sexta-feira, 20 de maio de 2022

Quando ser de Lafões é um enorme estado de alma

Ser de Lafões é grande sentimento Carlos Rodrigues, in “Ecos da Gravia”, Abril 2022 Nós, os que temos o privilégio de vivermos entalados entre as Serras da Arada, de S. Macário, por um lado, na vertente norte, e pela Serra do Caramulo, a sul, podendo molhar os pés no Rio Vouga, que corta o nosso território regional em duas partes, nunca separadas e sempre unidas, podemos dizer que somos uns felizardos: sem a escolhermos, acabamos por ter como mãe e matriz uma das melhores regiões do mundo. Ricos pais e antepassados foram os nossos, que nos possibilitaram o uso deste chão sagrado, que, herdado por empréstimo, temos obrigação de o legarmos bem melhor do que aquele que recebemos de mão beijada… Com o sol a aquecer-nos e a chuva a alimentar as nossas plantas e ervas e a fazer com que os solos dêem tudo o que podem para que possamos ter pão e vinho quanto precisemos, para além de uma carrada de outras iguarias, não somos daqueles que nos podemos queixar nem de três meses de Inferno nem de nove de Inverno. Coube-nos, na fatia do bolo que Deus distribuiu pelo mundo, uma terra que bebe do mar a macieza do seu clima e recebe da serra apenas as pitadas de frio e neve quanto bastem, regra geral. Na marcha da história, temos andado anos a fio a pensar que somos uns velhotes quaisquer: ora falamos em termos por aqui aparecido há dez ou oito mil anos antes de Cristo (a.C), ora recuamos um pouco mais, Mas nunca chegamos à idade certa e, talvez, jamais alcançaremos esse saber absoluto, sem meias tintas. Um dia, a ciência traz-nos uns dados e lá vamos nós para trás mais uns milhares de anos. Uns meses mais tarde, o relógio tem ainda de ser muito mais atrasado e a nossa velhice faz maior a corcunda que nos faz dobrar as costas… Numa ciência que pouco sabe do que fomos, as verdades que ela hoje escreve, amanhã serão quase mentiras, porque foram ultrapassadas por novos conhecimentos. Nisto de procurarmos as nossas raízes, até as tragédias, infelizmente, por um lado, com felicidade por outro, nos fazem chegar novos dados. Veremos isso já de seguida. Uma grande alavanca para começarmos uma espécie de inventário das novas investigações e seus resultados são as “Actas das I Jornadas de Arqueologia de Vouzela-Lafões”, edição do Município de Vouzela, 2021. Nelas se inseriram as comunicações feitas e que se integraram no “Estudo do Património Histórico-Arqueológico do Concelho”, 2016/2019, coordenado por Manuel Luís Real. Numa visão mais alargada, oferecem-nos um panorama praticamente regional, com referências aos três concelhos: Vouzela, Oliveira de Frades e S. Pedro do Sul. Pensado este trabalho ainda antes dos trágicos incêndios de 2017, quis o negro destino que dele beneficiassem os seus autores em termos de descobertas várias, que apareceram um pouco por todo o lado onde as chamas fizeram o seu caminho. A desgraça de muitos foi a “sorte” da arqueologia, que juntou ciência à ciência que ia fazendo ao longo dos anos nestas terras de Lafões. E estes achados fizeram com que nos tornássemos muito mais velhos do que aquilo que íamos alimentando. De um momento para o outro, o cartão de cidadão do território lafonense teve de ser altamente alterado, recuando milénios na sua idade… Para termos ideia do que se modificou, basta-nos atender a estes registos quanto à existência de estruturas tumulares neocalcolíticas e proto-históricas, tomando como ponto de partida o ano de 1921, data em que Amorim Girão publicou a sua obra básica sobre esse nosso passado , e o ano de 2020, passando-se de 54 monumentos (1921) para 243(2020), da forma que se passa a detalhar: - Ano de 1921 – Oliveira de Frades (OFR) – 23 monumentos; S. Pedro do Sul (SPS) – 12; Vouzela (VZL) – 19, Total – 54 - 1966 – OFR – 35; SPS – 12; VZL – 18; total – 65 - 1998 – OFR – 29; SPS – 12; VZL – 21; total – 62 - 2017 – OFR – 2; SPS – 38; VZL – 45; total – 85 - 2020 – OFR – 55; SPS – 45; VZL – 143; total – 243. A par destes números, que são verdadeiramente elucidativos face àquilo que pretendemos demonstrar (o enriquecimento do conhecimento exponencial do nosso passado), podemos ainda, entre tantos outros factos, acrescentar a descoberta de um novo aglomerado aldeão, os Lameiros Tapados/Ventosa, e o arejamento de teses já anteriores que nesta altura viram novos sinais de análise e de reflexão. Inclui-se nesta releitura a própria designação de Lafões e as fundamentações que apontam para a sua origem no Monte de Nossa Senhora do Castelo, associando-se, mais tarde, ao Lafão, para então se falar nos dois irmãos “Alavoenis”/Lafões. Tal como em tudo na vida, a última palavra, neste campo, ainda está longe de ser encontrada, até porque todo o caminho só se faz caminhando… Muito embora já há alguns anos se tivesse falado da escrita em Lafões, que tem nos séculos X e XI alguns dos seus significativos exemplares que no ANTT se podem encontrar, como uns documentos de 1092 e 1100, S. Vicente de Lafões, e um de 1083, sobre a situação geográfica da vila de Vouzela, entre tantos outros, temos de afirmar que este fenómeno do registo em letras da nossa língua não se pode restringir apenas ao papel e pergaminho, passando pelo uso de muitos outros suportes, como a argila e as pedras graníticas, mais estas aqui para os nossos lados. Assim, na Serra de Silvares, ali para a zona da divisão dos concelhos de Vouzela e Tondela (e talvez Viseu), há uma curiosa expressão que retrata uma das grandes preocupações dos habitantes de todas as épocas, desde a antiguidade aos nossos dias: a partilha das águas. Então assim se escreveu: AQVA DGO (DIVERGIO)/ ARGONTIORVM; AD (A/quae)D(ivergio)/ ARVONI; HF (Hic Finis)/SEARI/AQ.DIV. E por cima do penedo “TRI”. Se há folhas que se podem guardar em gavetas, estas rochas, imortais, têm como seus armários os nossos montes e vales, como acontece, nestes locais de mais baixa altitude, com os registos feitos nos milhares de marcos miliários que se encontram ao lado de cada uma de nossas estradas romanas. Alguns deles podemos observá-los, por exemplo, nos Museus de Oliveira de Frades e Vouzela, assim como podemos ver inscrições balneares nas Termas de S. Pedro do Sul. Com a toponímia a ser mãe de muito deste conhecimento, o Outeiro do Castro e o Outeiro das Bouças, encaminham-nos para estas áreas científicas, assim as saibamos descodificar e transferir para as esferas das nossas aprendizagens. Tendo partido do espólio conseguido depois dos incêndios de 2017, nesse seu trágico mês de Outubro, anexamos ainda uma outra fonte de informação, que foi a da construção do Aproveitamento Hidroeléctrico de Ribeiradio-Ermida, em cujas escavações vieram ao de cima outras jóias raras da nossa cultura, como uma pequena placa de rocha metamórfica, encontrada no Vau/Bispeira/S. João da Serra, que, no dizer de Filipe Soares, é “ a mais antiga manifestação conhecida da arte pré-histórica de toda a região”. Nela se observam as figuras de cavalos, peixes e antropomorfos vários, datando-se do período magdalenense, aí uns 15000 a 9000 anos aC. Nota-se, com este fecho, por hoje, que os 3000 a 5000 anos aC das nossas antas foram claramente abafadas por aquelas idades. Como lafonenses, somos mesmo orgulhosamente muito velhinhos. E isto é um enorme prazer e uma responsabilidade sem fim que temos de transmitir às gerações que vierem a seguir. Sejam elas muito felizes, que, nós, agora, em 2022, estamos a viver mais uma guerra, depois de uma enigmática pandemia e de uma alta crise financeira e económico dos anos 2007 em diante. E há gente que ainda não percebe a gravidade destes tempos de agora… Infelizmente

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