segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Municípios e educação, breve amostra...

Município e Educação Índice provisório 1. Introdução 1.1. Quadro conceptual e metodológico 2. A forma dos municípios ao longo dos tempos 3. Sociedade com educação informal 4. Uma escola a nascer 4.1. Antiguidade clássica e seus reflexos 4.2. O Cristianismo e a idade média 4.3. Renascimento 4.4. Os jesuítas e a sua época 4.5. O século XVIII e o absolutismo 4.6. O liberalismo 5. O papel das autarquias, do liberalismo à Primeira República 6. A Primeira República e o ensino: a carga legislativa descentralizadora 7. O Estado Novo e o encontro educativo 7.1. A influência limitada dos Ministros da Educação 7.2. Autarquias e edifícios escolares 8. Democracia e impacto vagaroso da educação nas autarquias 8.1. A transição: de Veiga Simão à Constituição de 1976 8.2. Portugal e seus parceiros europeus: um olhar comparativo 9. Territorialização da escola aos soluços 9.1. Enquadramento legal 9.2. O poder local e suas aspirações 9.2.1. Educação pré-escolar 9.2.2. 1º Ciclo e outros campos de atuação 9.3. Delegação de competências e seus efeitos 10. Educação e novos rumos 10.1. Algumas marcas municipais 10.2. A escola na comunidade 10.3. A luz ao fundo do túnel 11. Conclusões TESE Os Municípios e a Educação 1. Introdução A educação é um fenómeno eminente social, como nos indica A. Clausse. Insere-se por isso, na dinâmica da sociedade. Assim, estamos perante uma organização (Musgrave: 1968), pelo que a análise dos aspectos que a rodeiam deve ser feita de uma forma integrada, mas sem pôr de lado a hipótese de se trabalhar sobre um dos vetores que norteiam. Se muitas são as influências que desembocam no seu campo, de que a escola é um pilar de primeira linha, é natural que optemos por abordar um desses braços, no caso em apreço, o do municipalismo, enquanto questão de “estruturas sociais e culturais” (Bertrand, 1991). Partimos de uma perspetiva histórica, mas também sistémica, quando abordamos as instituições educativas, que não podem ser analisadas “sem serem confrontadas com estruturas económicas, sociais, políticas, culturais e religiosas” (Gomes, 1980), por elas estarem dependentes, no entender de Émile DurKeim. Nesta ordem de ideias, teremos em conta a própria génese e evolução dos municípios, instituições que radicam num “prendimento que se realiza e dura juridicamente num meio social” (Hespanha, 1982) Para conseguirmos atingir a sua ligação com a educação (termo que adotaremos, em simultâneo com o de escola), servir-nos-emos duma metodologia que, em síntese, se apoiará nestes pressupostos: - Fontes históricas diretas e indiretas - Legislação diversa, como fonte privilegiada (Barroso, 95) - Publicações gerais e da especialidade - Documentos de organismos oficias - Estatísticas - Inquéritos - Testemunhos diversos Por outro lado a abordagem a fazer seguirá tanto quanto possível sob o lema do diacronismo em que a cronologia, como é lógico deduzir, terá uma importância acrescida, tanto em grandes quadros temporais como em níveis mais detalhados, desde que a respetiva datação não ofereça quaisquer dúvidas. Se começamos por uma visão generalizada da educação ao longo dos tempos, fazemo-lo apenas para a enquadrarmos nos movimentos próprios de cada época, nunca com a ideia de a correlacionarmos com o municipalismo, por entendermos que tal seria perfeitamente inviável. Aliás, o município, como realidade prática estrutural, é uma organização tardia, frente à evolução da própria educação, qualquer que seja a tese que se venha a perfilhar no que diz respeito à forma dos concelhos, a saber: A. Herculano – Origem romana dos municípios asturo – leoneses. Eduardo de Hinojosa – Fatores germânicos na génese do fenómeno municipal. Sanchez Albornoz – Ambiente da reconquista, jamais de ascendência romana. Como quer que seja, sobretudo, a partir da época moderna, é possível descortinar o seu papel no campo da educação, mas não deixam de encontrar-se as suas influências em plena época medieval, tal como aconteceu, por exemplo, com Frei Rodrigo de Sintra, que, em 1380, foi subsidiado pela Câmara de Lisboa para estudar fora do reino (Carvalho, 1985). Deve acrescentar-se, no entanto, que a nossa autonomia municipal não adquiriu o estado de outras áreas do centro da Europa, como acentua António Manuel Hespanha, não obstante se reconhecer que “a história da instituição e multiplicação dos concelhos é a história da influência da democracia na sociedade, da acção do povo, na significação vulgar desta palavra, como elemento político” (Herculano), com o triunfo máximo, nesses tempos recuados, da democracia municipal a atingir-se no reino de D. João I (Gordo, 1925). Como complemento comparativo deste trabalho, tentaremos referenciar ainda alguns dados sobre estes mesmos temas noutros países, designadamente naqueles que integram a atual União Europeia, ainda que de uma forma sumária e esquemática. Se as autarquias adquiriram a sua verdadeira carta de alforria, após o 25 de Abril de 1974, não olvidaremos a sua existência nas outras épocas, mais recentes ou mais afastadas sabendo, porém, que “o processo de produção do modelo escolar desenvolve-se consideravelmente no século XVI, sob a dupla influência da Reforma e da Contra-Reforma” (Barroso, 1995). É a escola uma nova prioridade no plano investigativo (Estrela, 1995). Tentaremos, então, dar um modesto contributo com esta abordagem algo periférica, tal a predominância das visões centralizadas com que se vem vivendo até ao momento. Em sociedades marcadas por uma economia agrícola, senhorial, Portugal encetou políticas de povoamento e organização apoiado na autonomia local, em que o município aparece como “aliado da Coroa e vector de desenvolvimento regional” (Serrão), sobretudo a partir do século XII, muito embora pertença ao clero a organização do ensino. 2. Sociedades com educação informal Foi ao longo o processo evolutivo por que passou a educação, que começou por ser eminentemente prática, sem qualquer organização institucional que a suportasse. Também a necessária componente teórica, de feição iniciática, em termos de explicação de mitos, lendas, não se adquire numa qualquer escola, mas antes na tribo, na família. O homem primitivo, numa luta directa com a natureza, apenas pretende movimentar-se no seio das necessidades básicas. Não vai além dos conhecimentos rudimentares, em contacto com aqueles que lhe estão mais diretamente ligados, em ambiente de puro animismo. Paul Monroe define este estádio como um movimento longo, estacionário e imitativo, pelo que será descabido falar-se em educação no sentido que hoje lhe damos, ainda que aluda, na sua passagem para um estádio superior, à emergência de uma nova classe social – os professores. Na educação ao longo dos tempos, sendo que estes, na antiguidade, têm um carácter de quase permanência em termos educativos, raramente encontramos quaisquer vestígios de municipalismo ou organização similar nas diversas sociedades que antecederam o povo romano, mas denotam-se reminiscências descentralizadoras. Assim, nas civilizações orientais, em que a educação formal se centraliza no estádio da linguagem e da literatura (Monroe, 1907), isto num segundo estádio de desenvolvimento, é visível um sistema de escolas, em todas as aldeias, com a contribuição particular dos alunos e o patrocínio de associações diversas, e um outro de exames, centralizado, em forma de pirâmide: Exames Locais Primeiro Capital de Distrito Segundo Capital de Província Terceiro Capital Central Se este é o quadro em que se desenrola a educação chinesa, não é descabido afirmar-se que a sua influência se espalhou um pouco por todo o oriente, incluindo o mundo judaico. 3. Uma escola a nascer 3.1. Antiguidade Clássica É inegável que as civilizações Grega e Romana – ao povos clássicos, por excelência – marcaram indelevelmente o panorama educativo ocidental, de uma forma determinada. Pode agora falar-se, com propriedade, numa verdadeira educação, enquanto necessidade e organização. Existe. Tem um corpo e um escopo próprios. Diverge, no entanto, de acordo com as modificações operadas nessas sociedades, porque “toda a organização do ensino se fundamenta numa concepção filosófica do destino do Homem (…) e a diferença de fundo que distingue entre si as diversas épocas da História da Pedagogia (por extrapolação) reside no tipo de homem que a escola pretende criar” (Carvalho, 1985). GRÉCIA – Com a tónica centrada no desenvolvimento individual, numa evidente aplicação do conceito de educação liberal, procura-se desenvolver, através do conhecimento, um novo cidadão. A “cidade-estado” domina o respetivo horizonte educativo, em que cada um realiza como membro da família, da civitas e da fratia (contrariamente ao que acontecia em Esparta, onde o estado dominava completamente o indivíduo), com a nomeação de geral da educação e de superintendente – o paidonomos. Em Atenas, as escolas eram particulares, pelo menos até aos 16 – 20 anos, em que o Estado começa a ministrar parte da educação. Curiosamente, mesmo em matéria de edifícios, era corrente verificar-se que estes pertenciam aos mestres. Com educadores de grande nomeada, tal como Platão e Aristóteles, define-se numa cooperação entre a família e o estado. ROMA – Devem-se aos romanos os maiores contributos para a organização social, a nível legislativo e prático, num edifício que comportava direitos e deveres. A educação, nesse esquema, tinha como centro a família, deixando-se à escola uma missão secundária, para uma rudimentar formação na leitura, escrita e aritmética, através da ludi, quadro que se altera um pouco com uma maior predominância das ideias gregas, alturas em que estas escolas passam a consagrar também a sua atenção à gramática, mas sempre de uma forma simplista e superficial. É, porém, durante o império Romano que os municípios começam a ter uma importância acrescida, enquanto detentores de alguma escola, já a constituírem um sistema. Por sua vez Graciano (367 – 383 d.C.) chega a duplicar os contributos dos municípios, a fim de dotar o império dos fundos que lhe permitissem uma melhor manutenção dessas escolas, tendências que se agrava com Teodósio, que fazem concentrar “no governo imperial a única autoridade no estabelecimento de escolas” (Monroe, 1907), punindo criminalmente qualquer organização popular que se lançasse nessa função, o que converte esses municípios em meros colectores de impostos. Sendo o município, na conceção de Herculano, uma realidade proveniente do império romano, terá de concluir-se que a sua autonomia, quando à educação, teve graus e épocas diversas. 3.2. O Cristianismo e a idade média Iniciou-se o Cristianismo em plena vigência do império romano, ora de uma forma clandestina, em oposição total ao quadro legal vigente, nos domínios desse império, ora como afirmação plena, sobretudo a partir do édito de Constantino e dos demais processos de abertura e aceitação desses novos ideais. A Península Ibérica não fugiu a esta regra, nem dela se pode dissociar a ideia de que “de todos os indivíduos que constituíam a sociedade europeia, nos primeiros séculos do cristianismo, somente os elementos (?) da Igreja tinham motivo para se interessarem pela prática da instrução e pelo seu desenvolvimento”. (Carvalho, 1985). Era a preparação para o futuro, quando a Igreja assumira a definição dos objetivos da educação, eliminando, entre os séculos VI e XIII, as preocupações intelectuais, como frisa Paul Monroe, num corte total com a política, entendida esta como uma forma de ser e estar de gregos e romanos. Decorre desta evidência um facto notório: a Igreja chama a si o domínio da formação, retirando-a do poder secular e, como sequência, dos municípios, muito embora estes venham a manter, como se depreende dos dados obtidos, um campo de manobra a explorar. Se o objetivo da educação se centra sobre a necessidade de formar clérigos, não é de estranhar-se que se passe a evidenciar um outro tipo de escolas – as episcopais e as catedrais, a par das escolas conventuais ou monásticas, estas últimas com reminiscências orientais e a sua relação com o cristianismo. Com o andar dos tempos, chega até a acontecer que os mosteiros passam a ser as verdadeiras “instituições de ensino da época” (Monroe), pela sua visão profissional, centros de pesquisa, bibliotecas e áreas de saber e saber-fazer mas sempre num regime endógeno designado a suprir as necessidades internas, a auto-sustentar-se. Com o Imperador Carlos Magno, estes equipamentos e instituições exterior e reforçam a sua qualidade, devendo-se mesmo aos mosteiros as sete artes liberais: Trivium Quadrivium Gramática Aritmética Retórica Geometria Dialética Música Astronomia Com uma influência notória nas questões educativas da época, este mesmo Imperador, através da capitular 789, chega a determinar que fornece as bases de um ensino secular, ainda que subordinadas à alçada religiosa. Paralelamente a este movimento, a cavalaria tornava-se um secular ideal social, ministrado nas diversas cortes, logo de feição senhorial e nobre, sendo por isso, escassas e esparsas as escolas entendidas como tal, mesmo à escala desses tempos, mas sem deixaram de se verem aquém e além. Este sistema prolongou-se por diversos séculos, havendo ainda a acrescentar as invasões muçulmanas, que abalaram estes embriões de estruturas educativas. Mas o século XIII e o seu espírito renascentista acabam por provocar modificações profundas neste panorama. Aparecem as escolas das capelas e de corporações, estas últimas a converterem-se em autênticas escolas municipais (Monroe). Desta forma, poucas são, porém, antes dos fins do século XI, as escolas existentes. Destacam-se Braga, Alcobaça, e Coimbra, aqui a partir da ação do Mosteiro de Santa Cruz (1131) e do empenhamento, em concreto, do Rei D. Sancho I que chega a prestar auxílio monetário a alguns dos seus cónegos para se aperfeiçoarem nos seus estudos, em Paris. De fora, pelo menos aparentemente, estão os municípios, então incipientes, que veem os seus rapazes pobres frequentarem as escolas das catedrais, a partir da determinação do III Concílio de Latrão (1179) em que se advoga a existência de um mestre – escola em cada um dessas instituições com tal missão, como aconteceu com Moreira de Sá, magnister scholarum, com licença de ensinar, o que revela uma crescente profissionalização. Escusado será dizer-se que, no plano dos conteúdos, dos objetivos e dos curricula, em geral, não há qualquer possibilidade, nesta altura, de quaisquer interferências para além da Igreja, uma vez que é a única fonte de formação para os homens letrados de então, primeiro tendo em vista a vida eclesiástica e, posteriormente, para os demais fins seculares, pelo menos até cerca do século XII. Coube à religião cristã, entre o império romano e o renascimento, ser o esteio cultural, quase em exclusivo, muito embora se tivesse sentido alguns assomos de arabização, por ocasião das invasões muçulmanas, que não abalaram, no entanto, essa já enraizada estrutura, a sofrer apenas alguns contratempos regionalizados, designadamente em Córdova (Espanha), a partir do século X. Falámos atrás das Escolas Corporativas, o que é perfeitamente compreensível pelas exigências sociais e económicas que lhes estavam subjacentes. Se escapava à Igreja esse controle direto, em função do recrutamento de professores leigos, esta não se punha de fora de todo este processo, através da influência exercida em termos de fiscalização pelo scholasticus ou “outro funcionário episcopal” (Monroe). Não ficaram, porém, arredados da educação os municípios, ainda que lhe ficassem reservadas apenas funções de complementaridade, de crítica e protesto ou de reivindicação, como se pode ver, de seguida: Complementaridade – Colaboração com as corporações e as diversas autoridades civis e sobretudo eclesiásticas, para dotar as diversas terras de uma qualquer escola, por se reconhecer o atraso em relação a outros países europeus e ainda pelo entusiasmo crescente em redor da necessidade de novos conhecimentos e da própria generalização da cultura, à medida que se caminha em direção ao renascimento. Crítica, protesto e revindicação – Gama Barros, por exemplo, no século XV, com base nas Cortes de Santarém de 1434, indica que os concelhos se queixam de que o ofício de julgar esteja cometido aos ignorantes, sem saberem ler e escrever, o que implica um certo juízo de valor pela falta de escolas à altura, pelo que reclamam que não se possa ser juiz em lugares onde haja quem o saiba, numa alusão à existência de estabelecimentos de estabelecimentos de ensino a condizer. Contrariando a tendência centralizadora, no século XIV, o concelho de Coimbra opõe-se ao Conservador do Estado, em vão. Mas, em 1374, vê atendida esta pretensão por parte do monarca. São de tipo diverso, como se vê, as solicitações municipais, que ora se confundem com o pedido de novas escolas, ora com a necessidade de evitar a instalação de outras, como aconteceu com Torres Vedras, aquando da possível localização da Universidade nessa cidade, com as autoridades municipais a fazerem ouvir a sua voz. Também em Évora, a Câmara, com o objetivo de apoiar a formação escolar, propõe uma tença de 3 500 réis anuais dada a uma “bacheler”, que ensinava os filhos dos homens boons, quantia que foi objeto de negociações com o corredor da corte, a situar-se, finalmente, em 3000 réis. Confirma-se assim, no âmbito do ensino local e particular, a ação dos municípios, designadamente em meios rurais. 3.3. Renascimento A época medieval, com o advento da nacionalidade, viu constituírem-se os primeiros municípios, em virtude da atribuição das cartas de forall, tantas vezes numa medida régia que pretendia pôr em causa o crescente poder senhorial. Estariam assim criadas as possibilidades para que a autonomia municipal se concretizasse no sector do ensino, o que só não aconteceu significativamente, devido à força tentacular que a Igreja detinha em tudo quanto fosse educação. Mas os movimentos surgidos, sobretudo na península Itálica, não deixaram de alastrar para esta zona da Europa e de influenciar os procedimentos a tomar nos diversos sectores, a incluir o domínio que estamos a tratar. Com a emergência de novos valores, face àqueles que vigoraram em toda a Idade Média, a sua implicação na escola não se fez esperar, a diversos níveis: - Objeto do pensamento intelectual Grego e Romano; - Subjetividade das emoções; - O mundo físico. Entra-se assim numa fase de contestação do aristotelismo e da escolástica, sobretudo a partir da ação encetada por Petrarca (1304-1374). Caminha-se para o desenvolvimento de uma personalidade moral livre, a implicar uma educação liberal, de tal modo que “a vitória das ideias humanistas em educação se deu, em primeiro lugar, nas instituições educativas existentes, principalmente nas universidades, e nas escolas municipais recentemente fundadas” (Monroe), em fase de crescente desenvolvimento. Na obra deste autor, alude-se concretamente às furstenshulen (?), escolas para príncipes, a contraporem-se aos ginásios, estes controlados pelos municípios, enquanto aqueles dependiam diretamente das cortes. Estes ginásios tiveram a sua origem, nos países teutónicos, na transformação das escolas superiores municipais ou das escolas eclesiásticas que até aí vigoravam. Assim, em 1485, a escola municipal de Nuremberg abarca essas novas influências humanistas, enquanto outros desses estabelecimentos de ensino operam a sua própria transformação. Posteriormente, o avanço da Reforma e uma organização mais centralista, por parte do Estado, levam à sua decadência em favor da ligação a esses mesmos poderes centrais, o que se vem a notar, particularmente, nos países anglo-saxónicos, com exceção das colónias americanas onde o modelo das escolas públicas inglesas veio a ser adotada, mas sob a dependência, entre outras tutelas, das cidades locais. Este movimento humanista, por volta do século XV, irradia também para Portugal, a provocar uma “operação de transformação profunda com abalos da vida mental dos homens” (Carvalho, 1985), levando à aplicação de um novo conceito de cultura e de escolas, deixando esta de deter a exclusividade do saber, devido ao facto de a aprendizagem se passar a fazer também em regime particular. Vive-se o tempo dos reinados de D. João II e D. Manuel, sendo visível um forte pendor centralista, com D. Manuel a contrariar a tendência autonomista e municipalista de seus antecessores, avocação de cartas e documentos de constituição municipal (Gordo). D. Manuel, nesta fase de uma continuada ânsia de saber, incrementa a formação no estrangeiro de estudantes portugueses, designadamente Diogo de Gouveia. A todo este novo quadro cultural não é estranho, antes pelo contrário, o facto de se ter inventado a imprensa, movimento que vem a culminar, com D. João III, numa reforma do ensino, solicitando-se ao passado que trate de interessar-se apenas pelos assuntos espirituais. Mas é durante esta acção reformadora que se destaca, na esfera da informação do poder municipal, uma polémica em volta de transferência da Universidade de Coimbra, com Torres Vedras, como vimos atrás a tomar uma posição contra a sua ida para essa zona, pela voz de “os vereadores, o procurador e os homens bons a negarem-se à satisfação do pedido em virtude das necessidades e da pobreza da sua vila… pelo que pedem por mercê a V. Alteza a haja por bem o estudo se mudar para outra parte” (Carvalho, 1985). Aproveitando esta recusa, a vereação da Coimbra apresenta, de novo, a candidatura ganhadora daquela cidade. Com o fim do trivium e do quadrivium, no decurso da citada reforma, inicia-se uma nova fase do ensino em Portugal, aquela que tem por base a criação de dois tipos de cursos: - Curso Básico, em três ciclos, com humanidades, artes e filosofia; -Curso Superior. Era o renascimento a impor-se e uma nova época a despontar. 3.4. Os Jesuítas e a sua Época O aparecimento em força as jesuítas no ensino e na vida social não foi obra do mero acaso, antes resultou de condições estruturais relacionadas com o processo da Reforma e, mais concretamente, da resposta encontrada pelo mundo católico, na sequência do Concílio de Trento (1545-1562), que deu pelo nome de Contra – Reforma. Ao recuar-se um pouco mais, poder-se-á encontrar um fio condutor e progressivo em toda esta caminhada que pôs fim, temporariamente, ao domínio da Igreja em toda a educação, como se viu quando analisámos a Época Medieval: começou-se pelo Renascimento e suas variantes locais, prosseguir-se-á pela Reforma e só não se generalizará, por todo o lado, devido à entrada em acção desse poderoso instrumento pedagógico da Contra – Reforma que foram os Jesuítas. Com estas transformações, sairão diminuídos os ainda débeis poderes dos municípios na área da educação, porque o seu novo enquadramento temático e organizativo passa a estar estreitamente sob a alçada da Companhia de Jesus. Se a Reforma tendera a aplicar a ideia de uma educação comum para todos, com o Estado a assenhorear-se do sistema de escolas públicas, a par da família tida como instituição educativa (Lutero), a Contra – Reforma, com particular incidência em Portugal, visará ainda mais a centralidade educativa, agora sob o domínio Jesuítico. Com Lutero, o estado tinha “o dever de obrigar os seus súbditos a enviar seus filhos à escola”, tese defendida e aplicada por Filipe Melanchthon (1479 – 1560) na Alemanha. Com os Jesuítas, através da pregação, da confissão e do ensino, criou-se um operante sistema escolar que dominou parte da Europa durante cerca de dois séculos, alicerçando-se numa rígida organização e continuidade administrativa, num respeito absoluto pela autoridade. A Contra – Reforma impôs, assim, os seus desígnios. Criada por Santo Inácio de Loiola, com o apoio em personalidades de grande vulto, como o Pe. Simão Rodrigues de Azevedo, natural de Vouzela, é em 1551 que o seu fundador, em carta enviada precisamente ao Pe. Simão, propõe um “vastíssimo plano de educação e de ensino, estendido a todos os lugares onde a Companhia se ia estabelecendo, para destaque para Évora e Lisboa” (Carvalho, 1985). Obtidas as boas graças da Corte, que, aliás, estivera na génese da sua fixação em Portugal, fácil se tornou o exercício duma influência eficaz e duradoura em todo o ensino, a começar pelo Colégio das Artes (Coimbra) e a estender-se a outros vastos domínios, precisamente pela força das suas convicções quanto à importância social da educação e do ensino. Não foi, pacífica a sua preponderância, a avaliar pela reacção encetada pela Universidade de Coimbra, por um lado, e por outros sectores da sociedade Portugal. Assim, de uma forma indireta, a Câmara de Évora, em posição que reflete o mal-estar reinante naquele município, expôs claramente a sua discordância com a Universidade, o que equivale a dizer-se que questiona a própria Companhia de Jesus, a partir da seguinte contestação: “Lembram a V. Majestade que convém a seu serviço e conservação daquelas comarcas do Alentejo extinguir-se a dita Universidade, porque não somente não é de proveito ao reino mas antes tem mostrado a experiência os grandes danos, que se seguem de a haver, porque que com a comodidade dela se dá ao estudo a gente que havia de lavrar as herdades” (Carvalho, 1985). Sob a capa de manutenção das gentes do campo, lê-se neste documento o descontentamento com a acção da Companhia, que responde a esta crítica com um outro argumento: a necessidade de se pôr termo às mais de quatrocentas escolas particulares, sinal revelador de que ainda não tinha ido tão longe quanto pretendia. Com o seu Ratio Studiorum, constante da parte IV das respetivas Constituições, a vigorar até 1832, nem o domínio filipino chegou a arrefecer os âmbitos dos Jesuítas, que aproveitaram a oportunidade para aumentar, ainda mais, a sua área de influência, de modo a cobrir o todo nacional e as outras partes do mundo português de então, com as suas duas classes de escolas: os colégios inferiores e superiores. É notório, no entanto, a pouca atenção dadas à educação elementar e de massas, com a sua preocupação de formar líderes, de ordem religiosa e intelectual, aptos a veicularem os seus valores, o maior dos seus trunfos e a melhor alavanca para a difusão de suas ideias. Foi, talvez, pela educação elementar que entraram os demais protagonistas, nomeadamente os municípios, mas a parte mais relevante ficou, sem dúvida, pelo sucesso do seu trabalho, para a Campanha de Jesus, apesar da oposição aos novos ideais do renascimento. Durante os tempos finais do século XVI e a primeira metade da centúria seguinte, não pode esquecer-se no nosso país a influência Castelhana, a procurar “corrigir abusos existentes na administração municipal” (Serrão), mas não deixou de se sentir a ligação das Câmaras ao ensino, responsáveis então pela manutenção dos estabelecimentos das primeiras letras, com a vereação de Lisboa, por exemplo, a cuidar de arranjar mestres capazes para evitar que “semeiem má doutrina em escolas de meninos” (Serrão) ). Curiosamente, é no período da Restauração que sai afectada a autonomia municipal, a passar, no limite, pela nomeação de vereadores régios, mas sem estiolar, de vez. Vila Franca de Xira, para garantir a permanência de um mestre de gramática, faz sair dos bens de raiz do concelho a quantia de 30 000 réis por ano. 3.5. O século XVIII e o Absolutismo Com o avanço da Companhia de Jesus e o seu peso crescente, não foram de feição os tempos para os municípios apostarem na educação, tal como vai acontecer durante o domínio do absolutismo, quer na época em que conviveu com os Jesuítas (reinado de D. João V), quer após a sua expulsão (D. José I, sob a acção determinada do Marquês de Pombal). Na realidade, de feição e práticas descentralizadas, o municipalismo, com excepção de uma ou outra acção ou tomada de posição esporádicas, não lograra ainda marcar o ritmo dos acontecimentos. E vai ter dificuldade em fazê-lo durante todo este espaço de tempo, que se prolonga até meados do século XIX. Em sede de reformas educativas, incidiremos especialmente, neste capítulo, no contributo dado por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Mas não podemos deixar de falar, ainda que sumariamente, nos vários antecedentes, todos eles, porém, a indiciarem o advento do absolutismo e do despotismo iluminado. Antes de mais, convém recordar o papel de Descartes, enquanto agente fortemente crítico, pelo seu método, da Companhia de Jesus; a criação de academias e o aparecimento de publicações periódicas científicas. Mas não é de esquecer-se dois novos e activos protagonistas na área do ensino: - A ordem dos Clérigos de S. Caetano - A Congregação do Oratório de S. Filipe Nery, esta a opor-se, com vigor e determinação, às teses jesuíticas. Pelo caminho desbravado, pode-se afirmar que se constituíram em precursoras das reformas pombalinas, pelo seu ascendente na vida portuguesa, pela sua aceitação do cartesianismo, a juntarem-se a um outro, Luís António Verney (1713 – 1792). Com o suporte com os diversos iluministas estrangeirados, de que Luís António Verney é um dos expoentes, o Marquês de Pombal passa a munir-se dos mecanismos que lhe vêm a permitir a implementação de uma verdadeira reforma do ensino em Portugal. É por demais evidente que o sentido destas alterações contraria qualquer visão municipalista, apesar de Luís António Verney bastante ter reflectido em torno das chamadas escolas baixas, de Manuel Andrade de Figueiredo ter aflorado numa nova escola para aprender a ler, escrever e a contar e de António Nunes Ribeiro Sanches (1699 – 1782), nas suas “Cartas sobre educação da mocidade”, explanar uma teoria geral da educação, desde a primária à universidade, mas apenas com escolas a partir das vilas para cima. Feito o diagnóstico da situação e encontrado, na versão pombalina, o cerne do problema, uma das primeiras medidas deste ministro de D. José I foi expulsar os Jesuítas, o que aconteceu em 12 de Janeiro de 1759, criando nesse mesmo ano a figura do Diretor-Geral dos Estudos, como responsável máximo no que se consagra no Alvará referente ao ensino. Cronologias das medidas Pombalinas Com uma visão estratégica destas questões, o Marquês de Pombal lançou mão de um sistema de acompanhamento e implementação da reforma, bem patente na criação da Direção-Geral dos Estudos e, mais ainda, na Real Mesa Censória, muito embora os seus objetivos em vista tenham sido também de outra índole. Tanto assim é que, no ano de 1772, a Real Mesa Censória, a par do “Mapa dos professores e mestres das escolas menores e das terras em que se acham estabelecidas as suas aulas e escolas neste reino de Portugal e seus domínios”, elabora um documento em que se constata a ineficácia da anterior Direção-Geral dos Estudos e se advoga a necessidade de recorrer a novas providências. Tal como defende Joaquim Ferreira Gomes, ao dizer que a “História da Educação deve ocupar-se fundamentalmente de três grandes problemas”, (Estudos para a história da educação no século no século XIX, Livraria Almedina – Coimbra, 1980). Pombal deixou suficiente matéria para o preenchimento desses três requisitos: 1. Ideias e ideais educativos – Oposição cerrada à escolástica jesuítica, tentativa de construir um homem novo, sob a dupla tutela da autoridade sagrada da igreja, numa visão oratoriana, e do poder real. 2. Métodos e técnicas – Aplicação da perspetiva veiculada por Luís António Verney. Necessidades de os professores concorrentes prestarem provas de competência. Até ao século XVII, jamais qualquer país criara uma instituição de natureza pedagógica ou científica para a formação de professores. 3. Instituição educativa – Direção-Geral dos Estudos, Colégio dos Nobres, um novo ensino primário, uma nova universidade. Se a Igreja mantém o seu peso específico, o estudo começa de esboçar o seu poderio educativo, um pouco como diz João Barroso, na divisão estabelecida para o tempo que vai do século XVI em diante: - A tutela da Igreja prolongar-se-ia pelos séculos XVI a XVIII, enquanto que os séculos XIX e XX seriam do domínio do Estado, o que se aceita, neste caso, apenas parcialmente. Com Pombal, as medidas tomadas têm uma perspetiva sistemática e não apenas programática, na aplicação de um pensamento unitário. Trata-se de um iluminismo aplicado à realidade local, sem pôr de parte a citada influência dos estrangeiros, agentes de uma metodologia renovadora. De contornos nitidamente centralizados, chega a impor-se que todas as escolas públicas ou privadas tenham de se sujeitar a licenças régias, tendência que se vem a atenuar com D. Maria I, nas respetivas Ordenações do Reino. É a oposição à política pombalina a afirmar-se, em tempo de viragem e tanto assim é que, em 16 de Agosto de 1779, o ensino passa a confiar-se aos conventos, em muitos locais, indo-se até à ideia de propor às comarcas (28 de Agosto de 1793) que indiquem novos projetos, em sinais de clara abertura, prenunciadora de novos tempos, com a pujança das Academias e a germinação do liberalismo. 3.6. O Liberalismo O liberalismo em Portugal não ficou imune às influências exteriores, até porque, na sua génese, podemos encontrar reminiscências da revolução francesa e sopros de novos tempos, numa inspiração claramente iluminista, que via no ensino uma alavanca para regenerar a sociedade, uma forma de acesso à cidadania. Com o renascimento, a escola fervilhara, mercê da nova conceção do homem e da sociedade. Mas é nesta época que se dão as maiores transformações, numa lógica sequência temporal e uma interligação de factores, que confluem, no império da razão, no despontar de uma autêntica reforma educativa, no campo dos princípios e da sua organização. É este o campo que nos interessa, para vermos até que ponto os municípios passam a ter, de uma forma mais regular, uma maior implicação no sistema de ensino, quando, na realidade, se pode falar de um sector com uma crescente autonomia, na vida das sociedades. Demarcando-se, da esfera religiosa, adquire contornos próprios, logra beneficiar da acção das academias e de outras agremiações da cultura, frequentemente por estímulos de interesse local, a ponto de Rafael Ávila de Azevedo enumerar, apenas nos anos de 1821 a 1823, mais de cento e sessenta pedidos para a criação de escolas de primeiras letras. Vive-se no liberalismo uma espécie de renascimento do poder municipal, sobretudo a partir de 1834, muito embora não se possa generalizar esta tese, pelos hiatos encontrados ao longo dos tempos. Continua... Carlos Tavares Rodrigues, anos 90, século XX, em forma de dissertação, não discutida, na Faculdade de Psicolologia e Ciências da Educação, de Lisboa, sob a orientação do Professor Albano Estrela.

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