terça-feira, 22 de outubro de 2019

João Ramalho, de Vouzela para o Brasil....

João Ramalho, um contributo para a mestiçagem e colonização do Brasil I – INTRODUÇÃO Na imensidão brasileira, descobrem-se, ao longo dos tempos, várias fases na sua ocupação e colonização. A antecedê-las, existem povos que, segundo a nova história, têm direito a ser vistos como portadores duma cultura e duma existência. Nesta medida, deixaram de ser entidades antropológicas, apenas, para se tornarem realidade sociológica. Estamos a referir-nos aos índios que, na visão de Caminha e no seu relato, assistiram à primeira abordagem feita pelos portugueses àquele território. Muito embora subsistam algumas dúvidas no que diz respeito ao seu descobrimento, optamos por não enveredar por essa polémica. Em contrapartida, passamos à ideia de que se tratou dum achamento*, Cabendo à frota de Pedro Álvares Cabral essa chegada e a respectiva divulgação em 1500. Com os olhos postos em África e, sobretudo, na Índia e Oriente, em geral, de início o Brasil não suscitou um interesse por aí além. De acordo com esta perspectiva, citamos Joaquim Veríssimo Serrão: “ As primeiras viagens tinham por fim a exploração do pau-Brasil e o contacto com os aborígenes que viviam em plena civilização do mel, alimentando-se da pesca e dos produtos silvestres….” (História de Portugal – 1495 – 1580- Volume III, Edições Verbo, Lisboa, 1980, P. 130) Talvez se deva a esta constatação, que decorre um pouco da *Carta de Caminha, essa política de deixar de lado, nesses tempos, uma terra que se veio a revelar, mais tarde, de grandes recursos. Apoiada numa estratégia comercial, a coroa portuguesa mostrou assim a sua indisponibilidade para dar mais atenção a este espaço. Limitou-se, nas primeiras décadas de 1500, a acções esporádicas. “ … Ora como assim seja que esta terra d’além é tão grande e desta parte d’aquem temos Europa, África e Ásia, manifesto é que o mar oceano é metido no meio destas duas terras…” (Coutinho, J. – 1500, achamento do Brasil – Edição A voz de Paço de Arcos – 2000, Abril). Era desta forma que então se via o Brasil: um mundo novo lá longe, do outro lado do mar, que tinha de ser, um dia, aproveitado, mas não naqueles momentos e naqueles termos. No entanto, a par dos avanços para o oriente, não se descura totalmente aquela área americana. Assim, para ali seguem em viagens diversas as embarcações saídas do continente europeu. Foi numa dessas idas que, em data incerta, partiu João Ramalho, personagem a abordar neste trabalho. Com muitos dados ainda obscuros na sua vida, variadíssimas são as referências encontradas, tendo-o como protagonista dos primórdios da presença portuguesa no Planalto de Piratininga. Numa associação à temática estudada, em que se falou de mestiçagem e luso- tropicalismo, entre muitas outras correntes e aspectos, entendemos inserir João Ramalho na primeira das categorias assinaladas. Por outro lado, aponta-se-lhe ainda um papel de algum destaque em termos de colonização na zona onde se radicou e nos espaços explorados pelo movimento dos bandeirantes, em que muito provavelmente teve parte activa. Diz-nos Gilberto Freyre, que “ … No Sul, onde aliás já se encontravam, prosperando, à custa do próprio esforço, povoadores do tipo de Ramalho e do bacharel de Cananeia, com grande progenie mestiça e centenas de escravos ao seu serviço, a colónia de S. Vicente foi oficialmente fundada em 1532…” (Casa Grande e Senzala – Edição Livros do Brasil – Lisboa, 2003). Esta é mais uma prova de que J. Ramalho se tornou personalidade importante por aquelas paragens. Só assim se justificam as sucessivas alusões que lhe são dirigidas, como veremos seguidamente. Ao termos em conta estes dados, cingir-nos-emos à época temporal do século XVI e às relações estabelecidas com os ameríndios tupiniquins, comunidade em que se veio a incluir. Recebido positivamente, integra-se na sua própria vivência, aproveitando essa oportunidade para também exercer a sua própria influência, misturando-se desse modo as duas culturas – a local e a ocidental, não sem que deixasse de haver todos os excessos decorrentes de um processo colonizador. Nota-se tudo isso até no texto de Freyre, quando aborda o velho problema da escravatura. Com a Casa Grande e Senzala podem estabelecer-se alguns pontos de contacto entre o seu conteúdo e a vida de J. Ramalho. Aliás, esta evidência não é de estranhar-se, tal o destaque que aquele autor teve na defesa da mestiçagem como um dos suportes da história e da afirmação do povo brasileiro, não obstante as vozes que contra ele se vieram a levantar. “ …Bastaria a conservação do nome do povoado que fundou( Santo André da Borda do Campo) e cujo paço municipal e cujas defesas custeou do seu bolso quando foi elevada a vila, em 8 de Abril de 1553, para lhe perpetuar o nome, mas é verdade que a sua vida tem mais amplo e profundo significado. É que a personalidade de João Ramalho é como que inseparável da idiossincrasia paulista e, porventura, também da própria fundação de S. Paulo.”( Figueiredo, C. J. Moreira – João Ramalho, patriarca dos bandeirantes e filho de Vouzela - um grande português no povoamento e conquista do sertão brasileiro – Separata da Revista Beira – Alta – Viseu, 1954, P 6). Este é o teor do prefácio de Joaquim de Carvalho, num tom que, com alguma dose de emotividade, não deixa de pôr em relevo a acção desenvolvida por este cidadão português. Para alicerçar estas palavras, alude-se à inauguração, no dia 10 de Maio de 1953, da exposição Industrial de Santo André da Borda do Campo, comemorativa do quarto centenário da municipalidade desta vila, ano em que também foi erguido um monumento em sua homenagem, precisamente no dia 8 de Abril desse mesmo ano. Porque, na última citação se incide especialmente na faceta de bandeirante, apresentamos um excerto em que a mestiçagem cultural foi colocada em plano elevado por Caio C. Boschi, desta forma: “ Registre-se a abordagem da temática, por exemplo, na trilogia maior de Gilberto Freyre, relativa à análise da sociedade brasileira, sobretudo em Casa Grande E Senzala…( Estamos perante uma)…noção cuja complexidade pode levar ao paradoxo, como o fez Fernando Novais, que a miscigenação foi ao mesmo tempo um canal de aproximação e uma forma de dominação, um espaço de amanciamento e um território de enrijecimento* do sistema” ( Ventura, Maria da Graça A. Mateus – Coordenação – Os espaços de sociabilidade na Ibero – América, séculos XVI-XIX, Edições Colibri, Lisboa, 2004, P. 19) Cabe aqui incluir uma nota explicativa quanto à metodologia seguida: para as fontes, apoiar-nos-emos na história, antropologia, sociologia e literatura, condições preenchidas, entre outros, por Gilberto Freyre; para o discurso, usaremos a língua actual, nas duas versões – a de Portugal e a do Brasil, tal como já demos a perceber. Quando for necessário e oportuno, deitaremos mão a formas mais arcaicas, para não trairmos os suportes encontrados. Por se relacionarem com os métodos adoptados para se integrarem no mundo dos índios, não deixaremos de lado Diogo Álvares, o *Caramuru. Desta forma, a vida de um e de outro têm grandes pontos de união, não obstante as léguas que os separavam naquele mar de terra brasileira. O mesmo se diga de Cosme Fernandes Sem respostas, colocamos no ar esta questão: será a mestiçagem uma utopia, uma promessa de paz ou o encobrimento ideológico das diferenças? Como a dúvida ainda permanece, nada mais acrescentaremos. Na mata que vamos desbravar podem, no entanto, acender-se algumas velas que nos ajudem um pouco nestas matérias. Se assim for, tanto melhor. II – Breves notas biográficas Com uma vida ainda envolta em nuvens obscuras, João Ramalho apresenta-nos uma certeza: nascido em Vouzela, parte para o Brasil, aí passa quase a totalidade de sua vida, até à morte, já em S. Paulo por volta de 1580- 1582. Quanto à data do seu nascimento, estamos perante uma incógnita que nem Moreira de Figueiredo foi capaz de desvendar. Apesar de ter vasculhado “… todos os livros de nascimentos, casamentos e óbitos dos antigos Arquivos Paroquiais de Vouzela e de outras freguesias circunvizinhas …desde 1557…( e ainda ) … grossos volumes dos Cartórios Notariais da mesma região lafonense….” Idem) nada mais conseguiu descobrir. Já o mesmo se não pode dizer da sua filiação, que deixou rastos mais ou menos sabidos: foram seus pais João Velho Maldonado e Catarina Afonso de Valbode. Tem-se conhecimento ainda que casou com Catarina Fernandes das Vacas, como “ consta do seu testamento, feito pelo tabelião Lourenço Vaz em S. Paulo de Piratininga e pode ler-se no caderno rubricado por João Soares, título Abril, folhas 10, 1580 “ ( Idem, P18). Uma sua confissão relatada no livro * 1500 – achamento do Brasil*, de que já enigmáticas pistas, mas abre um pouco a ponta do véu. Diz-nos ele então: “ Já fiz 87 anos…. Sem prévia vivência das terras do Brasil, não conseguireis entender os volteios da minha vida. Ireis ficar escandalizado como escandalizado ficou em tempos o Padre Manuel da Nóbrega, o fundador desta vila de S. Paulo… Ramalho é a minha alcunha por causa da minha barba, que foi sempre ramalhuda. Maldonado é que é o apelido de meu pai… (p 59-60). Continua: “… Em Vouzela, onde nasci, despeço-me de Catarina, a minha esposa, e parto para Lisboa…Abalo de Vouzela, coração apertadinho…Suponho e bem que nunca mais tornarei a ver a Catarina, pois o meu destino é o Brasil tão distante…Arribo a esta costa do Brasil em 1511, talvez em 12 ou 13, não sei ao certo…Bem acolhido sou por António Rodrigues, o degredado português a quem todos chamam ou chamavam o bacharel de Cananeia e que há muito tempo vive entre os índios tupiniquins da beira da praia… (ID) Depois de afirmar que recebeu mulher nova, ali se lê que seguiu o ditado “ em Roma sê romano e confesso que, ente os índios, índio fui” (Id.P61). Por esse facto e de acordo com o seu próprio relato “… um dia baixou à praia Potira… Não sei por que os portugueses insistem em chamá-la de Bartira… Potira é filha de Tibiriçá, cacique de Inhapuambuçu, a principal taba ou aldeamento dos campos de Piratininga… Adopta-me e dá-me Potira em casamento… De Potira e das outras tenho muitos filhos e filhas… Caribocas como dizem os índios… mamelucos como dizem os portugueses…” ( Outros temas são abordados nesta confissão (P 61-62). Alguns deles vão servir-nos para ilustrar alguns aspectos da sua longa e atribulada vida. Perpassa destas linhas, descontando naturais excessos, um tom que cheira a Freud, que parece saído duma cama ou marquise de psiquiatra ou consultório de psicólogo. São palavras sentidas e por isso merecem a nossa consideração. Para Afonso Taunay, que escreveu sobre esta personagem, representa uma acção “ ímpar nos anais do apossamento luso primitivo da região meridional, da qual foi o agente, o mais antigo, senão o de máximo relevo e eficiência… Foi o posto avançado ramalhense do cimo da Serra o centro de intenso caldeamento luso- brasílico, que garantiu a subsistência das duas vilas portuárias da vila vicentina… ( Figueiredo , P !9) Com muitos filhos, o que se deduz dos documentos encontrados e da sua própria “ confissão”, conhece-se o nome de alguns deles: André, Joaquim, Margarida, Victório; Marcos, Joana, Jordão, todos com o apelido de Ramalho, acrescentando-se ainda António de Macedo e António Quaresma. Para completarmos esta resenha biográfica, socorremo-nos das datas e factos 1493(?) – Nascimento, devido aos 87 anos confessados em 1580. 1511 – 1513 – Chegada ao Brasil 1514 (?) ------ Casamento com Potira 1532 ---------- Colaboração com Martim Afonso de Sousa na fundação de S. Vicente 1549---------- Governo Geral de Tomé de Sousa ------- Eventual excomunhão “ por andar amancebado “ ( Crónica do Brasil, Lº I nº 77 ------ Nomeação para guarda- mor ou fronteiro do campo de Piratininga 1552 -------- Inauguração do Colégio pelo P.e Manuel da Nóbrega ------ Reitor, P.e Manuel de Paiva – Águeda 1553 --------- Cooperação com o P.e Manuel da Nóbrega, jesuíta, na construção da povoação de S. Paulo de Piratininga, talvez algo contrariado, tendo em conta as posições que, posteriormente, veio a tomar. A este propósito e apenas como achega, acrescente-se que um dos fundadores da Companhia de Jesus, o P.e Simão Rodrigues, era da mesma terra de J. Ramalho: Vouzela -------------- Inauguração de um segundo Colégio 1554 ------- Nomeação, após votação, para Capitão – Mor de Piratininga ---- Defesa contra assalto dos Tamoios. 1557/58--- Eleição para vereador da Câmara de Santo André. 1560 ------ Extinção da vila de Santo André pelo Governador Mem de Sá, seguindo-se-lhe a promoção de S. Paulo a vila, provavelmente com desgosto do nosso protagonista. 1562/63--- Novo ataque dos Tamoios, desta vez a S. Paulo. 1564 ------ Eleição e recusa do cargo de vereador de S. Paulo. ---- Escolha de um lugar no Vale de Paraíba para aí viver. 1580 ------ Testamento- “ Confissão”. 1580/82--- Morte, possivelmnete em S. Paulo 1595 ---- Primeira gramática Tupi, da autoria do P.e José de Anchieta. **** 1501/ 03 ----- Primeiras expedições para conhecer o contorno marítimo. 1531 ---------- Chegada de Martim Afonso de Sousa a Pernambuco, antes de se instalar no Planalto de Piratininga. 1532 --------- Ataque dos corsários franceses. 1534 --------- Divisão do território brasileiro em capitanias hereditárias. 1552 --------- Criação do Bispado do Brasil III – Uma vida em terras brasileiras No seguimento da resenha anterior, que omite muitas das acções ou vivências de João Ramalho, descobre-se, facilmente, uma vida recheada de episódios. Sem podermos dizer que todos eles são verídicos, porque, em muitos casos, é difícil distinguir a realidade da ficção ou até do boato e da lenda – e estas personagens são muito propícias a estas leituras – não deixa de ser verdade que João Ramalho deu um contributo importante à história desses primeiros tempos da permanência de portugueses no Brasil. A confirmar tudo isto, vem, uma vez mais, Joaquim Veríssimo Serrão registar que se tem “ … notícias de alguns degredados que ali se fixaram para conviver com os nativos e de homens sedentos de aventura que ficaram ligados às raízes do Brasil. Tais os casos de Diogo Álvares, natural de Viana do Castelo, que veio a tornar-se o famoso Caramuru* e de João Ramalho, oriundo de Vouzela, que se fixou na região de Piratiniga e assistiu mais tarde ao nascimento de S. Paulo” P. 130. Se estas são referências históricas, anote-se aquilo que foi escrito por Gilberto Freyre, a respeito destes primeiros tempos da estada portuguesa no Brasil : “ Eliminar os primeiros cinquenta anos – como escreve Azevedo Amaral – equivale a suprimir um elemento básico da formação nacional (brasileira)” – Idem p: 31. e acrescenta: “ O certo é que os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam”. Para aqueloutro historiador, encaixam-se, ao que vimos, estes iniciadores do fenómeno da emigração na categoria de degredados ou aventureiros, o que, no primeiro caso, não pode ter-se como absolutamente certo, porque são desconhecidas as razões que o levaram ao Brasil. Quanto ao seu presumível aventureirismo, esse demonstra-se facilmente. Alguém veio trazer mais luz, destinada a desvendar mais um pouco esta meada e este enigma. É Washington Luís que, num documento, indica que possivelmente alguns delitos cometidos na corte, por onde passou, levaram a este destino. Com a intenção de incluirmos outras ideias, de modo a podermos analisar melhor as circunstâncias e as acções por si desenvolvidas, descrevemos mais uns pormenores: “ …. Em 22 de Janeiro de 1532, a armada de Martim Afonso de Sousa chegou à ilha de S. Vicente, onde funda a primeira povoação lusitana… Na região se encontravam distribuídos os lançados* que haviam criado grandes laços familiares no seio do grupo Tupiniquim: João Ramalho era genro do cacique Tibiriçá e António Rodrigues, do Chefe Piquiróbi…” (Couto, Jorge – Portugal y la construcción de Brasil – Colecciones Mapfre, P 254,257,366, citando ainda António Ramalho de Faria – Acerca do bandeirante João Ramalho – Portugaliae Histórica, Lisboa, P. 90/110) Nesta mesma obra é feita uma alusão ao “ papel importante nas relações pacíficas entre os indígenas e os portugueses”, assim como a Martim Afonso de Sousa, a Diogo Álvares, o Caramuru* da Baía, que ficou incumbido de aí realizar “ experiências agrárias”. Por sua vez, João Ramalho e António Rodrigues “ foram os pioneiros da mestiçagem no Planalto de Piratininga, na opinião deste mesmo autor A propósito da miscigenação, lê-se no Dicionário de História de Portugal (DHP), Direcção de Joel Serrão, Volume I, Livraria Figueirinhas, Porto P. 373 e ss ) que os índios “ não têm uma cultura homogénea” … “ nem no litoral, terra dos Tupis, com costumes idênticos, mas com intensas rivalidades. Já no interior, encontram-se os Tapuias, inimigos dos primeiros e desconhecedores da lavoura, da cerâmica e da fiação do algodão”. Numa dedução lógica, estas últimas características notavam-se então nos Tupis, que dividiam assim as funções, em traços gerais: guerra, caça e pesca incumbem aos homens, ao passo que as lides agrícolas estavam confiadas às mulheres. No que toca à mestiçagem*, ali se refere concretamente que “ os povoadores brancos cruzaram largamente com a mulher indígena e o produto dessa união o mamaluco* ( mameluco?) – veio a tornar-se – precioso auxiliar dos portugueses para a ocupação do Brasil”, até nas futuras bandeiras. Tal como J. Ramalho, também Diogo Álvares, que recebe a índia Paraguaçu, tem papel de destaque neste movimento de encontro português e ameríndios. Mas, por se encontrar na zona da capital, talvez a sua vida tenha acabado por ser mais conhecida, sobretudo depois do episódio de que resultou a sua alcunha de Caramuru*. Se muitas e concretas fontes nos falam do retrato da mestiçagem, mais escassas são aquelas que cimentem os seus contributos como bandeirantes, não obstante as múltiplas citações genéricas. Uma delas podemos encontrá-la em Júlio Dantas, quando enaltece aquele que “ é o Patriarca das Bandeiras prodigiosas, anexadoras de milhões de quilómetros quadrados castelhanos à fé do Tratado (Tordesilhas)” – Maria Ester Vargas – João Ramalho, Bandeirante de Lafões – Viseu, 1994. Diz-nos ainda Ester Vargas que a “ epopeia dos bandeirantes foi a melhor forma que os portugueses encontraram para explorar e unir grande parte do que é hoje a nação brasileira, tendo sido também, obviamente, uma tarefa economicamente estimulante”. Se no Planalto de Piratininga este português se evidenciou, talvez mais que nas Bandeiras, já em Portugal lança-se a sugestão de que fora cavaleiro e guarda- mor do Rei, facto que mais dúvidas nos traz relativamente ao seu nascimento, em termos de data, e consequente partida para o Brasil. Uma certeza, porém, parece evidente: forçado, requisitado ou voluntário, J. Ramalho deixou a Metrópole e abalou para um dos novos mundos entretanto dados a conhecer ao Ocidente. Aí se fixou e não passou despercebido, antes pelo contrário. Ao projectar-se para o futuro, é sinal de que algo produziu e aquilo que dele nos chega prova isso mesmo. Em J. Ramalho assentam bem as características assinaladas na essência do português por Gilberto Freyre: aclimatação, miscigenação e miscibilidade “ e gente mais flutuante que a portuguesa dificilmente se imagina” (G.F.). se não fosse essa disposição colectiva e, neste caso pessoal, nunca este homem se daria a conhecer e a vir a ser aceite pelos índios, nem se converteria em parte duma de suas comunidades. Confirma-o ele próprio: no meio deles, “ índio fui” Possuidor duma cultura prática acima da média dos emigrantes do seu tempo, até pela sua eventual passagem pela corte, fácil lhe foi esse encontro e a capitalização de simpatia. Estamos em crer que o não fez apenas por razões desobrevivência nem por instintos amorosos: Á sua longa permanência no Brasil devem associar-se, provavelmente, outros objectivos: recebendo, quis dar e daí que a cristianização operada possa inserir-se numa estratégia previamente delineada, não sendo líquido pôr-se de parte hipotéticas pressões recebidas das entidades religiosas, que tanto o criticaram. Mas como declara novamente Caio Boschi, a páginas 20, “ Na Colónia não houve simples reprodução das formas e dos espaços de sociabilidade vividos na Metrópole, ainda que nela, comprensivelmente, inspirados. Na América, as transplantações reclamaram e adquiriram cor local* e, em razão, remodelaram-se, sem que aqui se esteja fazendo abstracção das manifestações que emergiram inovadoramente no outro lado do Atlântico”( Id.). Ao pararmos agora um pouco no Planalto de Piratiniga, deparamos, de imediato, com duas situações aparentemente contraditórias: por um lado, apresenta-se-nos um João Ramalho em convívio ameno com os índios, servindo de mediador, evitando conflitos entre os seus companheiros e os recém – chegados homens de Martim Afonso de Sousa (1532); por outro, assistimos ao seu trabalho vigoroso na criação de novas localidades, per si*, (Santo André da Borda do Campo) e em parceria com M.A. Sousa quanto a S. Vicente, para, algum tempo depois, dar o seu apoio à própria fundação de S. Paulo. De notar que aqui ainda são suscitadas muitas dúvidas a esse respeito, que se adensam com a sua recusa da aceitação do cargo de vereador (1564). Que factos originaram tal decisão? Que descontentamento dele se apoderou? Seria tudo isso uma reacção à perda de sua antiga terra para dar lugar a esse novo povoado ou mesmo à sua desclassificação? No presente são mais os pontos fechados que as janelas abertas e, no âmbito deste trabalho, difícil nos é apurar o cerne destas questões, apesar de ele ter referido que, para isso, já tinha 70 anos… Mas é a Santo André que vamos voltar, apresentando a descrição duma de suas actas e outros aspectos, que entendemos dignos de menção: Acta – “ Aos outo dyas do mês de Fevereiro da dyta era asyma escryta se ajuntaram hos ofysyaes da caza do cõselho aõde derão juram.toa symão Jorge e a João Ramalho a saber a a João Ramalho de vereador ea symão de juyz ordinayro desta dyta villa e llogo perãonte mym lhe foy dado jur~m.to dos sãotos avãogelhos em que puzerão a mão que bem e verdadeyram.te e cõ sãs cõsyensya fação seus ofysyos seg~udo o sôr Ds lhe der a emt~eder em que premeterão faze verdade como dyto tenho e o asynarão todos aquy. Eu Dyoguo fiz escryvão da câmara ho escrevy. E o dyto juram.to foy dado em esta câmara e casa do cõselho e o verador f.co Álvaro enes e o asynarão como dyto tenho. Eu sobredito que ho escrevy – Simão Jorge – Jº ) Ramalho. Álvaro Annes” (Figueiredo,1954, p.56). Em complemento, descrevem-se alguns cargos públicos do Município de Santo André, desta forma: 1555 – Juízes: Paulo Proença, Francisco Alves, António Cubas Vereador: Garcia Rodrigues Procurador do Concelho- João Fernandes, Álvaro Annes Escrivão: Gaspar Nogueira Almotacés: João Pires Gago, Álvaro Annes, António Cubas. Alcaide: Francisco Alves, João Galego, Baltazar Nunes Aferidor: João Rodrigues 1556 (…) Rendeiro – João Galego Capitão e alcaide- mor – João Ramalho 1557(…) Porteiro – João Galego Alcaide- mor – João Ramalho Como tudo leva a crer, trata-se praticamente de gente portuguesa, mas não são de excluir-se alguns nomes de índios, dada a transformação que nessa matéria por via do batismo se operou. Perdem-se os nomes de origem, adoptam-se os cristãos. Outro tema a destacar relaciona-se com a organização acima esquematizada, que é uma espécie de decalque do figurino do municipalismo português dessa época, sector que a nossa personagem talvez conhecesse, ainda que pelo menos em teoria. São estas “ herdeiras das vereações ibéricas” (Nelson Saldanha – História das ideias políticas no Brasil- Univ Federal de Pernambuco, Recife, 1968, p. 41). Ao passar à história como Patriarca dos Bandeirantes, vislumbram-se sinais de bastante relevância nessa penetração pelo interior dos sertões brasileiros. Esta designação pode ter a ver com um destes dois aspectos ou ambos em conjunto: João Ramalho a integrar essas Bandeiras* ou a organizá-las. Diz-se que S. Paulo foi um espaço privilegiado ou mesmo o centro desse movimento, constituído com a função e missão de povoar, de se bater contra outras comunidades índias e, mais do que isso, para passarem a ter como objectivo cimeiro a caça* ao ouro e aos diamantes. Em termos cronológicos, é bem possível que J. Ramalho já não tenha feito parte do grande avanço desta última fase. Numa estratificação clássica de Antonil, citada por Nelson Saldanha, provavelmente nunca J. Ramalho atingiu, em qualquer delas, alto relevo: senhor principal*, com terras e título militar, dificilmente; lavrador ou arrendatário, talvez sim; profissional de algum ofício ou artesão, duvidamos; escravo desclassificado não o foi de certeza. Agora não podemos deixar de dizer que exerceu uma acção geral de prestígio e que participou naquilo que Gilberto Freyre intitulou de “América tropical, uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração económica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição” (Id). Sem se arrogar de um falso puritanismo, esta nossa personagem foi um pouco disto tudo, sendo, nesta medida, objecto de grandes seguidores e de outros tantos detractores. Mas só alcança este estatuto quem for capaz de se elevar no plano da acção social. Criticado por uns, enaltecido por outros é aquilo que vamos apresentar num próximo capítulo. Mas antes, rematamos estes parágrafos com uma frase de Selma Calasans Rodrigues, partindo das palavras do próprio Gilberto Freyre: “ Eu venho procurando redescobrir o Brasil. Eu sou rival de Pedro Álvares Cabral. Pedro Álvares Cabral, a caminho das Índias, desviou-se dessa rota, parece já baseado em estudos portugueses e identificou uma terra que ficou sendo conhecida como Brasil. Mas essa terra não foi imediatamente auto- conhecida. Vinham sendo acumulados estudos sobre ela…mas faltava um estudo convergente, que além de ser histórico, geográfico, geológico, fosse…um estudo social, psicológico, uma interpretação. Creio que a primeira grande tentativa nesse sentido representou um serviço de minha parte ao Brasil:” A este respeito, temos aqui a síntese das sínteses. IV – O cristianismo em João Ramalho e suas implicações Tal como em toda a sua vida, também a religião de João Ramalho não escapa a forte controvérsia, havendo até que lhe tivesse imputado a faceta de judeu e cristão- novo, muito embora tudo leve a crer que essas suposições são desprovidas de fundamento. Mas não nos cabe a nós, nesta altura das investigações pôr qualquer tese de parte com predomínio de qualquer outra. Tudo o que está em cima da mesa pode e deve ser fonte de análise, mais do que de conclusões apressadas. Como forma de contribuir para a eventual tese da sua religiosidade cristã e romana, temos o testemunho das suas origens que apontam para uma família tradicional duma pacata vila lafonense e beirã – a primeira, uma subdivisão regional natural, a segunda de carácter mais administrativo –, para um casamento canónico com Catarina Fernandes das Vacas, na base das razões invocadas para a sua vida em terras brasileiras menos condizente com os preceitos da Igreja e daí a tentativa de excomunhão, em 1549. Perante todas estas situações e as especulações em seu redor, choveram sobre ele inúmeras queixas, tal como daremos a conhecer neste mesmo ponto, Mas, antes disso, começamos por fazer uma curta transcrição do livro “ Os povoadores do Planalto, da autoria de Américo Moura, inserido por Afonso Taunay na sua obra * João Ramalho e Santo André da Borda do Campo* em que se esclarece que esses comentários são de certa forma infundamentados. Vejamos: “ … Desenvolveu, nos anos seguintes a1542, a sua povoação de Santo André da Borda do Campo, invocação que era uma piedosa remeniscência* do distrito natal, já expressa no nome do seu primogénito (André)” – Figueiredo, JR, II volume, Viseu, 1957. Deve dizer-se que a veneração a Santo André se encontrava nesses tempos muito enraizada em Portugal, como o atesta um nicho então existente em Vouzela. Declara Luís Soares Valgode que ainda há indícios do aparecimento duma imagem de Santo André, junto à Igreja de Nossa Senhora da Esperança, hoje santuário de Nossa Senhora do Castelo, em monte sobranceiro à vila de Vouzela e que serve de padroeira às suas grandes festas anuais, as do Castelo, em Agosto (Alafões – Esboços Históricos). Torna-se assim credível aceitar que JR tivesse escolhido para orago da povoação que fundou o nome do santo que lhe evocasse a terra- mãe. Será isto plausível? Ultrapassará a mera especulação? Mais uma vez ficamos de mãos vazias. Estando nós em fase de busca de perguntas para uma série de dilemas que temos em mãos e para um melhor entendimento da sua presumível origem cristã, atente-se em mais esta curiosidade: o batismo de Potira, que passa a chamar-se Isabel e ainda a mudança do nome de seu pai para a matriz ocidental. Tal como em muitas outras circunstâncias, é sempre a cultura colonizadora que leva avanço sobres as identidades locais. Mas essa dissertação pode ficar para uma outra altura. Apesar de todos estes argumentos, entra-se em linha de choque com várias entidades religiosas e civis que comungavam aquele mesmo espaço brasileiro: temos como grandes contestatários, entre outros, o P.e José de Anchieta a quem se opõe o P.e Manuel da Nóbrega. Anotemos alguns pedaços dos documentos encontrados: -Carta de Pêro Correia ao P.e Baltazar Nunes ( 20-06-1551): “ …O ameaçador foi um homem que a 40 anos está nesta terra e tem já bisnetos e sempre viveu em pecado mortal….” - Irmão Diogo Jacome (1552) – “… Uma pessoa que haverá 20 ou 30 anos está em pecado mortal…” - P.e Anchieta (01-06-1560) – “ … Faleceu há pouco uma velha que havia sido manceba de um português quase quarenta anos e ainda gerando muitos filhos…” Eis a razão para o *pecado mortal* tantas vezes abordado. - Idem ------------------------- “ … Também Deus deu muito bom fim àquela índia, que fora o tropeço desse homem… a qual … logo nos primeiros avisos dos padres se apartou do pecado…”. - Idem (01-09-1554) – . “ De facto, alguns cristãos filhos de pai português e mãe brasílica, que estão apartados de nós nove milhas numa povoação de portugueses, não cessam nunca de esforçar-se juntamente com o pai por lançar a terra a obra que procuramos edificar…”, reforçando estas queixas em Março de 1555, com os mais diversos relatos e pretensas justificações. No lado oposto, o P.e Manuel da Nóbrega, em 31-08 -1553, com origem no sermão de S. Vicente, dirige-se assim às mais altas instâncias religiosas: “ João Ramalho é muito conhecido e venerado entre os gentios e tem filhas casadas com os principais homens desta capitania e todos estes filhos são de uma índia , filha dos maiores e mais principais desta terra. De maneira que nele e nela e em seus filhos esperamos ter grande meio para a conversão dos gentios…. Se o Núncio tiver poder hajam dele dispensa particular para esse mesmo João Ramalho poder casar não obstante tivesse conhecido outra irmã ou quaisquer outras parentes dela…” Leite, Serafim – Novas Cartas Jesuíticas, citado por Bartyra Sette e Regina Moraes Junqueira, projectocompartilhar ARROBA yahoo.com.br). Nesta controvérsia, destacam-se duas linhas de força: uma em clara oposição ao fundador de Santo André, outra em seu apoio determinado, o que talvez se venha a revelar fundamental no levantamento da excomunhão que lhe tinha sido imposta em 1549. Não estranhamos ainda que esta defesa parta do P.e Manuel da Nóbrega com quem JR estabeleceu laços de grande amizade e cooperação, o mesmo acontecendo com Martim Afonso de Sousa e seu primo Tomé de Sousa, primeiro Governador- Geral do Brasil em 1549. Colocado entre dois mundos são humanas as suas vacilações. Longe das origens, afastado de vez da sua terra, impregnado do caldo da cultura local, nela se integra. Mas, lá no seu íntimo, haverá alturas em que a voz do sangue fala mais alto. Para culminar esta análise, nada melhor do que voltar às suas “ próprias” palavras, ditas em “Confissão”, já antes invocada. Eis a sua visão: “… Junto com Tomé de Sousa vinha o jesuíta P.e Manuel da Nóbrega, com a missão de evangelizar os Tupiniquins. Antipatiza logo comigo e quase me excomunga, já vos disse. Mas, em abono da verdade, devo acrescentar que, anos depois, para me safar do pecado mortal, tentará casar-me com Potira. Aviso-o que tenho mulher legítima no reino. Escreve para Vouzela a saber novas de Catarina, se ainda é viva ou já finada. Não vem resposta. Na dúvida manda que eu acabe com a mancebia. Recuso. Repudiar Potira eu cá não repudio. Para escândalo do Padre decido continuar em pecado mortal…”. Feita a opção, aqui a deixamos. Mas pode ter sido essa atitude de coragem e decisão que fez cimentar a amizade que acima descrevemos. V- As suas observações acerca dos portugueses e dos índios Em continuação de quanto acabámos de dizer, achamos por bem registar, com base nessa “ Confissão” (cuja transcrição literal pode também lançar alguma e acertada confusão), as suas ideias sobre os seus conterrâneos portugueses e das comunidades índias que o adoptaram. Por facilitar a brevidade necessária, sintetizamo-las em tópicos, sendo dele as seguintes palavras, não avançando para a temática deste capítulo, sem respigar, de novo, alguns dados sobre a sua personalidade: - “ Para eles, marrano fugido ou degredado para o Brasil serei eu. Outros opinam que sou apenas um náufrago que deu à costa. Nada disto eu desminto ou confirmo. Padre: mais vale cair no mar fundo que nas bocas do mundo… Padre, foi por entre duas águas que atravessei a vida”. Confirma-se assim a nossa própria leitura e exposição. Passemos agora às proclamadas citações: - Recebendo dos índios uma outra esposa*, dela nos diz: “ Mulher nova, escorreita e muito limpa…” “ … Para eles pecado é recusar o que a natureza prazerosa manda colher. Vossa Reverendíssima escandaliza-se com a nudez das mulheres nativas e desvia os olhos para não mirar aquilo a que chama suas vergonhas. Mas se malícia existe não será nelas…Assim desnudas são elas mais discretas e modestas que as ataviadas damas do Paço… Uma coisa de comum têm as nativas com os reinóis: a Vaidade. Mas enquanto as de lá gastam os dias a escolher tecidos, brocados e roupas com que pensam adornar-se, estas daqui passam o tempo a fazer coçares com penas de aves e a fantasiar desenhos e motivos com que irão pintar os corpos umas das outras… Estes índios são muito asseados, chegam a tomar um, dois ou mesmo três banhos por dia. São muito diferentes dos portugueses que fedem como os porcos que trouxeram do Reino…” Na esteira de Caminha, este é um desabafo que caracteriza bem as duas sociedades e a compreensão que despertou em João Ramalho, sinal de percepção serena e de tolerância, que servem de suporte a acções futuras, tendo em vista a sua submissão a outros valores: “ … E eu já não sei , Padre, já não sei qual é a pior sujeição: se a física ou a mental “. Isto prova o seu grande discernimento e até a difícil delimitação dos campos, sendo que o mental – é a sua conclusão implícita – é sempre o mais melindroso. Aborda depois os rituais antropofágicos, que se verificam no seio dos grupos índios, confessando que actuou tal e qual como eles, mas não deixa de apresentar um pedido de desculpa, porque “… eu sei de horrores maiores cometidos lá no reino…”. Traz ao de cima a inquisição e as fogueiras “ … o que é grande maldade que não se usa por aqui…” A seguir a estes contributos antropológicos, atira-se em cheio aos próprios poderes: “ … Já Mem de Sá, terceiro Governador- Geral do Brasil, é um pau de dois bicos. Começa por proibir escravizar os índios. Mas, ao mesmo tempo, manda desimpedir as veredas de Paranapiaca e em 1560 extingue a Santo André dos meus guerreiros tupiniquins ( e de escassos peões portugueses) e promove S. Paulo a vila . E um nebuloso convite aos aventureiros. Porém convite: subam ao Planalto a caçar os índios… E eles começam a subir, ó se começam… E são perigosos, devastadores, pois os portugueses facilmente se adaptam a tudo: se não há farinha de trigo, pois coma-se a de Mandioca…” Neste resumo, resplandece uma das três características dos seus compatriotas: a adaptabilidade. Portanto, na falta de uvas, temos as jabuticabas; nas carências de bagaço de vinho, aguardente de milho; sem colchões, a rede; sem mulher branca, as índias. “ … Desleixados, sem planos prévios, levam tudo a eito, dispostos apenas ao trabalho de pôr os outros a trabalhar para eles, sequiosos que estão de honrarias e riquezas…” Explica assim, de uma forma simples e directa, os objectivos que presidem `a colonização: a busca de meios de enriquecimento e a ascensão social, o apetite pelos diversos territórios. Continua as suas observações, depois de abordar o ataque dos Tamoios a S. Paulo e o apoio que deu: “… aos seus moradores, homens de armar, padres, artesãos, mercadores e senhores de engenho, o povo todo…” Deixa então transparecer mais uma caracterização dos índios que seguem a natureza, enquanto “…. O português luta contra ela… (Quando as terras se esgotam) …constrói uma nova taba ou aldeamento, reconhece o novo território de caça … O índio está sempre a mudar de lugar, para ele não tem sentido a casa de pedra e cal… (nem) a acumulação de víveres…Já a ambição do português, habituado à penúria dos seus Invernos, é acumular de tudo o mais que possa … Nem os índios conseguem entender os portugueses – aos quais chamam de loucos – nem os portugueses conseguem entender os índios – aos quais chamam de selvagens-…” Com um sentido antropológico fortemente apurado, estas frases lapidares dão-nos uma grande ideia daquilo que pensava acerca de cada um dos povos. E nem a língua lhe escapa, quando afirma que os portugueses tiveram sorte em encontrar tupis ao longo de toda a costa, porque assim só tiveram de aprender uma língua, para mais já com alguns laivos de origem lusa. “ … Padre, estou velho e prestes a apagar-me. Português nasci e só ambiciono, na hora da morte, ouvir falar a minha língua natal. Só por isto tornei a esta vila de S. Paulo. É ainda esta minha pecha das duas águas… Tratai de encomendar-me a alma a Nosso Senhor, deus dos brancos, que um pajé, antes do meu retorno, já a encomendou a Tupã, deus dos índios.” Neste sentimento ambivalente, João Ramalho regressa às origens sem nelas ficar. A saudade da terra- mãe corrói. Mas o apego ao solo brasileiro e aos seus novos companheiros de jornadas atraem-no sempre, até na hora em que a morte parece chamá-lo. É este o destino dos homens que tudo deram pela defesa de suas causas e valores, por mais estranho que nos pareçam algumas de suas atitudes. VI – Conclusão Num trabalho deste género, em que a componente de estudo de caso se destaca em relação às demais, é provável que haja alguns excessos de linguagem ou até de conceitos, de modo a valorizar a entidade que decidimos trazer para a tábua da análise em questão. Apesar de termos laços de sangue com a região de origem de João Ramalho, tentámos não nos imiscuirmos, em demasia, em tudo quanto diga respeito a sua vida, recheada de peripécias, de defesas acérrimas e de oposições ferozes, evidentes nas linhas atrás transcritas. O nosso discurso pretendeu ficar de fora dessas quesílias, como forma de preservar a parte académica, que presidiu a esta escolha. Pegando na visão de Gilberto Freyre, que abarcou as dimensões sociológica, antropológico- social, ecológica, histórico – cultural e científico- humanística, assim actuámos, tendo em linha de conta que, em matéria de ciências sociais e das ideias, todo o terreno é fluido e escorregadio, não havendo nunca verdades eternas. Realidade e ficção, segurança argumentativa e hipóteses, de tudo isso povoámos esta caminhada, que apenas pretendeu, como disse G. Freyre, dar mais um passo em frente na senda do conhecimento do povo brasileiro, a parte maior da lusofonia a que pertencemos todos. Foi este o nosso espírito e o ânimo que nos carregou as baterias. Se conseguimos chegar ao alto da colina, tanto melhor. Se ficámos a meio, resta-nos a consolação de talvez termos aberto a porta para outras eventuais pesquisas e novas sugestões.

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