sexta-feira, 19 de junho de 2020

Médico de Oliveira de Frades conta a sua dura história de doente Covid 19...

Médico conseguiu espantar o vírus - Dr. Grade esteve dias e dias do lado de lá Um dia, a notícia de que estava contaminado colheu de surpresa o Dr. António Cabrita Grade, médico, residente em Oliveira de Frades. Como Director do ACES Dão Lafões- Agrupamento de Centros de Saúde – tinha estado na primeira linha do estabelecimento de medidas e práticas destinadas às áreas dedicadas ao combate à Covid 19. Uma das hipóteses para ter sido atingido pelo vírus pode passar por aí, por essas funções, ainda que não relacionadas, em princípio, directamente com doentes. Outra, quem sabe, talvez se ligue a outras fontes de contágio, apesar dos cuidados que disse sempre ter. A verdade é que veio a cair no seu próprio Hospital, o de Tondela/Viseu, onde permaneceu largos dias em frequentes e prolongados tratamentos, sem que disso se tenha dado conta. Adormeceu. E assim esteve semanas nos Cuidados Intensivos, ligado às máquinas, sem saber onde estava. Até vir para uma enfermaria, nunca se lembra de alguma vez ter consciência do que lhe estava a acontecer. E era grave, muito grave. Felizmente, a boa notícia veio a aparecer, como nos conta na entrevista, ao vivo, que nos concedeu. - Como é que um cidadão, que também é médico, toma conhecimento de que está contaminado com Covid 19? Que sensações? - Essa notícia, como é natural, confronta-nos com uma realidade à qual não podemos fugir... Como médico, sabemos que nas nossas funções corremos riscos, apesar dos cuidados que temos. No nosso dia a dia, estamos, de certa forma, familiarizados com este género de situações. Cabe-nos, por missão, tratar dos doentes e, neste caso, na primeira linha dos combates que é precido travar, onde não se pode ser cobarde, mas também não sermos heróis de pau carunchoso... Posso ter sido contaminado no âmbito das funções que desempenho. Estive durante algum tempo em funções absorventes na criação das medidas a tomar em prevenção, estabelecimento de áreas dedicadas e respectivas equipas. Mas também não excluo a hipótese de o ter sido noutros quaisquer meios. - Isso quer dizer que todos nós estamos sujeitos a apanhar o vírus... - Essa é uma verdade que a todos abrange. Precisamos, assim, de ter todos os cuidados que nos exigem as autoridades da saúde... - Que sintomas sentiu antes de saber que tinha sido atingido por esta doença? - Curiosamente, não me senti mal. Oito dias antes tinha até feito um teste que deu negativo. Sei que tive, depois, uma certa tosse e episódios de febre a que não liguei grande importância, por ter bronquite... - Disse que tinha feito um teste. Fê-lo por iniciativa pessoal, ou por qualquer suspeita? - Foi um pouco até para averiguar como funcionavam os serviços que acabáramos de instalar. Entretanto, dez dias após estes episódios, por ter, de novo, febre e tosse, dirigi-me ao Hospital à área dedicada. Aí, fizeram-me um Raios-X e logo detectaram uma pneumonia e, mais tarde, uma infecção pulmonar e respiratória provocada pela Covid 19. Acabei por ser internado e deixei de me recordar do que aconteceu a seguir, após o segundo dia de internamento. - Perdeu toda a noção do que lhe estava a acontecer? Deixou de saber onde estava? - Perdi todo o contacto com a realidade. Nunca mais senti nada. Passei a estar sedado e ventilado. Tudo se complicou, posteriormente, com uma falência multi-orgânica, renal, respiratória e noutros domínios. - Então, como ficou a saber o que ali passou? - Só tive conhecimento dos sítios onde estive e do que sofri através do testemunho, posterior, de meus colegas... - Tem alguma ideia de quem o tratou e o acompanhou nesses momentos altamente complicados? - Posso dizer que quem me internou foi o Dr. Miguel Sequeira, Director dos respectivos Serviços. Lá dentro, foram muitos os médicos, os enfermeiros e mais pessoal que cuidaram de mim, com todo o cuidado e dedicação. Mas prefiro não citar nomes para não falhar. Muitos trabalharam comigo no INEM e eram por isso meus conhecidos. Todos tiveram uma atitude altamente profissional... - Foi por ter sido o Dr. Grade, o colega e o amigo? - Não. De forma nenhuma. Procedem assim com todos os doentes, em modo dedicadíssmo e muito competente... - Essa é a imagem do Serviço Nacional de Saúde e de quem nele trabalha, em Viseu e por todo o País? - Tem razão. É isso mesmo. O SNS tem funcionado em pleno. Precisamos mesmo de o louvar. Esta foi uma altura em que até o sector privado ( a que me não oponho, de maneira alguma) esteve fora destas questões... - Lembra-se de quem esteve consigo internado? - Nâo tenho ideia nenhuma. Dizem que nos cuidados intensivos fui a pessoa com a situação mais complicada... - Passemos agora para um outro campo, o da família. Como é que os seus familiares lidaram com este problema? - De uma forma muito complicada, até porque outros desses familiares também foram contaminados e um deles chegou a ser internado, tendo tido alta pouco tempo depois. Sem que eu pudesse contactar com eles, mais se agravou a situação. De mais a mais, sendo visto como doente de alto risco, por ter diabetes, ser algo obeso, ter sido fumador, esses factores pesaram ainda mais nas sensações preocupantes que viveram nesses dias... - Depois de regressar a uma certa normalidade e a recuperar a consciência, conte-nos as suas reacções... - Posso contar dois casos curiosos, que não sei explicar. Um deles é este: tive uma conversa com minha mulher para lhe perguntar se tínhamos andado num cruzeiro. Tenho uma ideia que esse “sonho” me passou pela cabeça. Senti-me num barco e no mar, mas não saí do quarto por me sentir doente durante a viagem... Um outro relaciona-se com a nossa formação judaico-cristã: tenho na cabeça que vagueei por uma procissão que fizeram em redor da minha casa em oração e pedido de melhoras para mim... É disto que me lembro... Dizem-me que quando fiz anos me cantaram os parabéns e que eu mostrei reagir. Mas não tenho noção nenhuma... - No momento em que teve alta ou saiu do Hospital, o que lhe passou pela cabeça, de imediato? - Quero dizer que, ao sair dos Cuidados Intensivos, fui para outro local e aí sei que sofri muito, física e psicologicamente e muito limitado nas minhas capacidades, estando altamente dependente. Não tive, por isso, uma reacção muito positiva... Passei ainda por uma instabilidade emocional, que me levou a negar até a doença que estava a sofrer... Mas recordo bem o facto de uma Colega minha, a certa altura, se ter abeirado da minha cama, vindo sem o “escafrando” e me dar a boa nova de que, feitos os testes, já estava livre do vírus. Aí senti-me bem... Pensei mesmo que me tinha saído a sorte grande... Entretanto, devo dizer que, na fisioterapia, tive de reaprender tudo: o movimento das mãos, o andar, o equilíbrio, tudo... - Como se sente agora que está em casa, com sua família, com os amigos? - É evidente que muito melhor. Mas ainda tenho um fisiatra e um fisioterapeuta que me acompanham diariamente e já ando, já começo a conduzir e a fazer e minha vida... - A terminar, deixe-nos um seu conselho, na medida que passou por um quadro clínico tão grave... - Antes, quero dizer o seguinte: temos a mania de criticar o SNS, mas é para ele que aconselho a que se vá, quando a doença nos bater à porta. A sua gente é espectacular. Quanto a mensagens, que se continue com os cuidados que temos seguido. Os portugueses têm sido excepcionais em cidadania. Os serviços têm mostrado alta capacidade e dedicação. Mas, a haver uma nova vaga, que não é de excluir-se, temos de estar preparados para isso. Não podemos entrar em facilitismos. A pandemia ainda anda por aí... - Terminamos esta conversa com umas notas, compiladas pelo Dr. Grade, retiradas de Fernando Pessoa: umas coisas a saber – estamos sempre a começar, é preciso continuar, mas podemos ser interrompidos antes de terminar. Devemos sempre trilhar um caminho novo, fazer da queda um passo de dança; do medo, a escada; do sonho, a ponte; da procura ao encontro... Sempre... Carlos Rodrigues, in “Notícias de Vouzela”, 18 Jun 2020

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