, Joaquim Veríssimo Serrão registar que se tem “ … notícias de alguns degredados que ali se fixaram para conviver com os nativos e de homens sedentos de aventura que ficaram ligados às raízes do Brasil. Tais os casos de Diogo Álvares, natural de Viana do Castelo, que veio a tornar-se o famoso Caramuru* e de João Ramalho, oriundo de Vouzela, que se fixou na região de Piratiniga e assistiu mais tarde ao nascimento de S. Paulo” P. 130. Se estas são referências históricas, anote-se aquilo que foi escrito por Gilberto Freyre, a respeito destes primeiros tempos da estada portuguesa no Brasil : “ Eliminar os primeiros cinquenta anos – como escreve Azevedo Amaral – equivale a suprimir um elemento básico da formação nacional (brasileira)” – Idem p: 31. e acrescenta: “ O certo é que os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam”. Para aqueloutro historiador, encaixam-se, ao que vimos, estes iniciadores do fenómeno da emigração na categoria de degredados ou aventureiros, o que, no primeiro caso, não pode ter-se como absolutamente certo, porque são desconhecidas as razões que o levaram ao Brasil. Quanto ao seu presumível aventureirismo, esse demonstra-se facilmente. Alguém veio trazer mais luz, destinada a desvendar mais um pouco esta meada e este enigma. É Washington Luís que, num documento, indica que possivelmente alguns delitos cometidos na corte, por onde passou, levaram a este destino. Com a intenção de incluirmos outras ideias, de modo a podermos analisar melhor as circunstâncias e as acções por si desenvolvidas, descrevemos mais uns pormenores: “ …. Em 22 de Janeiro de 1532, a armada de Martim Afonso de Sousa chegou à ilha de S. Vicente, onde funda a primeira povoação lusitana… Na região se encontravam distribuídos os lançados* que haviam criado grandes laços familiares no seio do grupo Tupiniquim: João Ramalho era genro do cacique Tibiriçá e António Rodrigues, do Chefe Piquiróbi…” (Couto, Jorge – Portugal y la construcción de Brasil – Colecciones Mapfre, P 254,257,366, citando ainda António Ramalho de Faria – Acerca do bandeirante João Ramalho – Portugaliae Histórica, Lisboa, P. 90/110) Nesta mesma obra é feita uma alusão ao “ papel importante nas relações pacíficas entre os indígenas e os portugueses”, assim como a Martim Afonso de Sousa, a Diogo Álvares, o Caramuru* da Baía, que ficou incumbido de aí realizar “ experiências agrárias”. Por sua vez, João Ramalho e António Rodrigues “ foram os pioneiros da mestiçagem no Planalto de Piratininga, na opinião deste mesmo autor A propósito da miscigenação, lê-se no Dicionário de História de Portugal (DHP), Direcção de Joel Serrão, Volume I, Livraria Figueirinhas, Porto P. 373 e ss ) que os índios “ não têm uma cultura homogénea” … “ nem no litoral, terra dos Tupis, com costumes idênticos, mas com intensas rivalidades. Já no interior, encontram-se os Tapuias, inimigos dos primeiros e desconhecedores da lavoura, da cerâmica e da fiação do algodão”. Numa dedução lógica, estas últimas características notavam-se então nos Tupis, que dividiam assim as funções, em traços gerais: guerra, caça e pesca incumbem aos homens, ao passo que as lides agrícolas estavam confiadas às mulheres. No que toca à mestiçagem*, ali se refere concretamente que “ os povoadores brancos cruzaram largamente com a mulher indígena e o produto dessa união o mamaluco* ( mameluco?) – veio a tornar-se – precioso auxiliar dos portugueses para a ocupação do Brasil”, até nas futuras bandeiras. Tal como J. Ramalho, também Diogo Álvares, que recebe a índia Paraguaçu, tem papel de destaque neste movimento de encontro português e ameríndios. Mas, por se encontrar na zona da capital, talvez a sua vida tenha acabado por ser mais conhecida, sobretudo depois do episódio de que resultou a sua alcunha de Caramuru*. Se muitas e concretas fontes nos falam do retrato da mestiçagem, mais escassas são aquelas que cimentem os seus contributos como bandeirantes, não obstante as múltiplas citações genéricas. Uma delas podemos encontrá-la em Júlio Dantas, quando enaltece aquele que “ é o Patriarca das Bandeiras prodigiosas, anexadoras de milhões de quilómetros quadrados castelhanos à fé do Tratado (Tordesilhas)” – Maria Ester Vargas – João Ramalho, Bandeirante de Lafões – Viseu, 1994. Diz-nos ainda Ester Vargas que a “ epopeia dos bandeirantes foi a melhor forma que os portugueses encontraram para explorar e unir grande parte do que é hoje a nação brasileira, tendo sido também, obviamente, uma tarefa economicamente estimulante”. Se no Planalto de Piratininga este português se evidenciou, talvez mais que nas Bandeiras, já em Portugal lança-se a sugestão de que fora cavaleiro e guarda- mor do Rei, facto que mais dúvidas nos traz relativamente ao seu nascimento, em termos de data, e consequente partida para o Brasil. Uma certeza, porém, parece evidente: forçado, requisitado ou voluntário, J. Ramalho deixou a Metrópole e abalou para um dos novos mundos entretanto dados a conhecer ao Ocidente. Aí se fixou e não passou despercebido, antes pelo contrário. Ao projectar-se para o futuro, é sinal de que algo produziu e aquilo que dele nos chega prova isso mesmo. Em J. Ramalho assentam bem as características assinaladas na essência do português por Gilberto Freyre: aclimatação, miscigenação e miscibilidade “ e gente mais flutuante que a portuguesa dificilmente se imagina” (G.F.). se não fosse essa disposição colectiva e, neste caso pessoal, nunca este homem se daria a conhecer e a vir a ser aceite pelos índios, nem se converteria em parte duma de suas comunidades. Confirma-o ele próprio: no meio deles, “ índio fui” Possuidor duma cultura prática acima da média dos emigrantes do seu tempo, até pela sua eventual passagem pela corte, fácil lhe foi esse encontro e a capitalização de simpatia. Estamos em crer que o não fez apenas por razões desobrevivência nem por instintos amorosos: Á sua longa permanência no Brasil devem associar-se, provavelmente, outros objectivos: recebendo, quis dar e daí que a cristianização operada possa inserir-se numa estratégia previamente delineada, não sendo líquido pôr-se de parte hipotéticas pressões recebidas das entidades religiosas, que tanto o criticaram. Mas como declara novamente Caio Boschi, a páginas 20, “ Na Colónia não houve simples reprodução das formas e dos espaços de sociabilidade vividos na Metrópole, ainda que nela, comprensivelmente, inspirados. Na América, as transplantações reclamaram e adquiriram cor local* e, em razão, remodelaram-se, sem que aqui se esteja fazendo abstracção das manifestações que emergiram inovadoramente no outro lado do Atlântico”( Id.). Ao pararmos agora um pouco no Planalto de Piratiniga, deparamos, de imediato, com duas situações aparentemente contraditórias: por um lado, apresenta-se-nos um João Ramalho em convívio ameno com os índios, servindo de mediador, evitando conflitos entre os seus companheiros e os recém – chegados homens de Martim Afonso de Sousa (1532); por outro, assistimos ao seu trabalho vigoroso na criação de novas localidades, per si*, (Santo André da Borda do Campo) e em parceria com M.A. Sousa quanto a S. Vicente, para, algum tempo depois, dar o seu apoio à própria fundação de S. Paulo. De notar que aqui ainda são suscitadas muitas dúvidas a esse respeito, que se adensam com a sua recusa da aceitação do cargo de vereador (1564). Que factos originaram tal decisão? Que descontentamento dele se apoderou? Seria tudo isso uma reacção à perda de sua antiga terra para dar lugar a esse novo povoado ou mesmo à sua desclassificação? No presente são mais os pontos fechados que as janelas abertas e, no âmbito deste trabalho, difícil nos é apurar o cerne destas questões, apesar de ele ter referido que, para isso, já tinha 70 anos… Mas é a Santo André que vamos voltar, apresentando a descrição duma de suas actas e outros aspectos, que entendemos dignos de menção: Acta – “ Aos outo dyas do mês de Fevereiro da dyta era asyma escryta se ajuntaram hos ofysyaes da caza do cõselho aõde derão juram.toa symão Jorge e a João Ramalho a saber a a João Ramalho de vereador ea symão de juyz ordinayro desta dyta villa e llogo perãonte mym lhe foy dado jur~m.to dos sãotos avãogelhos em que puzerão a mão que bem e verdadeyram.te e cõ sãs cõsyensya fação seus ofysyos seg~udo o sôr Ds lhe der a emt~eder em que premeterão faze verdade como dyto tenho e o asynarão todos aquy. Eu Dyoguo fiz escryvão da câmara ho escrevy. E o dyto juram.to foy dado em esta câmara e casa do cõselho e o verador f.co Álvaro enes e o asynarão como dyto tenho. Eu sobredito que ho escrevy – Simão Jorge – Jº ) Ramalho. Álvaro Annes” (Figueiredo,1954, p.56). Em complemento, descrevem-se alguns cargos públicos do Município de Santo André, desta forma: 1555 – Juízes: Paulo Proença, Francisco Alves, António Cubas Vereador: Garcia Rodrigues Procurador do Concelho- João Fernandes, Álvaro Annes Escrivão: Gaspar Nogueira Almotacés: João Pires Gago, Álvaro Annes, António Cubas. Alcaide: Francisco Alves, João Galego, Baltazar Nunes Aferidor: João Rodrigues 1556 (…) Rendeiro – João Galego Capitão e alcaide- mor – João Ramalho 1557(…) Porteiro – João Galego Alcaide- mor – João Ramalho Como tudo leva a crer, trata-se praticamente de gente portuguesa, mas não são de excluir-se alguns nomes de índios, dada a transformação que nessa matéria por via do batismo se operou. Perdem-se os nomes de origem, adoptam-se os cristãos. Outro tema a destacar relaciona-se com a organização acima esquematizada, que é uma espécie de decalque do figurino do municipalismo português dessa época, sector que a nossa personagem talvez conhecesse, ainda que pelo menos em teoria. São estas “ herdeiras das vereações ibéricas” (Nelson Saldanha – História das ideias políticas no Brasil- Univ Federal de Pernambuco, Recife, 1968, p. 41). Ao passar à história como Patriarca dos Bandeirantes, vislumbram-se sinais de bastante relevância nessa penetração pelo interior dos sertões brasileiros. Esta designação pode ter a ver com um destes dois aspectos ou ambos em conjunto: João Ramalho a integrar essas Bandeiras* ou a organizá-las. Diz-se que S. Paulo foi um espaço privilegiado ou mesmo o centro desse movimento, constituído com a função e missão de povoar, de se bater contra outras comunidades índias e, mais do que isso, para passarem a ter como objectivo cimeiro a caça* ao ouro e aos diamantes. Em termos cronológicos, é bem possível que J. Ramalho já não tenha feito parte do grande avanço desta última fase. Numa estratificação clássica de Antonil, citada por Nelson Saldanha, provavelmente nunca J. Ramalho atingiu, em qualquer delas, alto relevo: senhor principal*, com terras e título militar, dificilmente; lavrador ou arrendatário, talvez sim; profissional de algum ofício ou artesão, duvidamos; escravo desclassificado não o foi de certeza. Agora não podemos deixar de dizer que exerceu uma acção geral de prestígio e que participou naquilo que Gilberto Freyre intitulou de “América tropical, uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração económica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição” (Id). Sem se arrogar de um falso puritanismo, esta nossa personagem foi um pouco disto tudo, sendo, nesta medida, objecto de grandes seguidores e de outros tantos detractores. Mas só alcança este estatuto quem for capaz de se elevar no plano da acção social. Criticado por uns, enaltecido por outros é aquilo que vamos apresentar num próximo capítulo. Mas antes, rematamos estes parágrafos com uma frase de Selma Calasans Rodrigues, partindo das palavras do próprio Gilberto Freyre: “ Eu venho procurando redescobrir o Brasil. Eu sou rival de Pedro Álvares Cabral. Pedro Álvares Cabral, a caminho das Índias, desviou-se dessa rota, parece já baseado em estudos portugueses e identificou uma terra que ficou sendo conhecida como Brasil. Mas essa terra não foi imediatamente auto- conhecida. Vinham sendo acumulados estudos sobre ela…mas faltava um estudo convergente, que além de ser histórico, geográfico, geológico, fosse…um estudo social, psicológico, uma interpretação. Creio que a primeira grande tentativa nesse sentido representou um serviço de minha parte ao Brasil:” A este respeito, temos aqui a síntese das sínteses. IV – O cristianismo em João Ramalho e suas implicações Tal como em toda a sua vida, também a religião de João Ramalho não escapa a forte controvérsia, havendo até que lhe tivesse imputado a faceta de judeu e cristão- novo, muito embora tudo leve a crer que essas suposições são desprovidas de fundamento. Mas não nos cabe a nós, nesta altura das investigações pôr qualquer tese de parte com predomínio de qualquer outra. Tudo o que está em cima da mesa pode e deve ser fonte de análise, mais do que de conclusões apressadas. Como forma de contribuir para a eventual tese da sua religiosidade cristã e romana, temos o testemunho das suas origens que apontam para uma família tradicional duma pacata vila lafonense e beirã – a primeira, uma subdivisão regional natural, a segunda de carácter mais administrativo –, para um casamento canónico com Catarina Fernandes das Vacas, na base das razões invocadas para a sua vida em terras brasileiras menos condizente com os preceitos da Igreja e daí a tentativa de excomunhão, em 1549. Perante todas estas situações e as especulações em seu redor, choveram sobre ele inúmeras queixas, tal como daremos a conhecer neste mesmo ponto, Mas, antes disso, começamos por fazer uma curta transcrição do livro “ Os povoadores do Planalto, da autoria de Américo Moura, inserido por Afonso Taunay na sua obra * João Ramalho e Santo André da Borda do Campo* em que se esclarece que esses comentários são de certa forma infundamentados. Vejamos: “ … Desenvolveu, nos anos seguintes a1542, a sua povoação de Santo André da Borda do Campo, invocação que era uma piedosa remeniscência* do distrito natal, já expressa no nome do seu primogénito (André)” – Figueiredo, JR, II volume, Viseu, 1957. Deve dizer-se que a veneração a Santo André se encontrava nesses tempos muito enraizada em Portugal, como o atesta um nicho então existente em Vouzela. Declara Luís Soares Valgode que ainda há indícios do aparecimento duma imagem de Santo André, junto à Igreja de Nossa Senhora da Esperança, hoje santuário de Nossa Senhora do Castelo, em monte sobranceiro à vila de Vouzela e que serve de padroeira às suas grandes festas anuais, as do Castelo, em Agosto (Alafões – Esboços Históricos). Torna-se assim credível aceitar que JR tivesse escolhido para orago da povoação que fundou o nome do santo que lhe evocasse a terra- mãe. Será isto plausível? Ultrapassará a mera especulação? Mais uma vez ficamos de mãos vazias. Estando nós em fase de busca de perguntas para uma série de dilemas que temos em mãos e para um melhor entendimento da sua presumível origem cristã, atente-se em mais esta curiosidade: o batismo de Potira, que passa a chamar-se Isabel e ainda a mudança do nome de seu pai para a matriz ocidental. Tal como em muitas outras circunstâncias, é sempre a cultura colonizadora que leva avanço sobres as identidades locais. Mas essa dissertação pode ficar para uma outra altura. Apesar de todos estes argumentos, entra-se em linha de choque com várias entidades religiosas e civis que comungavam aquele mesmo espaço brasileiro: temos como grandes contestatários, entre outros, o P.e José de Anchieta a quem se opõe o P.e Manuel da Nóbrega. Anotemos alguns pedaços dos documentos encontrados: -Carta de Pêro Correia ao P.e Baltazar Nunes ( 20-06-1551): “ …O ameaçador foi um homem que a 40 anos está nesta terra e tem já bisnetos e sempre viveu em pecado mortal….” - Irmão Diogo Jacome (1552) – “… Uma pessoa que haverá 20 ou 30 anos está em pecado mortal…” - P.e Anchieta (01-06-1560) – “ … Faleceu há pouco uma velha que havia sido manceba de um português quase quarenta anos e ainda gerando muitos filhos…” Eis a razão para o *pecado mortal* tantas vezes abordado. - Idem ------------------------- “ … Também Deus deu muito bom fim àquela índia, que fora o tropeço desse homem… a qual … logo nos primeiros avisos dos padres se apartou do pecado…”. - Idem (01-09-1554) – . “ De facto, alguns cristãos filhos de pai português e mãe brasílica, que estão apartados de nós nove milhas numa povoação de portugueses, não cessam nunca de esforçar-se juntamente com o pai por lançar a terra a obra que procuramos edificar…”, reforçando estas queixas em Março de 1555, com os mais diversos relatos e pretensas justificações. No lado oposto, o P.e Manuel da Nóbrega, em 31-08 -1553, com origem no sermão de S. Vicente, dirige-se assim às mais altas instâncias religiosas: “ João Ramalho é muito conhecido e venerado entre os gentios e tem filhas casadas com os principais homens desta capitania e todos estes filhos são de uma índia , filha dos maiores e mais principais desta terra. De maneira que nele e nela e em seus filhos esperamos ter grande meio para a conversão dos gentios…. Se o Núncio tiver poder hajam dele dispensa particular para esse mesmo João Ramalho poder casar não obstante tivesse conhecido outra irmã ou quaisquer outras parentes dela…” Leite, Serafim – Novas Cartas Jesuíticas, citado por Bartyra Sette e Regina Moraes Junqueira, projectocompartilhar ARROBA yahoo.com.br). Nesta controvérsia, destacam-se duas linhas de força: uma em clara oposição ao fundador de Santo André, outra em seu apoio determinado, o que talvez se venha a revelar fundamental no levantamento da excomunhão que lhe tinha sido imposta em 1549. Não estranhamos ainda que esta defesa parta do P.e Manuel da Nóbrega com quem JR estabeleceu laços de grande amizade e cooperação, o mesmo acontecendo com Martim Afonso de Sousa e seu primo Tomé de Sousa, primeiro Governador- Geral do Brasil em 1549. Colocado entre dois mundos são humanas as suas vacilações. Longe das origens, afastado de vez da sua terra, impregnado do caldo da cultura local, nela se integra. Mas, lá no seu íntimo, haverá alturas em que a voz do sangue fala mais alto. Para culminar esta análise, nada melhor do que voltar às suas “ próprias” palavras, ditas em “Confissão”, já antes invocada. Eis a sua visão: “… Junto com Tomé de Sousa vinha o jesuíta P.e Manuel da Nóbrega, com a missão de evangelizar os Tupiniquins. Antipatiza logo comigo e quase me excomunga, já vos disse. Mas, em abono da verdade, devo acrescentar que, anos depois, para me safar do pecado mortal, tentará casar-me com Potira. Aviso-o que tenho mulher legítima no reino. Escreve para Vouzela a saber novas de Catarina, se ainda é viva ou já finada. Não vem resposta. Na dúvida manda que eu acabe com a mancebia. Recuso. Repudiar Potira eu cá não repudio. Para escândalo do Padre decido continuar em pecado mortal…”. Feita a opção, aqui a deixamos. Mas pode ter sido essa atitude de coragem e decisão que fez cimentar a amizade que acima descrevemos. V- As suas observações acerca dos portugueses e dos índios Em continuação de quanto acabámos de dizer, achamos por bem registar, com base nessa “ Confissão” (cuja transcrição literal pode também lançar alguma e acertada confusão), as suas ideias sobre os seus conterrâneos portugueses e das comunidades índias que o adoptaram. Por facilitar a brevidade necessária, sintetizamo-las em tópicos, sendo dele as seguintes palavras, não avançando para a temática deste capítulo, sem respigar, de novo, alguns dados sobre a sua personalidade: - “ Para eles, marrano fugido ou degredado para o Brasil serei eu. Outros opinam que sou apenas um náufrago que deu à costa. Nada disto eu desminto ou confirmo. Padre: mais vale cair no mar fundo que nas bocas do mundo… Padre, foi por entre duas águas que atravessei a vida”. Confirma-se assim a nossa própria leitura e exposição. Passemos agora às proclamadas citações: - Recebendo dos índios uma outra esposa*, dela nos diz: “ Mulher nova, escorreita e muito limpa…” “ … Para eles pecado é recusar o que a natureza prazerosa manda colher. Vossa Reverendíssima escandaliza-se com a nudez das mulheres nativas e desvia os olhos para não mirar aquilo a que chama suas vergonhas. Mas se malícia existe não será nelas…Assim desnudas são elas mais discretas e modestas que as ataviadas damas do Paço… Uma coisa de comum têm as nativas com os reinóis: a Vaidade. Mas enquanto as de lá gastam os dias a escolher tecidos, brocados e roupas com que pensam adornar-se, estas daqui passam o tempo a fazer coçares com penas de aves e a fantasiar desenhos e motivos com que irão pintar os corpos umas das outras… Estes índios são muito asseados, chegam a tomar um, dois ou mesmo três banhos por dia. São muito diferentes dos portugueses que fedem como os porcos que trouxeram do Reino…” Na esteira de Caminha, este é um desabafo que caracteriza bem as duas sociedades e a compreensão que despertou em João Ramalho, sinal de percepção serena e de tolerância, que servem de suporte a acções futuras, tendo em vista a sua submissão a outros valores: “ … E eu já não sei , Padre, já não sei qual é a pior sujeição: se a física ou a mental “. Isto prova o seu grande discernimento e até a difícil delimitação dos campos, sendo que o mental – é a sua conclusão implícita – é sempre o mais melindroso. Aborda depois os rituais antropofágicos, que se verificam no seio dos grupos índios, confessando que actuou tal e qual como eles, mas não deixa de apresentar um pedido de desculpa, porque “… eu sei de horrores maiores cometidos lá no reino…”. Traz ao de cima a inquisição e as fogueiras “ … o que é grande maldade que não se usa por aqui…” A seguir a estes contributos antropológicos, atira-se em cheio aos próprios poderes: “ … Já Mem de Sá, terceiro Governador- Geral do Brasil, é um pau de dois bicos. Começa por proibir escravizar os índios. Mas, ao mesmo tempo, manda desimpedir as veredas de Paranapiaca e em 1560 extingue a Santo André dos meus guerreiros tupiniquins ( e de escassos peões portugueses) e promove S. Paulo a vila . E um nebuloso convite aos aventureiros. Porém convite: subam ao Planalto a caçar os índios… E eles começam a subir, ó se começam… E são perigosos, devastadores, pois os portugueses facilmente se adaptam a tudo: se não há farinha de trigo, pois coma-se a de Mandioca…” Neste resumo, resplandece uma das três características dos seus compatriotas: a adaptabilidade. Portanto, na falta de uvas, temos as jabuticabas; nas carências de bagaço de vinho, aguardente de milho; sem colchões, a rede; sem mulher branca, as índias. “ … Desleixados, sem planos prévios, levam tudo a eito, dispostos apenas ao trabalho de pôr os outros a trabalhar para eles, sequiosos que estão de honrarias e riquezas…” Explica assim, de uma forma simples e directa, os objectivos que presidem `a colonização: a busca de meios de enriquecimento e a ascensão social, o apetite pelos diversos territórios. Continua as suas observações, depois de abordar o ataque dos Tamoios a S. Paulo e o apoio que deu: “… aos seus moradores, homens de armar, padres, artesãos, mercadores e senhores de engenho, o povo todo…” Deixa então transparecer mais uma caracterização dos índios que seguem a natureza, enquanto “…. O português luta contra ela… (Quando as terras se esgotam) …constrói uma nova taba ou aldeamento, reconhece o novo território de caça … O índio está sempre a mudar de lugar, para ele não tem sentido a casa de pedra e cal… (nem) a acumulação de víveres…Já a ambição do português, habituado à penúria dos seus Invernos, é acumular de tudo o mais que possa … Nem os índios conseguem entender os portugueses – aos quais chamam de loucos – nem os portugueses conseguem entender os índios – aos quais chamam de selvagens-…” Com um sentido antropológico fortemente apurado, estas frases lapidares dão-nos uma grande ideia daquilo que pensava acerca de cada um dos povos. E nem a língua lhe escapa, quando afirma que os portugueses tiveram sorte em encontrar tupis ao longo de toda a costa, porque assim só tiveram de aprender uma língua, para mais já com alguns laivos de origem lusa. “ … Padre, estou velho e prestes a apagar-me. Português nasci e só ambiciono, na hora da morte, ouvir falar a minha língua natal. Só por isto tornei a esta vila de S. Paulo. É ainda esta minha pecha das duas águas… Tratai de encomendar-me a alma a Nosso Senhor, deus dos brancos, que um pajé, antes do meu retorno, já a encomendou a Tupã, deus dos índios.” Neste sentimento ambivalente, João Ramalho regressa às origens sem nelas ficar. A saudade da terra- mãe corrói. Mas o apego ao solo brasileiro e aos seus novos companheiros de jornadas atraem-no sempre, até na hora em que a morte parece chamá-lo. É este o destino dos homens que tudo deram pela defesa de suas causas e valores, por mais estranho que nos pareçam algumas de suas atitudes. VI – Conclusão Num trabalho deste género, em que a componente de estudo de caso se destaca em relação às demais, é provável que haja alguns excessos de linguagem ou até de conceitos, de modo a valorizar a entidade que decidimos trazer para a tábua da análise em questão. Apesar de termos laços de sangue com a região de origem de João Ramalho, tentámos não nos imiscuirmos, em demasia, em tudo quanto diga respeito a sua vida, recheada de peripécias, de defesas acérrimas e de oposições ferozes, evidentes nas linhas atrás transcritas. O nosso discurso pretendeu ficar de fora dessas quesílias, como forma de preservar a parte académica, que presidiu a esta escolha. Pegando na visão de Gilberto Freyre, que abarcou as dimensões sociológica, antropológico- social, ecológica, histórico – cultural e científico- humanística, assim actuámos, tendo em linha de conta que, em matéria de ciências sociais e das ideias, todo o terreno é fluido e escorregadio, não havendo nunca verdades eternas. Realidade e ficção, segurança argumentativa e hipóteses, de tudo isso povoámos esta caminhada, que apenas pretendeu, como disse G. Freyre, dar mais um passo em frente na senda do conhecimento do povo brasileiro, a parte maior da lusofonia a que pertencemos todos. Foi este o nosso espírito e o ânimo que nos carregou as baterias. Se conseguimos chegar ao alto da colina, tanto melhor. Se ficámos a meio, resta-nos a consolação de talvez termos aberto a porta para outras eventuais pesquisas e novas sugestões.