domingo, 13 de maio de 2018

Lafões, o território e a gastronomia

Lafões, o nosso território gastronómico A delimitação do espaço em que se desenvolve a actividade da Confraria dos Gastrónomos da Região de Lafões liga-se, profundamente, à noção de um território que ostenta uma identidade secular, sentida pelas nossas comunidades desde tempos imemoriais. Com sinais a evidenciarem essa marcha comum, alguns deles encontram-se na área específica desta nossa Instituição, a começar pela vitela que se confecciona, como imagem de marca destas nossas terras, desde Ribeiradio, no concelho de Oliveira de Frades, a Manhouce, de S. Pedro do Sul, e a Alcofra, de Vouzela, sem esquecer outras boas iguarias. Um outro produto é o vinho, que oferece muitas características comuns, a ponto de ter sido ponto assente em termos de classificação oficial. Foram estas evidências que estiveram na base da escolha desta designação espacial para a Confraria, logo no momento da sua fundação, no ano de 1996. Pretendeu-se com essa opção valorizar o potencial gastronómico e cultural de uma Região que se tem afirmado, por si própria, em todos os contextos e vertentes da nossa vida colectiva. Mesmo em termos de notação geográfica, para efeitos da União Europeia (NUT- Nomenclatura de Unidades Territoriais), sempre se assumiu com a sua identidade, ainda que em parceria com a do Dão. O mesmo se passa na Comunidade Intermunicipal em que se integra. Para assim ser, há razões de ordem histórica e de outras bases, mormente da geologia, da orografia, da vegetação e respectivas paisagens, da cultura, do sentimento de uma pertença comum, a motivar a existência de um Hino que nos une a todos e é forte motivação para selar ocasiões e eventos especiais em que estas terras estejam metidas. Como forma de enquadrar a Carta Gastronómica que a Confraria resolveu editar, após um aturado trabalho de pesquisa, vamos tentar mostrar os aspectos que estão na base deste nosso território, relevando, tanto quanto possível, os pontos que mais nos irmanam. Se, hoje, logo ressalta a existência de três concelhos, Oliveira de Frades, S. Pedro do Sul e Vouzela, a delimitação em causa não se restringe a estes municípios, tocando ainda em freguesias de Sever do Vouga (Cedrim e Couto de Esteves), Castro Daire ( Alva e Gafanhão) e Viseu (Bodiosa e Ribafeita). Entendendo-se que há características comuns que extravasam o núcleo central, Lafões assim tem sido descrito, em área, ao longo dos tempos, que tão bem evidencia o nosso saudoso conterrâneo Amorim Girão, de Fataunços e ilustre Professor da Universidade de Coimbra. Em complemento, os topónimos que cruzam esta terras e que possuem Lafões no seu nome são vários e distribuem-se pelos diferentes municípios, com destaque para Oliveira de Frades e S. Pedro do Sul, onde encontramos Pinheiro, S. Vicente, Souto e S. Cristóvão de Lafões, havendo ainda, há anos, as Caldas do Banho ou de Lafões. Numa outra perspectiva, com elementos da natureza a serem cimento agregador, vê-se que o Rio Vouga, que corta estas terras, de leste para oeste, num eixo comum, desdes os concelhos de Viseu, de S. Pedro do Sul, de Vouzela a Oliveira de Frades, é um elo dos mais duradouros e dos mais decisivos. Igual papel têm as Serras da Gralheira, da Arada e do Caramulo. Com as obras humanas, que por aqui se foram edificando, no decorrer dos tempos, muitas delas praticamente imortais, assim se vieram juntar, como marcas também identitárias do nosso povo comum, esses feitos àquilo que a natureza nos legou. Desta forma, o homem ampliou, com esses empreendimentos, o que encontrou em seu redor. Olhando para os vizinhos do lado, mais longe ou mais perto, adaptou os seus modelos de construção às modas que por aqui iam aparecendo. Usou o colmo quando outros materiais não estavam ao seu dispôr, avançou para a telha, na época em que os romanos espalharam os seus fornos cerâmicos um pouco por todo o lado. Raramente, deixou de pegar na madeira, no granito e no xisto, de acordo com as características de cada espaço, desde Covelo de Arca a Covas do Rio, xisto, e, em grande medida, o granito na maioria de outras das nossas terras. Não se ficou, porém, pelas construções duradouras em termos de avanço dessse património lafonense, uma espécie de um todo, que serve de selo para a nossa identidade, nem por sombras. Estendeu esse desejo de união na diversidade ao vestuário, aos costumes, às tradições em si. É enorme o painel dessas conquistas comuns: cantares, vestuário, organizações festivas, convívios familiares, em muitas destas situações se encontram elos de ligação que bastante nos identificam, a todos nós, como membros de uma comunidade que, em certa medida, se distingue das demais. Como meio para sustentar esta nossa ideia, o Cancioneiro Regional de Lafões, uma recolha e coordenação de José Fernando Monteiro de Oliveira, 2000, logo aclara uma certa delimitação: “ A consideração do que é ou não repertório tradicional de Lafões assenta na vivência/experiência adquirida pelos autores, ao longo de suas vidas nas ceifas, malhadas e outras funções contextualizadoras da actividade musical... (P.9)”. Sendo mundos à parte, mas os dois em sintonia, por se filiarem ambos no campo da cultura, as canções muito ajudam a gastronomia a estabelecer limites e elas, em boa parte, têm muito de parecido, quase genético, num espaço ou noutro. Nesta área, como eixo usual, o “... Povo cantava a duas, três ou quatro vozes, com toda a esponteinadade, com a naturalidade de quem realiza a mesma tarefa há várias gerações. As suas cantigas retratam uma região com características muito próprias e as circunstâncias de seu uso. Transmitem-nos a maneira de ser, de viver, de pensar e de falar das pessoas que lhes deram vida, o pensamento de uma época e os valores então defendidos” ( Id, p13). Se a música é mostra de uma cultura partilhada, estas citações provam-no. Tocando elas numa multiplicidade de factores, incluindo a tónica do nosso falar, está tudo dito. Dentro da população portuguesa que somos, Lafões demarca o seu espaço a muitos níveis e, por esse facto, desde Amorim Girão a outros intelectuais, é mesmo um território com vida e marca próprias. Um outro aspecto prende-se com o uso da capucha, uma peça de burel caramulana, que se estendeu a muitas outras paragens desta nossa região. Neste contexto e muito directamente relacionada com a Gastronomia, podemos citar as rojoadas, ou sarrabulhadas que caracterizavam a época das matanças do porco. Indirectamente, são ainda de citar as malhas, as desfolhadas, as tasquinhadas, as vindimas e outras tarefas de índole doméstica que se mostram muito parecidas neste nosso espaço territorial. Estes traços de harmonização na diferença vêm de longe. Entretanto, com os romanos, as suas estradas e pontes criaram novos laços de pertença, desde a “estrada do peixe” a outras vias também estruturantes. Mais tarde, as novas vias de comunicação vieram concluir o resto deste quadro de união regional, nomeadamente a ER 41/EN16 e a Linha do Caminho de Ferro do Vale do Vouga. Com 31 freguesias, depois das recentes alterações administrativas, na actualidade, Lafões, que se viu ainda com ligações a S. João do Monte, encontra-se partido em duas áreas de Grupos de Acção Local – ADDLAP e ADRIMAG, mas nunca deixou de ser pensado como uma unidade global e uma marca própria. Isso perceberam os nossos Reis, desde D. Afonso Henriques a D. João V, já referenciado, este a criar o citado Ducado de Lafões, o mesmo subscreveram os nossos antepassados, em Lisboa e no Rio de Janeiro, cidades onde ergueram o Grémio Lafonense, em 1911, em Lisboa, semente da actual Casa de Lafões, assim como, no Rio, existiu, durante, muitas décadas a sua congénere. Olhando para o presente e para o passado próximo, deparamo-nos com a Adega Cooperativa de Lafões, com a Cooperativa Agrícola de Lafões, com o antigo Colégio Lafonense, em Oliveira de Frades, com a actual ADRL – Associação de Desenvolvimento Rural de Lafões, com a ASSOL – Associação de Solidariedade Social de Lafões, AEL – Associação Empresarial de Lafões. Por sua vez, Lafões enquadra-se na Associação de Municipios de Viseu, Dão-Lafões, na Associação de Municípios da Região do Planalto Beirão, na Região de Turismo do Centro, na CCDRC. Em dados concretos, vejamos alguns pormenores: concelho de Oliveira de Frades, 145.4 km2, 10 261 habitantes, no recenseamento de 2011, com 8 freguesias – Arca/Varzielas; Arcozelo das Maias; Destriz/Reigoso; Oliveira de Frades/Souto de Lafões/Sejães; Pinheiro de Lafões; Ribeiradio; S. João da Serra; S. Vicente de Lafões; concelho de S. Pedro do Sul – 349 km2, 16851 hab (2011) e 14 freguesias – Bordonhos; Carvalhais/Candal; Figueiredo de Alva; Manhouce; Pindelo dos Milagres; Pinho; Santa Cruz da Trapa/S. Cristóvão de Lafões; S. Félix; S. Martinho das Moitas/Covas do Rio; S. Pedro do Sul/Várzea/Baiões; Serrazes; Sul; Valadares e Vila Maior; concelho de Vouzela – 193.7 km2, 10564 hab (2011) e 9 freguesias – Alcofra; Cambra/Carvalhal de Vermilhas; Campia; Fataunços/Figueiredo das Donas; Fornelo do Monte; Queirã; S. Miguel do Mato; Ventosa; Vouzela/Paços de Vilharigues. Lafões integra-se na Região Centro, NUT II, e na sub-Região Dão Lafões, NUT III. Relembrando, tem na A25 e na A24 os seus veios estruturantes em altas vias de comunicação, devendo anotar-se ainda a importância, também vital, da EN 16 (como atrás assinalámos), que atravessa todo o território, de uma ponta a outra, de leste para oeste, ou vice-versa. - A gastronomia em Lafões Entre as muitos factores de união territorial e sentimental, a gastronomia em Lafões tem uma boa série de produtos e ementas que são pontos de identidade que galgam mundos e fronteiras. Sem pegarmos em aspectos que, tendo uma raiz toponímica mais localizada, mas que se associam, facilmente, a esta nossa Região, há marcas que ostentam toda a força desta nossa terra, na sua globalidade, começando pela Vitela de Lafões e pelo seu Vinho, aparecendo também, em termos de certificações oficiais, o Cabrito da Gralheira como outro selo que assumimos como nosso. É de tal forma marcante a influência da gastronomia na vida de nossas comunidades que as duas Escolas Profissionais, Vouzela e Carvalhais, a incluem nos seus programas curriculares, o mesmo acontecendo nos estabelecimentos oficiais públicos. Com um passado a atestar a longevidade da nossa gastronomia e culinária, nas receitas que aqui se estampam bem se nota o seu peso cultural. Aliás, estas componentes ligadas ao mundo da cozinha não se podem dissociar do nosso acervo patrimonial geral e particular, enquanto Região e como identidades locais. Por assim ser, as diversas e festivas cerimónias, as indumentárias e outros aspectos entroncam-se a preceito, como dissemos, em certas circunstâncias, com todo este mundo da alimentação e suas variedades. Muito do que se come e se aconselha tem a ver com a história de cada uma de nossas terras, seus costumes, necessidades, capacidades e espírito inovador e criativo, como facilmente se constata nestas páginas. Por serem importantes e terem legislação apropriada, comecemos, porém, por falar do Vinho de Lafões. De acordo com vária legislação existente, em 1868, havia sido delimitada a Região Vinícola de Lafões, mas não se avançou muito quanto a esta matéria. Numa outra altura, em 1908, no mês de Setembro foi criada a área da Região dos Vinhos Verdes, a englobar os actuais três concelhos lafonenses. Em 16 de Novembro de 1949, é atribuído o alvará à Adega Cooperativa de Lafões e, em 22 de Setembro de 1990, surgem os Estatutos da Região Vitivinícola de Lafões, passando a ser uma VQPRD, Vinhos de Qualidade Produzidos em Região Determinada, ou IPR – Indicação de Proveniência Regulamentada. A primeira Comissão Vitivinícola Regional deu os seus passos iniciais a 4 de Fevereiro de 1904, cabendo-lhe a defesa da Denominção de Origem e o controlo da qualidade dos V. Q. P. R.D locais, como se lê em “ Desenvolvimento da Região de Lafões, Colecção Estudos IERU, com coordenação de Henrique Albergaria, Coimbra, 2002” Aponta-se, nos vinhos tintos, para uma predominância da casta amaral em cerca de 40% e, para os brancos, o arinto e o cerceal, com 85%, devendo caber ao citado arinto um mínimo de 50% dessa componente global. Recorde-se que, ainda há poucas décadas, este sector, na sua vertente legal e ilegal, esta no que se refere ao americano, sobretudo, era responsável por uma boa parte das receitas económicas de cada agregado familiar destas nossas terras. Também a Vitela foi objecto de um processo de certificação que, nesta Carta Gastronómica, se entende registar. Com a apresentação do projecto de candidatura à categoria de “Indicação Geográfica”, a Cooperativa Agrícola de Vouzela envia o processo para as instâncias comunitárias europeias, em 7 de Dezembro de 1993. No dia 3 de Fevereiro de 1994, aparece inscrita no Diário da República, II Série, nº 28. Obtida a respectiva IGP – Indicação Geográfica Protegida, nela se consagram alguns preceitos essenciais: pertencer às raças arouquesa ou mirandesa e seus cruzamentos, ser criada no microclima das Serras do Caramulo e da Gralheira, ter uma alimentação autóctone, à base de pastos naturais, com modos de maneio ancestrais, sendo abatida ao desmame entre os 5 e os 7 meses. Estão ligadas a esta certificação a ADRL, a CAV e a Cooperativa Três Serras. Com uma incidência mais limitada e menos abrangente em termos de solo lafonense, o Cabrito da Gralheira, que se cria em várias freguesias do município de S. Pedro do Sul, na de S. João da Serra, de Oliveira de Frades, e ainda noutros espaços fora desta nossa área aqui objecto de análise, aparece registado no mesmo documento, referido a propósito da Vitela, também a 3 de Fevereiro de 1994. Tem de ser animal de raça serrana. Associam-se a este processo a ADRL e a Cassepedro. A importância da gastronomia regional Ao aproveitarem-se as condições existentes e as práticas ancestrais, a gastronomia tem um papel fundamental na dinamização do processo global de desenvolvimento, a montante e a jusante. A este propósito, em produção endógena, “... A região dispõe de um amplo leque de produtos agroalimentares específicos com qualidade reconhecida (nalguns casos, certificada), que podem ser economicamente valorizados, contribuindo directamente para a economia local, podendo também constituir factores de identidade territorial, a integrar na estratégia de promoção regional “ ( - “Programa Territorial de Desenvolvimento da Região de Lafões – ADDLAP, 2013”) Usando, em muitos casos, produtos autóctones, sendo que, em virtude das certificações, essa é, nesses casos, uma obrigação que está implícita na sua comercialização, e outros, faz fixar à terra, por via da agropecuária, todos aqueles que se dedicam a este sector de actividades. Favorece, assim, o povoamento, ao mesmo tempo que interfere, positivamente, com a salvaguarda de um ambiente mais são e mais puro, travando, em certa medida, a tragédia dos fogos e das cheias, fenómenos que se alimentam, em grande, da desertificação de que sofrem nossos solos. Neste contexto, ajuda ao combate contra os desequilíbrios regionais e respectivas assimetrias, que têm surgido em função do êxodo rural a que temos assistido. Para que se assegure a quantidade e a qualidade da produção agrícola e pecuária em doses suficientes, a tenderem para o ideal, como meta e objectivo, é preciso que os nossos aglomerados populacionais recuperem da sangria que têm sofrido. É ainda altamente necessário que se apoie, dinamize e valorize a vida do campo, de modo a torná-la atractiva e compensadora. Numa outra dimensão, é a gastronomia uma peça e uma componente fundamental na área da restauração e hotelaria, que florescem na razão directa da qualidade dos produtos que servem aos seus clientes. Potencia, desta forma, o mercado do trabalho, do emprego e da criação de investimento. Mas um documento deste género incide, em grande medida, o seu interesse num outro aspecto menos visível, mas extremamente importante: o da recolha de saberes para os tornar imortais e o da preservação e divulgação da nossa memória, como povo, como comunidade e como elo de ligação entre a arte de cozinhar e os produtos que a terra e a água nos dão. Por outro lado, aqui se regista ainda a evolução havida nesta matéria ao longo dos tempos. Em cada receita, se pode ler aquilo que é uma constante e uma evolução. Mostra-se também o mundo dos intercâmbios, as linhas comerciais, as vivências de maior ou menor riqueza e fausto. Nelas existe uma boa ajuda para que percebamos diferenças sociais entre os vários núcleos populacionais. A gastronomia e os diálogos com outras áreas Fácil é concluirmos que a gastronomia não vive isolada dos mundos e dos meios em que se insere. A ela se associam muitos outros domínios do saber e da história. Em primeiro lugar, a economia tem muito a ver com aquilo que se come e com as artes da cozinha. Os recursos e as disponibilidades marcam ritmos a que dificilmente se pode escapar. Desde sempre, se verificam várias fases e etapas que têm a ver com a marcha dos tempos e da história. A mesa, tal como asseguram Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, em História da Alimentação ( Terramar, Lisboa, 2001), é um marco que nos ajuda a distinguir as próprias classes sociais, transformando-se “ num poderoso elemento de identificação colectiva” (P.17). No dizer destes historiadores, à sua volta gravitam muitas profissões como os cozinheiros, os forneiros, os moleiros, os padeiros, os agricultores, em geral, os talhantes, os artífices, a que podemos juntar, modernamente, os empregados da restauração e da hotelaria, das indústrias alimentares e das vendas. Na sua função de símbolo, é factor de aproximação das comunidades e de restabelecimento continuado das relações estabelecidas entre as terras de origem e de destino, quando se trata das migrações, porque “... Através da função memorial, as cozinhas regionais, assim reconstruídas, permitem à modernidade urbana renovar os seus laços com a província com o prato consagrado pela recordação... “ (Idem, p. 390). Entretanto, na existência dos diálogos mantidos com vários saberes, é determinante o discurso que esta ciência gastronómica estabelece com a saúde e com a medicina, com a indústria farmacêutica, com a nutrição e com a dietética. Numa evolução permanente, adapta-se a cada exigência que surge dessas vertentes fundamentais para o nosso bem-estar, seguindo, com grande frequência, seus conselhos e indicações. Fruto destas fontes e de muitas outras, as escolhas alimentares variam de época para época e de lugar para lugar. Um peso bastante significativo vem, em grau mais ou menos elevado, das citadas migrações, das viagens, da globalização, que, vista a uma luz geral, tem muito da história portuguesa na sua evolução, por via da expansão. Veja-se, a este propósito, o papel das especiarias e dos novos produtos entradas nas nossas vivências a partir dos séculos XV e XVI. A gastronomia, como resultado dessas adaptações, segue, em cada tempo, caminhos diferentes, mas sempre com um objectivo em mente: satisfazer a vontade e a necessidade das pessoas e dos povos. Para Lúcia Helena Batista Gratão e Eduardo Marandola Júnior (2011), que relacionam a gastronomia com a geografia, atiram para o mundo dos livros os sabores que “... também são espaciais, pois constituem e descrevem lugares e paisagens... “ (P. 63), acrescentando que “... Não é por nada que cozinhar foi uma das primeiras expressões ligadas à formação cultural das sociedades... “ ( P. 65). Mobilizando uma enorme série de actores e recursos, importa sempre que se assegurem a qualidade, a segurança alimentar, a arte e a tradição, com pingos de modernidade em inovação para se não perder a marcha do movimento que é inerente a toda a vida humana, em que quase nada, ou mesmo nada, é estático, mas dinâmico. Nesta entrada em cena de tantas variáveis, a etiqueta e a gastronomia também andam muito associadas, incluindo os usos sociais e as indumentárias. Neste capítulo, não pode ficar indiferente nem à moda, nem aos costumes de cada região e respectiva civilização e cultura. Por isso mesmo, por ser palco dessas manifestações de identidade é que é tão rica de conteúdo, simbolismo e significado. Competindo-lhe proporcionar gostos diversos, serve-se, em boa medida, de “... todos os condimentos e toda a cozedura, numa palavra, todo a cozinha (para) desempenhar duas funções: tornar os alimentos os alimentos simultaneamente mais apetitosos, mais agradáveis aos paladares e mais digestos... “ (Flandrin e Montanari, 2001, p. 99). Ou seja, posta a gastronomia ao serviço do bem-estar, do agradável e saudável apetite das nossas comunidades humanas, tudo o que aparecer para a valorizar é sempre bem-vindo. Neste contexto, uma outra forma de dialogar acontece com os serviços veterinários, com a enologia, com os fabricantes de utensílios e maquinaria, com a assistência social, com as ciências da demografia e níveis etários dos nossos habitantes, com a educação, aqui numa conversa sempre com efeitos reprodutivos e duradouros bem digna de nota, enfim, com todas as franjas e áreas de saber e viver das nossas comunidades. Conclusão Como se não pode avançar para uma gastronomia de excelência sem o suporte das pessoas, altamente qualificadas e dignificadas, há uma enorme tarefa a prosseguir: a da formação, a da potenciação da tradição e a da entrada em cena de uma sustentada inovação. Se assim fizermos, o sucessos estará garantido. Esta é a finalidade da Confraria dos Gastrónomos da Região de Lafões. Nas suas mãos está depositada, desde há vinte anos, uma enorme carga de desafios e de uma acrescida responsabilidade. Depois da publicação desta Carta, aumentam muito mais as exigências que nesta Associação recaem. Mas, com os olhos virados para o futuro e uma atenção dedicada à defesa da qualidade da nossa gastronomia, culinária e respectivos saberes, será mais plano o caminho a percorrer, ainda assim não isento de pedras e obstáculos, que têm, a cada momento, de virem a ser vencidos. Acerca desta obra lançada pela nossa Confraria, fazemos nossas as lições de Maria de Lurdes Modesto ( Palavra puxa receita, Verbo, 2005), quando escreveu: “ Neste livro, sobre o qual não tenho nem ambições, nem pretensões, há de facto receitas cuja inclusão serve apenas de apoio à ideia que tenho da cozinha no contexto vastíssimo de uma alimentação inteligente: torná-la mais saudável e mais apetecível”. É também este o nosso bom propósito. E a terminar, fiquemos com este sentido desabafo de Júlio Isidro sobre o nosso fundador Chefe António Silva: - “ A cozinha está agora vazia. No ar, apenas o perfume de milhões de iguarias que o meu amigo António Silva confeccionou ao longo de sua vida... “ Parte dela, foi também muito nossa. E esse legado não mais o deixaremos morrer. Carlos Rodrigues, in “ Carta Gastronómica de Lafões”, 2016

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