quarta-feira, 19 de abril de 2017

Recordar tempos vividos...

Vozes da rua Venho de um tempo em que, para as crianças e outros sectores etários, a rua era fundamental, sendo mesmo um pilar essencial para a nossa formação enquanto pessoas, ao mesmo tempo que se aprofundavam laços de identidade e de apego aos chãos onde nascemos e crescemos. Nela, se brincava, se falava, se teciam projectos, se olhava para o relógio de sol que regia o sistema de rega pública, se ia à fonte e parava no tanque público, se coscuvilhava também a vida de cada um e mais alguém. Nas terras, se lutava pelo pão nosso de cada dia para toda a família, na escola, curta, mas densa, se aprendiam umas luzes de ciência, de bem escrever e de bem resolver problemas, sem máquinas ou subterfúgios, a ponto de se sair (para quem tinha essa honra e privilégio) com um quarta classe “à maneira”, em dia que era de festa com foguetes e tudo, em competição com aqueles que os Sardinheiros, que vendiam a sua sardinha também na rua, atiravam para o ar à sua chegada ao ponto central da aldeia. O mundo mudou. Hoje, há pouca rua e muita casa com computadores a mais e brincadeira e menos, para os mais novos, que tanto dela precisam. Hoje, quase já não se convive nesses espaços de sociabilidade, nem neles se fazem negócios. A rua perdeu a sua vida própria, com prejuízo para todos nós e, sobretudo, para as gerações que não a têm como seu bem precioso. Apesar de assim estar esvaziada de seu conteúdo, importa que se diga que, há quarenta anos para trás, nem tudo se podia fazer na rua, mormente nas cidades: ajuntamentos, por minutos, de duas e mais pessoas cheiravam logo a conspiração e a repressão, encapotada, poder-se-ia fazer sentir. Aí, a rua não era sinónimo de contentamento, mas fonte de medo. Com o 25 de Abril, que faz precisamente quarenta anos este mês, essa vertente tenebrosa desapareceu. Ou seja; ganhou-se a possibilidade de se estar ao ar livre com tudo o que de bom isso tem, mas, com o aparecimento e disseminação das ditas novas tecnologias, recebeu-se com uma mão e com a outra fez-se fugir essa boa possibilidade. Tenho por costume pegar num título que me vem à cabeça, a propósito de um qualquer tema que pretendo vir a tratar, e, depois, fazer encher as páginas do computador com aquilo que surgir a cada momento, algo anarquicamente, até chegar ao objectivo inicial. Hoje, para exemplo, tudo quanto atrás escrevi saiu-me assim nem sei como: queria trazer aqui o que se tem andado a ouvir nas ruas, quanto às exigências feitas aos nossos agricultores, e deambulei pelas minhas memórias. Calhou. Há, porém, uma coincidência: em Lisboa, que é onde quero ir buscar lenha para esta boa fogueira das notícias e opiniões, foi gente da lavoura que ali esteve nas ruas para se fazer ouvir. Aquelas minhas notas saíram de quem teve a ruralidade como sua primeira e boa referência. Aceita-se, então, o devaneio que apareceu pelo meio. Onde é que queria chegar com o título “Vozes da rua”? A um ponto concreto: à necessidade de os nossos governantes darem atenção a quem ali, e assim, se expressa. Não é para dizer que se actue sempre de forma a contentar tudo e todos. Isso é impossível. Mas também não é para se fazer orelhas moucas a essas vozes. No que diz respeito à manifestação de agricultores, divido as suas reivindicações em duas: baldios, por um lado, e exigências fiscais, descabidas de todo, por outro. Quanto ao primeiro tema, como tenho uma visão algo diferente do que pensam os promotores da iniciativa, entendo que há mesmo matéria para mexer. Qual? Discuta-se isso. No que se refere aquilo que a governação quer dos nossos humildes e sacrificados homens e mulheres da lavoura, onde pontifica, infelizmente, a terceira idade, aí estou totalmente a seu lado. Vejamos porquê. Ao querer-se pedir à nossa gente de unhas negras e mãos calejadas que tenham, nas Finanças, a inscrição como actividade comercial, que declarem o início de funções, que emitam facturas de todas as transacções, que paguem uma prestação mensal para a Segurança Social, é pior que mandar as vacas deixarem de dar leite, que cortar as vinhas, que desmantelar os barcos da pequena pesca, porque, num e noutro caso, é a agricultura e a pesca que se matam assim atrozmente, sem quaisquer contemplações. É crime encapotado, por fazer com que os campos se esvaziem e o interior fique cada vez mais um deserto e o mar ao jeito dos tubarões. Esta gente, digo-o, na primeira pessoa sem quaisquer meias medidas, não sabe o que faz. Logo, dou todo o meu apoio, neste aspecto, à malta que andou nas ruas de Lisboa a gritar. Faltei lá eu, mas também só teria meia voz, que, nos baldios, ficaria de bico calado. Para este efeito, ainda temos rua. Viva ela! NOTA: Sinto uma enorme dor e um imenso pesar ao ver partir um Homem com letra muito grande, que soube encarar a doença com frontalidade e serenidade, que partiu contente consigo e sua (triste) sorte. Coloquei entre parêntesis aquela palavra, porque Manuel Forjaz viveu o seu destino com um sorriso nos lábios e fortes mensagens de encorajamento. Grande exemplo nos deixou. Que descanse em paz!... Carlos Rodrigues, in “ Notícias de Vouzela”, há tempos

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