domingo, 26 de fevereiro de 2017

Há quatro anos, pastores na Serra da Arada...

Ainda há pastores como antigamente, na Serra da Arada No sábado à tarde, pus-me a escalar as Serras de S. Pedro do Sul e de Lafões, com um propósito claro: rever maravilhas de encher o olho, de deixar a alma satisfeita e em delírio, sorver pedaços de uma terra – a nossa – que tem sempre mais e mais a dar-nos. Partindo de Oliveira de Frades, dei de caras com o Rio Vouga, lá em baixo, naquele recanto de beleza, Sejães, que se passa devagar, para melhor saborear o que nos entra pelos olhos e ouvidos dentro, como sejam a riqueza verde dos montes e o sussurrar do Rio, que ali até parece falar. Trepada a encosta de Valadares, já em pleno concelho de S. Pedro do Sul, mas sempre de olhos postos em Oliveira, vale a pena parar, que aquela varanda de casario e canteiros trabalhados, quase ajardinados, virados a sul, bem merecem uma atenção especial. Cruzada a estrada do Porto, via Serra, como antes se lia no centro da agora cidade sampedrense, quando se sobe em direcção à mágica e mítica Manhouce, que vozes de ouro têm vindo a globalizar e a divulgar, sem muros e sem constrangimentos, porque há ali cultura, um grito de dor começa de nos invadir: o monte depenado, ressequido, empobrecido e enegrecido por incêndios de anos e anos, uns atrás dos outros, sendo que o mais recente, o de 2010, deixou rastos de destruição e de morte, como, aliás, já acontecera, aqui há uns tempos, no Preguinho de triste memória, tudo isto pede uma reflexão profunda. Durante quilómetros, o que ressalta é esse infortúnio de áreas e áreas destruídas, sem cor, sem a força verde da sua pujança de outros tempos, convidando-nos sempre para a lembrança de um mundo e de uma época em que estes valores, ao perderem-se, são tesouros que não voltam, ou demoram décadas e séculos a serem, de novo, aquilo que têm por missão e grandeza vir a constituir no diálogo homem-natureza. Paradigmática deste quadro de entristecer é, por exemplo, a aldeia de Vilarinho do Monte, a da Casa dos Caçadores, onde as labaredas não deixaram de se encostarem às casas e às propriedades agrícolas, num cenário desolador. Apesar de assim ser, uma manada de pachorrentas e educadas vacas, daquelas civilizadas, que, devagar, se encostam para permitir que os carros sigam o seu destino, que ali vinham sem “doeiro”, vieram dizer que o milagre da vida não se desfaz assim do pé para a mão: vontade e resiliência é o que por ali se vê, desta forma emblemática – gado a descer a Serra é sinal de uma teimosa e salutar dedicação à causa de salvar aldeias e enriquecer Portugal. Mas o melhor ainda estaria para vir, lá mais para diante, depois daquele vetusto, mas pequeno planalto, que tem vida, turismo organizado, Parque de Campismo, uma outra terra que tem nome de espaço de caça, a Coelheira e que, acima de tudo, levou a que, à nossa frente, um imponentíssimo rebanho de cabras, 830 (oitocentos e trinta, mais coisa, menos coisa ) animais, nos tolhesse o passo, que o reino era delas, que não nosso. Lá no alto da Arada, um dia e outro, têm a sua ração mais que perfeita – aquilo que o monte, generosamente, dá e os homens aproveitam. De cinquenta anos de idade, naquela tarde de sábado soalheiro, por ali andava um pastor dos tempos modernos, mas à boa maneira de antigamente, de seu nome António Joaquim Tavares Coelho. A ele e a seus pares se deve o certificado Cabrito da Gralheira, aqui da Arada, mas isso pouco importa. Mochila às costas, já não o velho bornal, boné e bom agasalho, pau na mão, cão ao lado e outros ao longe, não vá o diabo tecê-las, eis o pastor-empresário. É assim mesmo: com origem em Ponte de Telhe, Moldes, do vizinho concelho de Arouca, adquiriu, em 2001, este rebanho e com ele faz vida económica e familiar. É a sua empresa e o seu gostoso trabalho, que completa com as demais lides agrícolas, repartindo tudo isto com a esposa, Olívia de Jesus Duarte Coelho e que mostram, em cada fim de semana, aos babados filhos, genros, noras e netos que não se esquecem, em geral, de ali fazer a escapadela semanal, numa aldeia, Arada, onde já não há mais ninguém. Todos partiram. Vieram estes “colonos” em compensação. Com o apoio comunitário, cerca de 25000 euros por ano, que tem de manter durante um lustro, com os cabritos que vende, que cabras tem, na ordem das três centenas em cada 365 dias, quando a “caipora” não estraga os planos, como aconteceu neste ano de neve, em que se perderam 90 dos 140 que nasceram, assim faz o seu pé de meia e paga as despesas, como homem de bem. Se cabrito criado é sinal de dinheiro em caixa, que o escoamento está assegurado para talhos e restaurantes, ninguém avalia, a sério, a dureza das suas funções. A par do pastoreio quase diário, salvo quando é substituído, ainda tem de amamentar as crias, a biberão, nos primeiros tempos, limpar os pavilhões e “fazer” as terras. Não há, por isso, descanso e, pensamos até, que se daria mal com ele. Sempre com um olho no rebanho e outro nos sonhos de uma vida que se escreve em plena Serra da Arada, dói-lhe a vinda dos lobos, em dias de cerrado nevoeiro, que já lhe levaram 13 princesas, a acrescentar àquelas que o fogo do último Verão lhe devorou, cerca de 25. Mas não tem no seu dicionário a palavra desânimo, nem preguiça, este António, de Moldes, que vive agora em Arada e mudou de vida há quase um década: fez-se pastor, o que permite dar ao cabrito da Gralheira um lugar de destaque. A seu cargo, acolhe 830 cabras e afins, que o recato de linguagem assim nos obriga a falar. Com este encontro inesperado, até aquelas Serras, nuas e negras, parece que tiveram o seu mágico encanto. Parece. Mas falta-lhes qualquer coisa – o verde das árvores, o cheiro a rosmaninho, o pico dos tojos e o encanto da carqueja. Mas ainda há pastores como antigamente. E isso é que é importante, sem dúvida. Carlos Rodrigues, in “Notícias de Vouzela”, 2013

Sem comentários: