sábado, 21 de junho de 2014

A morte levou-nos Jaime Gralheiro... Assim o retratei em 2010, no "Notícias de Lafões"

Dr. Jaime Gralheiro, um poço de energia I – O rapaz da Serra de S. Macário Lá no alto, o S. Macário, com réplica carinhosa e em diminutivo alguns metros abaixo, marca a cadência das vidas das gentes da Serra que neste Santo colheu o nome. Herói das brasas, deu o mote para projectos pessoais que se revestiram de um grande calor pessoal: o Dr. Jaime Gralheiro, por certo, pescou neste lume o seu próprio fado. Quente nos afectos, carregado de fogo nos pleitos judiciais – fujam adversários, que aí vem o Jaime! – e sempre em cima de tudo quanto seja assunto social e político, este advogado e autor teatral tem tudo para não mais ser esquecido. Lafões tem para com ele uma eterna dívida de gratidão cultural e a muitos outros níveis. É por estas e outras razões que o «Notícias de Lafões», por este meio e este interlocutor, aqui lhe consagra duas crónicas, esta e uma outra. Habituei-me, desde menino e moço, a ouvir falar neste Senhor. Vivi, inclusivamente, em casa de seus familiares, por afinidade, em Ribeiradio e tive em seu tio, o Dr. António Pessoa, que lia a “República” com devoção e convicção e ma cedia, diariamente, em grata recordação que aqui evoco, um grande amigo, o que mais fez vir à mesa o exemplo batalhador do causídico de S. Pedro do Sul, que fazia do escritório e das casas da justiça as suas espectaculares tribunas. Conhecia-lhe, ainda, a veia artística e, meio em surdina, também vinham ao de cima as suas opções políticas, estas contadas no canto da Farmácia, ou atrás do balcão onde eu vendia de tudo, desde um copo de tinto a um bocado de sabão, um quarto de litro de azeite ou petróleo, meio Kg de carboneto, um metro de fioco, um pacote de açúcar em cartucho fechado à mão, com um peso acrescido, no fundo, de uma massa-cola meio farinha, meio qualquer coisa que nunca percebi, ou mesmo dez réis de amendoins em pacote cónico que aprendi a produzir enquanto o diabo esfregava o olho. Foi desta maneira, desde 1962, mais ou menos, que o Dr. Jaime Gralheiro me começou a visitar, despertando sempre visível interesse. Encontrei-me, depois, muitas vezes com ele, chegando a partilhar projectos e ideias comuns, na oposição ou já depois do 25 de Abril, quando, regressado eu do serviço militar em Moçambique, me vi a dar os primeiros passos num jornal a que ambos estivemos, com muitos outros cidadãos de Lafões, amplamente ligados – o “Vouga Livre”. Como o sol não aquece todos da mesma maneira, chegou o momento em que enveredámos por caminhos diferentes. Mas houve um tronco comum que sempre me ficou: a amizade e a consideração por este grande Senhor. Nascido em Macieira, freguesia de Sul, por ali calcorreou os trilhos de uma Serra que a todos encanta. Creio que aprendeu de cor os seus penedos, os seus regatos, fontes, moinhos, currais de gado, casas e casebres de Sul à Santa Mafalda de Arouca, sem esquecer, como é previsível, a vila que ficava lá tão longe, onde o seu Rio Sul se fundia com o Vouga, dando nome à actual cidade – a de S. Pedro, que fugiu das montanhas e rebolou pelas águas abaixo… Conviveu com as minas, viu no volfrâmio o ganha-pão de seu pai, que, por isso, lhe permitiu voar para Lamego e Porto, onde aprendeu as letras do 1º ao 7.º ano do liceu, antes de entrar na Faculdade de Direito de Coimbra, aí concluindo o seu curso com a menção de bom. Amigo da boémia, quanto baste, foi rapaz das Repúblicas, mexeu com a malta e vivência académica, leu sebentas e livros, bisbilhotou as meadas da política, animou a agitação febril daqueles tempos e costumes, enfim, fez os alicerces do futuro cidadão e advogado que às causas da vida haveria – e continua a fazê-lo, entre a Barra e S. Pedro – de consagrar os seus dias. Se o escritório ( ali a dois passos dos Paços do Concelho, em boa vizinhança, crendo que entremeada de muita crítica, sobretudo antes do 25 de Abril e após essa data, sempre que lhe subiam os azeites), era o palco profissional, nada disso lhe tirava o gosto – que felicidade para todos nós! – pelas letras, pela bicada social, pela tirada política. Ao iniciar a carreira artística logo nos bancos liceais, é no Colégio João de Deus, no Porto, que faz desabrochar a sua primeira obra, assim começando a enorme sementeira de peças teatrais com “ Feia”, 1949. Contam-se às dezenas os trabalhos que o seu labor e a sua capacidade criativa foram dando à luz em partos sucessivos, normais talvez grande parte deles. Em cada uma dessas produções e não é difícil descobrir tais notas, de imediato ressalta a escrita agradável e o tom de crítica social, suportes desses nacos da nossa dramaturgia, muita dela de ridente e cáustica veia vicentina, em estilo e conteúdo. Alvo privilegiado das canetas azuis da antiga e nefasta censura, o Dr. Jaime Gralheiro era mestre em fintar esses cortes, mas nem sempre a habilidade demonstrada levava a água ao seu moinho. Quando assim sucedia e o caldo se entornava, aceitar era o remédio tomado a muito contragosto e com um sorriso sarcástico, dorido, mas mesmo assim de orelha a orelha. Cá para nós, em seu vigor e estirpe lutadora, não demorava muito a deixar fugir uma ideia muito sua, sinal de uma fortíssima personalidade: se assim mas fizeram, assim mas pagam!... Nesta carreira brilhante, que o levou às bancadas da Sociedade Portuguesa de Autores e aos vários prémios e distinções, é vasto o campo onde podemos fazer robustas colheitas. Com apetite especial por toda a sua obra, muito infelizmente ainda a não conheçamos ao pormenor, debruçar-nos-emos, prioritariamente e por motivos que têm a ver com a necessidade de seleccionar e escolher, sobre aqueles temas que mais estiveram na berra, ou mais tocam a nossa terra, como sejam as peças “ Arraia Miúda “, ou “ Lafões é um jardim”. Se o teatro tem sido a sua consagração maior, também a prosa lhe não escapou, como se pôde ver ainda muito recentemente. É disso tudo que vamos falar daqui a dias. Mas seria erro imperdoável se não disséssemos que esta figura pública da nossa cultura e da nossa vivência social também deu notáveis contributos à política em geral, ao poder local em particular, à comunicação social, à animação de eventos, até por ser um comunicador nato e por excelência, e, muito especialmente, a essa grande Instituição que é o Cénico – Grupo de Teatro Popular, de S. Pedro do Sul. Com tão apreciável “curriculum”, difícil é saber por onde continuar. Mas é isso que faremos, então, em próxima ocasião. // Carlos Rodrigues

Sem comentários: