quarta-feira, 27 de junho de 2018

Nódoas negras de ontem e de hoje

Nódoas negras, em pano branco, por Lafões Numa região que tem tudo para se ser feliz, assim saibamos compreender o mundo e a sua marcha, Lafões ainda não é uma entidade perfeita. Mas para lá pode (continuar a) caminhar, se não se esquecerem de nós. A natureza, com um trabalho de casa muito bem feito, espalhou a sua arte por tudo quanto é sítio: fez serras, amainou os vales, sulcou estes com rios, regatos e ribeiros que nos encantam, dotou-nos de águas quentes e frias, deu-nos pedras e rochas que fazem erguer sonhos de arte e conforto, deixou crescer as árvores e a urze, o tojo e as flores. Acrescentou-lhe um mar por perto e um clima bem agradável. Vieram os homens, andaram pelos altos, esconderam-se entre penedos, construíram abrigos, aproveitaram esses cursos de água, colheram das courelas parte do seu sustento, caçaram, pescaram, até que, um dia, cansados dessa azáfama em locais de tanta tormenta, canseira e poucos proveitos, aproveitaram a deixa para descer às zonas baixas e aí fazer vida. Nasceram desta opção as nossas aldeias, vilas e a cidade de hoje. São fruto dessa civilização romana, que se sucedeu aos castros de outrora, um outro tempo ainda mais recuado, os vestígios de estradas, os marcos miliários, as pontes, a língua, talvez o vinho e muitas culturas que nos sustentam e perduraram até à actualidade. Com essa localização sólida, mostraram que era possível ter a imponente Roma e todos os outros lugarejos, por mais distantes e dispersos que estivessem. Pensando num Império e em cada uma de suas peças, tiveram então um cuidado extremo: fazer com que todo os caminhos chegassem à Capital, numa teia com marca própria e muita utilidade. Sonharam com grandes e médios centros, edificando-os, mas não esqueceram outras traves mestras de seu esquema de povoamento global. Os nossos reis dos primeiros tempos da dinastia afonsina seguiram essa mesma bíblia. E assim se construiu uma nação que ia do norte ao sul, do leste a oeste, mais ou menos com os pontinhos todos preenchidos. O litoral e o interior completavam-se, o rei tinha por hábito andar de terra em terra e esse exercício de itinerância, se era pesado em termos de custo de estadia, tornava-se compensatório por se saber que daí resultaria um certo equilíbrio territorial. Essa gente, que nos antecedeu e teve visão de estadista, deve merecer-nos todo o respeito e até inveja: a ela se deve o País que somos, melhor, que fomos. Chaves, Viseu, Egitânia, Coimbra, Lisboa, Aveiro, Braga, Bragança, Castelo Branco, Beja, Barrancos, Oliveira de Frades, Vouzela, S. Pedro do Sul, Portimão, etc, etc, tiveram nome e importância, foram locais de fixação e atracção de gentes, geraram personalidades que se passeavam pela Corte e conviviam com quem mandava. As vias de comunicação eram mais ou menos equilibradas, as valências políticas e sociais, à escala da altura, apresentavam-se com uma certa dose de bom senso. Hoje, num tempo em que tudo se mede pela velocidade da luz, em que a riqueza cresceu, mas está muito mal distribuída, somos muito mais desiguais: vemos perderem-se serviços, taxam-nos aquilo que poderia ser uma diferença positiva, deixam que as grandes metrópoles se atafulhem, enquanto por aqui se definha. Neste reino em que tudo poderia – e deveria – ser muito mais branco, transparente e ao alcance de todos, equitativamente, persistem nódoas cada vez mais negras e a do desencanto é a maior de todas. Não sabemos o que aí vem, em concreto, em sede de reorganização administrativa, mas tememos que a visão de Roma se deixe vencer pela estreiteza de vista de quem, no Terreiro do Paço, só sabe olhar para o Tejo, esquecendo os Vougas que há por todo este querido Portugal. Gostando imenso desse Rio, de onde partimos para sermos maiores num mundo que ajudámos a globalizar-se, não podemos esquecer, no entanto, que Pedro Álvares Cabral era de Belmonte e que as naus e caravelas foram erguidas com a madeira de uma nação inteira. Esta é a missão de quem nos governa: saber que somos um todo, bem espalhado por tudo quanto é sítio, e não um monte de gente num beco, mesmo que se chame Lisboa. Carlos Rodrigues, há anos, no “Notícias de Vouzela”

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