sexta-feira, 20 de julho de 2018

Dos apontamentos à História de Lafões

Apontamentos que nos levam ao conhecimento de Lafões Das crianças enjeitadas aos novos cemitérios, passando pela justiça Cada uma de nossas terras tem escondidos muitos testemunhos e, alguns deles, vão surgindo por mero acaso. Quando aparecem, é mais uma luz que se acende no mundo do conhecimento. Sem falarmos, sequer, naquilo que a arqueologia nos faz chegar, é frequente toparmos com novos documentos e pistas que nos abrem horizontes até então meio obscuros. Há anos, tivemos o privilégio de recebermos a transcrição de um manuscrito que tinha sido encontrado pelo bom amigo e saudoso José Guilherme Cruz numa de suas casas, em Ventosa, referente ao século XIX. Pegando nesses importantes papéis, António Lopes da Costa, infelizmente também já desaparecido, dactilografou-os e assim chegou às nossas mãos essa gentil oferta, numa altura em que os três partilhávamos os bancos da Assembleia Municipal de Vouzela. Bons e recuados tempos foram esses! Agora, quando andamos às voltas com a nossa papelada, demos de caras com esta relíquia, estas folhas avulso. Filho sem pai e sem data de nascimento, a existência deste documento não nos diz tudo, mas deixa muita coisa no ar e viabiliza a entrada, por indução, em novos caminhos. A história é, muitas vezes, este exercício solitário da aventura da descoberta de hipóteses que podem ou não ser verdadeiras. Tentamos, no entanto, ir ao fundo daquilo que nos fazem despertar e tirar delas algo de útil para melhor sabermos de onde viemos e com que linhas foi cosido o tecido do nosso passado. Pisando os nossos montes, foi assim que Amorim Girão desvendou segredos sem fim a nosso respeito. Sem grande método, nesse material é feito um passeio por vários pormenores da vivência dos princípios do século XIX, que nos mostra, por exemplo, a dura realidade dos “enjeitados”, crianças colocadas na roda para serem recebidos por alguém, ficando à mercê de possíveis boas vontades. Esta foi uma prática muito usual em tempos que não estão assim muito longe de nós, talvez nem duzentos anos. Em Oliveira de Frades, a toponímia local atesta esta crua realidade e o seu Arquivo Municipal está cheio de situações dessa natureza. Aliás, o Arquivo Distrital de Viseu cita o “Guia de entradas dos expostos” dos anos de 1874 e 1875, deste concelho, nessa altura já com a designação de “hospícios”. Para melhor contextualizar esta matéria, acrescente-se que as “casas da roda” partiram de uma determinação de Pina Manique, de 10 de Maio de 1783, que as tentou espalhar por todo o país. Ainda com base em Oliveira de Frades, na reunião da Câmara de 26 de Março de 1900, foi analisada a cópia do auto de abandono duma criança do Olheirão, tendo este órgão municipal mandado baptizá-la, arranjando-lhe uma ama e respectivo pagamento, chegando a questionar-se mesmo um subsídio de lactação. Entretanto, diz-se nas folhas aqui citadas que “ No fim de sete anos de criação e, às vezes, mais tarde, são os enjeitados entregues a lavradores para os servirem, ou a mestres de ofícios para os ensinarem”. Entretanto, neste meio tempo entre esse passo e a anterior colocação na citada roda, cabia às Câmaras custear parte das despesas com o apoio a dar a estas crianças abandonadas, como vimos no parágrafo anterior, constatando-se, porém, que em muitos casos “havia bastante desleixo nas despesas “efectuadas. Num outro dos capítulos desta papelada, fala-se muito em coutos, num tom bastante depreciativo para estas instituições e, sobretudo. em matéria de aplicação da justiça, critica-se fortemente um dos inconvenientes aqui aflorados, porque “ se vê com evidência as delongas e estorvos que sofrerá nas suas execuções, sendo preciso fazer deprecadas, porque cada Juiz tem jurisdição ordinária”, o que quer dizer poderes muito próprios. E pergunta-se: “ Que tempo e que despesas farão as partes litigantes, vexadas com tantas demoras, não havendo mais que uma audiência por semana?”, adiantando-se mesmo que a “Justiça dos coutos é justiça dos compadres”. Não se pense, à luz dos tempos actuais, que fazemos maus juízos, mas o que aqui se relata, mais coisa, menos coisa, ainda hoje tem semelhanças que chegam a bradar aos ceús. Desta forma, quase podemos afirmar que, neste campo, há manchas que custam a sair. Aventa-se, nestas folhas, que o concelho de Lafões, extintos os tais coutos, pode formar dois julgados, cujas capitais serão Vouzela e S. Pedro do Sul, separados pelo Rio Vouga: na margem esquerda, Oliveira de Frades, Covelo, parte do Banho, Arcozelo e S. João do Monte, para Vouzela; à direita, Goja, Rio de Mel, parte do Banho, Trapa, Ribolhos, Mões, Sul, Reriz, Alva, Gafanhão, para S. Pedro do Sul. Uma outra grande parte deste trabalho é dedicado a um tema então em acesa discussão que era o dos enterramentos nas Igrejas e seus inconvenientes de ordem médica e higiénica, o que motivou a criação de cemitérios públicos por legislação de 21 de Setembro de 1835, no governo de Rodrigo da Fonseca. Pelo meio, esta determinação gerou intensa polémica a até uma revolta generalizada, a da Maria da Fonte, aspecto a que nos dedicaremos em próxima edição, porque estas folhas ainda têm pano para mais mangas. (Continua)... Carlos Rodrigues, in “Notícias de Lafões”, 19 Jul18

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